28 Março 2018
Como vimos na primeira parte da nossa resenha (aqui), o belo livro de Zeno Carra apresenta dois modelos teóricos e práticos de “presença eucarística”. O primeiro é o da “transubstanciação” e se refere à tradição tomista e tridentina; o segundo – que ainda não está plenamente definido e ao qual o livro quer dar uma contribuição explícita – se articula em torno do Movimento Litúrgico e da Reforma Litúrgica, elaborando teórica e praticamente suas aquisições.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 21-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesta segunda parte da minha resenha, gostaria de evidenciar os pontos que qualificam o modelo clássico de “presença eucarística”. Deve-se dizer que o autor dedica uma atenção particular a essas descrições de modelos e, nesse aspecto, talvez resida a característica mais original e mais significativa de sua pesquisa.
Esse modelo de compreensão e de implementação da presença eucarística foi gerado por causas múltiplas: em particular, ele traz as marcas das grandes disputas medievais e modernas, para responder às quais Tomás, primeiro, e o Concílio de Trento, depois, preparam uma ratio sacramenti que pode ser sintetizada em um sistema de relações, composto por “pontos de referência” e por “laços formais” entre eles, que são definidos como “eixos”.
Os pontos de referência são: “O fundamento cristológico, o evento celebrativo ou rito do sacramento, a Igreja que celebra o sacramento, o homem crente que está no fato sacramental” (p. 112).
Cada um desses “pontos” é analisado e às vezes duplicado: por exemplo, a celebração é distinguida em dois níveis, o dos entes e o do rito.
O modelo se apresenta como uma série de “conexões” (chamadas de “eixos”) entre os diversos pontos, que desenham a forma geral da experiência eucarística, assim como pensada e implementada a partir do fim da Idade Média até o século XX. Analisemo-los sinteticamente.
a) Eixo ente-rito: “O ponto de ancoragem sólido do fato eucaristia é o ente. Ele governa o nível do rito” (p. 113). O rito é expulso da dimensão ontológica da eucaristia. “As quatro articulações rituais entregues sob a forma da ceia de Jesus à tradição (accepit, gratiam egit/benedixit, fregit, dedit) se subordinam à segunda delas. Que, por sua vez, se reduz à sua dimensão anamnética institutiva (dicens: Hoc est... hic est), reduzida às únicas palavras homogêneas à pregação sobre os entes (as palavras de ação – accipite et manducate/bibite – são por elas desautorizadas). Os outros três nós perdem pertinência ontológica, em particular o polo da comunhão: o fato eucaristia já é cumprido com a consagração; a comunhão é uma consequência dela, definida como uso do sacramento” (p. 113-114).
b) Eixo Cristo-ente: “Cristo é ‘presente’ antes que (/em vez de) ‘agente’” (p. 115). A análise metafísica dos entes (a passagem de substância a substância) é garantia da presença. “Os eventos histórico-salvíficos do Cristo (Mistério Pascal) são, em última análise, irrelevantes ao dado objetivo da presença” (p. 115). Se o ente, e não a celebração, medeia o acesso a Cristo, “isso leva a uma representação linguístico-mental para a qual Cristo é ‘interno’ aos elementos consagrados” (p. 115). O fruto das controvérsias medievais e modernas quer salvaguardar a mediação real efetiva no nível da substância metafísica.
c) Eixo Cristo-rito: as categorias patrísticas de “figura”, “imagem”, “similitude” perdem relevância. Isso fica evidente na “teologia do sacrifício”, em que o enfraquecimento da figura medieval leva à justificação no plano dos “entes”, produzindo uma “multiplicação dos sacrifícios”. “Se até aquilo que é de pertinência do rito (o fato eucaristia enquanto ‘agido’ como sacrifício) deve ser deslocado para o novo centro ôntico, o rito permanece desautorizado também em relação àquilo que lhe é próprio: ser ‘ação’ mediadora da ‘ação’ salvífica de Cristo. O rito permanece como uma concha vazia, mero suporte cerimonial para um núcleo que está incrustado em seu centro” (p. 116). Daí se explica o desvio do alegorismo.
d) Eixo homem-ente: a centralização ôntica do fato eucarístico determina uma centralização noética do acesso do homem à eucaristia. “Dada a natureza particular dos entes após a consagração (...) a mediação sentidos > intelecto não pode ser dirigida (...) Junto com a desvalorização da ação, há também a desvalorização do nível sensível” (p. 117). Também no plano da relação recíproca (ente-homem), a contraposição entre “alimento espiritual/alimento corporal” corresponde a essa nova centralidade ôntica e noética da eucaristia.
e) Eixo homem-rito: “O rito está para o homem envolvido no fato eucaristia como uma sagrada representação que para ‘diante’ dele, propondo-se e ele como ‘sinal’ daquilo que está colocado em seu centro: a presencialização ôntica (...) Como ‘sinal’ mais do que ‘símbolo’, o rito se coloca ‘diante’ do homem, e não o homem dentro dele” (p. 118). A eficácia do rito também é reduzida à magnificência sensível, mas “é suficiente que o homem esteja ‘diante’ do rito, consentindo pela fé ao fato de que, lá atrás/dentro, opera-se algo importante para sua salvação” (p. 118). Assim, o benefício da missa, baseado em uma lógica ôntica e não sensível, pode prescindir até da presença dos beneficiários.
f) Eixo Eucaristia-Igreja: “Na época patrística, o próprio fato de a eucaristia ser lida como espaço da presença agente de Cristo na sua Igreja engloba em si o fato de que a celebração do sacramento torna concomitante presente a própria Igreja, ou seja, gera-a, edifica-a, compagina-a. Mas tal copresença recíproca da presença de Cristo e de seu corpo, entendido como Igreja, enraíza-se na centralização mistérico-ritual do fato eucaristia: a eucaristia é rito, é actio” (p. 119). Quando se exclui, como faz o modelo tomista-tridentino, a relevância ativo-ritual do fato eucaristia, em favor de uma centralização presencial-ôntica, a Igreja torna-se extrínseca à eucaristia. Essa transformação – que é fruto da teoria “transubstancial” – encontra as causas dos (e determina efeitos sobre os) outros “eixos”: o fundamento cristológico é entendido em sentido estático-natural; a relação ente-rito conhece “a posição secundária da comunhão em relação à consagração”, o acesso individual, em vez de comunitário, à Igreja, o primado de uma abordagem intelectual, em vez de sensível, à eucaristia.
“Independentemente de qualquer parte se acesse o modelo, a Igreja é excluída dele, conectada apenas como consequência segunda (e secundária): o desenvolvimento do intimismo devoto como via privilegiada de participação na missa coloca-se aqui como sintoma eloquente” (p. 120).
Não é difícil admirar a profundidade e o rigor dessa análise. O modelo clássico de “presença eucarística” passou pelos raios-X e é mostrado na sua grandeza, mas também nos seus limites. O jogo desses “eixos”, como conexões cruzadas entre os elementos constitutivos da experiência eucarística, é absolutamente claro ao mostrar a exigência de elaborar um novo modelo de teologia eucarística, que, conservando o melhor do modelo medieval-moderno, saiba traduzi-lo em categorias capazes de salvaguardar o papel fundamental da dinâmica ritual.
Esse será o objeto da terceira parte da minha resenha.
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Nova teologia eucarística: ''Hoc facite'' e o modelo clássico da presença eucarística. Artigo de Andrea Grillo (parte 2) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU