Para o economista, a crise pandêmica é mais um sintoma da crise perene e estrutural do capitalismo
O caos social e econômico gerado pela pandemia de covid-19 foi central para que vários economistas levantassem suas bandeiras em defesa da intervenção estatal na economia, denunciassem a precariedade do estado de bem-estar social e reivindicassem o fim da política de austeridade em defesa da ampliação das políticas públicas. Nesse contexto, políticas keynesianas são apontadas como uma alternativa para enfrentar a crise pandêmica, mas “a nossa realidade econômica e social não autoriza nada próximo ao que no passado ficou conhecido como era keynesiana”, adverte o economista Daniel Feldmann na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Na avaliação dele, a adesão a medidas keynesianas ou neoliberais para enfrentar a crise atual faz com que os economistas apostem na “falsa perspectiva de que, passada a tempestade da pandemia, a máquina produtiva poderá e deverá voltar ao seu funcionamento ‘normal’ e adequado”. Ao contrário, sugere, a crise gerada pela pandemia de covid-19 deveria conduzir o debate para outra direção: o de perceber que não estamos diante de uma crise cíclica ou conjuntural, mas, sim, de “uma crise perene e estrutural que decorre do fato de o capital esbarrar em limites externos e internos”. Entre os limites externos, Feldmann destaca a destruição da natureza, da qual a crise de covid-19 é um sintoma, e entre os limites internos, ele cita a capacidade de o capital minar a sua própria base de expansão.
Independentemente de como será a atuação do Estado na economia, Daniel Feldmann acredita que “é totalmente ilusória a noção de que é possível recuperar uma forte acumulação produtiva de capital que gere ao mesmo tempo empregos, crescimento, prosperidade, justiça social etc.” Sem alterar a dinâmica da própria racionalidade capitalista, que sustenta “a lógica do valor como esteio das relações sociais”, não será possível sair do beco sem saída em que estamos. Segundo ele, o questionamento dessa racionalidade é fundamental para que haja uma mudança. “Sem atacarmos os fundamentos sociais que têm nos levado à beira de um colapso ecológico, sem atacarmos o modo de sociabilidade vigente que cada vez menos garante as condições mínimas de reprodução digna das pessoas, não é possível nenhuma reconciliação possível entre aquilo que se chama economia e a vida”, argumenta.
Nesta entrevista, o economista também reflete sobre a situação do Brasil na crise atual, menciona os riscos de uma nova crise cambial e lamenta a impossibilidade de o país deslanchar com um projeto de desenvolvimento.
Daniel Feldmann (Foto: Brasil de Fato/Daniel Feldmann)
Daniel Feldmann é graduado em Economia e mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo - USP, e doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas - Unicamp. É professor da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp.
IHU On-Line - Defensores da intervenção estatal na economia e atores sociais que veem no Estado a responsabilidade de garantir o estado de bem-estar social viram, no enfrentamento da pandemia por parte dos Estados, a corroboração de suas teses, a saber, que o Estado tem que intervir na economia, agir de modo ainda mais direto em momentos de crise e garantir os serviços sociais. Eles se precipitaram ou não compreenderam completamente o que a ação dos Estados significa neste momento?
Daniel Feldmann - Eu diria que em geral tais análises tendem a ver a árvore, mas não a floresta, isto é, se prendem aos fatos imediatos sem fazer a necessária mediação com a dinâmica efetiva do capitalismo contemporâneo. Se hoje o Estado torna-se o último recurso para salvar o capitalismo em crise, nem por isso ele volta a ter a capacidade de planejar e regular o sistema econômico de forma consistente e duradoura, e menos ainda de instituir um efetivo estado de bem-estar social. Aliás, é justo o contrário o que ocorre. Como tentei argumentar no meu artigo (No curto prazo todos estaremos mortos: apontamentos críticos sobre o novo consenso “keynesiano”), hoje há o consenso em torno de um "keynesianismo" salvacionista que consiste num Estado que busca desesperadamente apagar incêndios para impedir o desmoronamento do sistema capitalista. Já o antigo consenso efetivamente keynesiano do mundo rico do pós-guerra tinha como pressuposto a expansão perene da valorização capitalista e a consolidação de sociedades salariais. Logo, não se trata mais hoje, como defendia Keynes, de um Estado que conduza e assegure os pressupostos de uma pujante expansão capitalista, mas precisamente o oposto: um Estado que é impelido a agir emergencialmente aos trancos e barrancos e que de forma cada vez mais precária tenta administrar uma crise que não tem fim. O Estado cada vez menos tem capacidade de balizar e planejar qualquer ação de longo prazo, mas sim é cada vez premido por constrangimentos curto-prazistas para mitigar uma maior crise e desvalorização dos capitais.
Destarte, independentemente de maior ou menor atuação do Estado nas economias, é totalmente ilusória a meu ver a noção de que é possível recuperar uma forte acumulação produtiva de capital que gere ao mesmo tempo empregos, crescimento, prosperidade, justiça social etc. O que temos diante de nós não é uma mera crise cíclica ou conjuntural, mas sim uma crise perene e estrutural que decorre do fato de o capital esbarrar em limites externos e internos. Limites externos, que dizem respeito à destruição da natureza que é cada vez mais gritante e cuja pandemia atual é mais um sintoma, como nos alerta o biólogo Rob Wallace. Limites internos, pois o capital tende a minar a própria base de sua expansão, ao reduzir a sua própria capacidade de autovalorização.
Já Marx em seu tempo, com seu conceito de "contradição em processo", apontava para a ideia do capital como uma relação social contraditória e autodestrutiva. O imperativo que se coloca para cada capital individualmente, de se aumentar a automação e racionalização de suas atividades para enfrentar a concorrência, obriga a substituição de trabalho vivo por aquilo que Marx chamava de "Intelecto Geral", isto é, a utilização crescente da ciência e tecnologia na produção. Todo o problema é que tal processo, ao se generalizar, expulsa o trabalho vivo – único elemento efetivamente criador de valor –, fazendo com que globalmente a capacidade do capital de produzir mais-valor fique comprometida. Aquilo que Marx analisara como consequência lógica do movimento do capital levado às últimas consequências, vai se concretizando em nosso tempo como efetividade histórica.
Daí que, ao contrário do que se alega por vezes, não se trata mais de crises episódicas que como no passado permitiam que o capital – como uma fênix renascida – recuperasse as bases de sua expansão, seguindo cada vez mais reforçado após suas quedas momentâneas. As inúmeras e cada vez mais sérias crises conjunturais do capital desde os anos 1970 têm como pano de fundo um continuum de estagnação da acumulação produtiva cuja raiz são os limites que indicamos mais acima. A importância cada vez maior da financeirização, isto é, o fato de que o motor do capitalismo tem sido cada vez mais a profusão de crédito e títulos de propriedade (capital fictício) nada mais é do que um reflexo deste limite interno, pois trata-se de uma tentativa de se ensejar novas frentes de aplicação de riqueza monetária que compensem o processo de criação efetiva de valor que está cada vez mais capenga.
Dito isso, a questão fundamental talvez seja menos a de uma precipitação ou falta de compreensão dos economistas, e mais a sua necessidade de adesão – explícita ou implícita – à falsa perspectiva de que, passada a tempestade da pandemia, a máquina produtiva poderá e deverá voltar ao seu funcionamento "normal" e adequado. E aqui reside justamente a questão fundamental: a disputa entre liberais, keynesianos e mesmo de parte dos que reivindicam a obra de Marx, sempre foi e ainda é como melhor fazer funcionar tal máquina. Mesmo que existam aqui divergências importantes de como melhor se azeitar a máquina, existe um consenso tácito de todos em sustentar a lógica da produção pela produção e da acumulação como fim em si, bem como de sustentar a lógica do valor como esteio das relações sociais.
Mas e se for a própria máquina que está emperrada e não apenas as diferentes formas de impulsioná-la? Mas e se for a manutenção da própria forma valor da produção o fator que está levando o mundo cada vez ao beco sem saída social, político e ecológico? Mas e se o problema não está apenas nas formas de alocação da riqueza, mas também e principalmente na própria forma abstrata de tal riqueza, que coloca os critérios de rentabilidade econômica acima de quaisquer outras considerações sociais, submetendo todos nós a uma dinâmica cada vez mais excludente, irracional e suicida? O fato de o pensamento econômico ainda hoje precisar permanecer preso aos mitos do crescimento, desenvolvimento e progresso cumulativos, explicam, a meu ver, em grande parte a razão de as questões acima levantadas sequer serem abordadas na maioria das vezes. A contradição de fundo, portanto, de que o valor é uma forma social cada vez mais anacrônica e destrutiva, mas toda a nossa sociabilidade ainda tem de se submeter a ela, exige um tipo de reflexão e de ação que não cabem mais nas categorias convencionais daquilo tem se chamado de ciência econômica.
IHU On-Line - Há um consenso econômico de que é preciso maior intervenção estatal ou há um consenso apenas de que o Estado precisa adotar políticas a fim de enfrentar a crise pandêmica, num período determinado, por razões específicas?
Daniel Feldmann - Aqui creio que neste ponto as opiniões se dividem, ao mesmo tempo em que elas via de regra deixam de captar o cerne do problema. Há os que afirmam que a crise é produto apenas de um fator inesperado, anormal e externo ao sistema econômico, como se ela fosse apenas produto exclusivo da paralisação econômica causada pela disseminação do vírus. Como já argumentamos, isso não é verdadeiro, e os efeitos da pandemia apenas radicalizam tendências que já estavam há décadas em curso e não podem jamais ser tomados como produto de uma mera "externalidade negativa". Daí que as medidas expansionistas do Estado – o keynesianismo salvacionista – agora sejam vistas dentro dessa linha de argumentação como um "mal necessário", que devem depois dar lugar ao "bom funcionamento dos mercados".
De outro lado, há a perspectiva mais identificada com a necessidade de intervenções permanentes no sistema econômico. Ao mesmo tempo que se aproxima da ideia de Keynes, correta em si mesma, de que o capitalismo tende a crises caso deixado por si só, eu penso que tal perspectiva está errada quando afirma que uma regulação política e institucional adequada do sistema econômico possa hoje superar as vicissitudes do capitalismo contemporâneo. Como já comentei na questão acima, não se trata de uma mera crise de formas de coordenação institucional do capitalismo, mas do próprio capital que não consegue mais assegurar sua reprodução ampliada como no passado, na medida que a substância – o valor – fica escassa. Diante disso, nenhum voluntarismo do Estado pode retomar a expansão do valor que depende da incorporação de trabalho vivo à produção, posto que isso seria impossível dado o nível atingido pela própria estrutura técnica e material do capitalismo contemporâneo. O capital, que como dizia Marx no Manifesto precisa engendrar um processo incessante de revolução das forças produtivas, não pode dar tal salto atrás na sua própria história, de forma que a superfluidade crescente das pessoas para o capital não pode ser resolvida nos marcos vigentes.
Assim, a questão que deve ser colocada aqui é qual o sentido e abrangência de intervenções do Estado na economia que não sejam as tentativas, como vemos hoje, de se ganhar tempo diante de um futuro cada vez mais nebuloso, socializando perdas e tentando na melhor das hipóteses atrasar um afundamento sistêmico ainda maior? Os alicerces do antigo planejamento econômico de inspiração keynesiana não mais existem. Nem mais há um horizonte de expansão da valorização capitalista que o Estado possa planejar e se reforçar a partir daí, como também a antiga perspectiva keynesiana de uma efetiva integração salarial das populações arbitrada pelo Estado se esfumou dando lugar à precarização, informalidade e atomização no mundo do trabalho. Ademais, a interdependência produtiva, comercial e financeira dos circuitos globais mina a capacidade de coordenação de espaços econômicos nacionais minimamente coesos, sobretudo para países periféricos como o Brasil. Nesse quadro, me parece sem sentido a ideia de que a intervenção estatal possa de forma consistente insuflar o "espírito animal" keynesiano dos empresários. Diante da instabilidade e da irracionalidade crescente do sistema econômico, o que soa seguro e racional dos capitalistas é cada vez mais manter sua riqueza de forma líquida em aplicações financeiras em vez de se aventurar pelos caminhos tortuosos da produção.
IHU On-Line - O que há por trás do discurso de que é preciso salvar a economia neste momento?
Daniel Feldmann - Se estamos certos em nossa argumentação, isto é, de que não há mais um futuro a ser perseguido, aquilo que um dia se chamou política torna-se cada vez mais uma tentativa de se administrar de forma cada vez mais errática e tumultuosa o presente. Uma alternativa extrema, mas cada vez mais viva, de se lidar com esse “presentismo” é dar forma e voz para as pulsões assassinas que advêm de uma situação em que é claro que nem a natureza e nem o conjunto dos seres humanos poderão ser preservados. Isso que explica as posições de que se deve aceitar a morte das pessoas diante da pandemia para que a economia continue funcionando, ou ainda declarações como a da assessora de Paulo Guedes de que a morte de idosos pode ajudar nas contas previdenciárias.
A questão a frisar aqui é que para que combatamos esse darwinismo social criminoso, não basta que afirmemos em abstrato a ideia de que é possível reconciliar vidas e economia. Claro que a vida deve ser posta em primeiro lugar, mas em geral se afirmar genericamente um protocolo de boas intenções não serve como guia adequado. Mais precisamente, sem atacarmos os fundamentos sociais que têm nos levado à beira de um colapso ecológico, sem atacarmos o modo de sociabilidade vigente que cada vez menos garante as condições mínimas de reprodução digna das pessoas, não é possível nenhuma reconciliação possível entre aquilo que se chama economia e a vida. Dito de outra forma, se é necessário hoje que se exijam medidas emergenciais para preservação da saúde e da renda das pessoas diante da pandemia, não é menos importante, por outro lado, que se ataquem as raízes de fundo de uma lógica econômica e social que já era emergencial para a maior parte da humanidade antes e que tende a ser ainda mais emergencial com o cenário que se configurará daqui para frente. E o que tem se chamado de “volta à normalidade” até aqui, nada mais é do que a crença absurda de que é possível retomar nossas formas anteriores de vida, como se elas nada tivessem a ver com as mazelas pelas quais as pessoas hoje estão passando.
IHU On-Line – Mas é possível salvar os empregos e a renda dos trabalhadores sem salvar as empresas e os rentistas?
Daniel Feldmann - A pergunta é boa pois permite abordar um ponto central. Quando falamos de fetiche da mercadoria, ou fetiche do capital, não se trata aqui de dizer que nós estamos apenas metafisicamente "enfeitiçados" com as pressões para se preservar a todo o custo a reprodução capitalista. O fetiche não é uma mera ilusão subjetiva, mas um fato objetivo: na medida em que nossas relações interpessoais não podem ser diretas, isto é, na medida em que no capitalismo tais relações devem obrigatoriamente passar pela mediação de "coisas" como dinheiro e mercadorias, toda a nossa vida passa a se subordinar ao movimento das "coisas". Deste ponto de vista, sem colocarmos no centro o questionamento de tal inversão em que uma criação humana – o capital – passa a ser o "sujeito automático" (Marx) do processo social, creio que não há solução consistente para o dilema posto pela pergunta.
De fato, como em 2008, a quantidade de recursos hoje posta para salvar bancos e grandes empresas tende a ser muito superior em relação aos auxílios em termos de saúde e de proteção das populações de menor renda na sociedade. Que isso deve ser denunciado é óbvio, mas a questão é de que forma isso deve ser denunciado. Assim voltamos ao problema já mencionado mais acima: não é possível uma crítica consistente a tais fenômenos se continuarmos com o discurso de que a máquina econômica deve continuar funcionando a todo custo, de que é necessário recuperar a todo custo as condições "sanitárias" da economia. Pois se for isso, a chantagem de que é preciso salvar as empresas e bancos para que se preserve a renda e o emprego das pessoas passa a ser algo extremamente difícil de se combater, pois tende a se apoiar nas formas de vida fetichistas que prosseguimos seguindo de forma inquestionada.
IHU On-Line - O senhor chama a atenção para as disputas entre economistas ortodoxos e heterodoxos em relação a como enfrentar a crise. Que questões centrais precisam ser discutidas do ponto de vista econômico e social, tendo em vista o futuro, e que não estão sendo percebidas pelos economistas? Que questões precisam ser clarificadas no debate atual para avançarmos tanto do ponto de vista econômico quanto social?
Daniel Feldmann - Em parte, tentei responder mais acima tais pontos. Mas acrescento o seguinte. Eu quis sugerir, no artigo, que a ideia de que "somos todos keynesianos" agora é falsa não por conta das intenções subjetivas de economistas ortodoxos e heterodoxos, mas fundamentalmente porque nossa realidade econômica e social não autoriza nada próximo ao que no passado ficou conhecido como era keynesiana. Daí o fato de que o que chamo de amplo consenso "keynesiano" – entre aspas – hoje, consiste exclusivamente na ideia que é preciso "salvar o capitalismo dos capitalistas", mas jamais num arranjo duradouro e próspero entre Estado-capital-trabalho como pareceu possível num curto período de tempo no pós-guerra para uma pequena parte da humanidade no Primeiro Mundo e que também só foi efetivamente possível com o impulso nada inofensivo do complexo industrial-militar dos EUA. Por isso tentei chamar atenção para o fato de que os economistas keynesianos e heterodoxos, ao proclamarem sua vitória teórica perante o mainstream ortodoxo dos economistas, na realidade estariam desfrutando de uma "vitória de Pirro", pelo menos se quiserem permanecer fiéis ao próprio Keynes e à sua perspectiva de uma regulação longeva e factível do capitalismo.
Assim, se os economistas inspirados em Keynes ainda ofereçam hoje muitos aportes importantes e úteis para pensarmos o capitalismo contemporâneo, o keynesianismo como visão de mundo abrangente hoje só pode ser uma ideologia, uma mera aparência, e que, por isso, independentemente das intenções de seus proponentes, só pode acabar por ser um saudosismo atávico que não cabe na realidade concreta de um capitalismo que não pode mais ser plasmado e estimulado como no passado.
E isso remete à questão do futuro a qual você aborda na pergunta. Todo as propostas de Keynes de regeneração do capitalismo se baseavam na ideia de que, com bom senso, certos valores éticos e, sobretudo, com o uso adequado da racionalidade e da técnica disponível, a civilização burguesa poderia ter um futuro estável, harmonioso e de abundância material para o conjunto da sociedade. Constatar que o futuro se transformou na realidade que conhecemos e que ela é o contrário de tal prognóstico, é quase um truísmo. Mas isso deveria nos colocar a seguinte pergunta: será que não haveria um problema aí, comum tanto a economistas ortodoxos e heterodoxos, de acreditar que a racionalidade instrumental da modernidade capitalista poderia ser um meio consciente de avanço social, quando na verdade o problema de fundo está nesta própria racionalidade que se impõe de forma quantificadora e automática sobre indivíduos e sociedades impedindo-os de definirem livremente a finalidade de suas atividades e vidas? Penso ser esta questão muito importante.
IHU On-Line - Muitos economistas apostam no endividamento público e na emissão de moeda neste momento como a melhor alternativa para enfrentar os efeitos da crise. Como o endividamento público deve ser tratado?
Daniel Feldmann - Penso que a utilização de um arsenal pesado de salvamento financiado com dívida e emissão de moeda diante do desmoronamento em curso surge como uma necessidade sistêmica incontornável, tornando impossível aos governantes recusar tais medidas em nome da "austeridade" ou dos "bons fundamentos" macroeconômicos como tantas vezes tem sido feito em outras situações. É de se notar que esse fato escancara o enorme absurdo da forma de funcionamento econômico de nossas sociedades e também o engodo dos que a comandam. Afinal, só quando o estado de emergência que vivemos é institucionalizado, que se permite que se gastem trilhões mundo afora principalmente para o salvamento dos capitais, mas também em menor escala com políticas de assistência que tentem evitar o caos social completo. Mas aí devemos questionar: e todos os seres humanos que já viviam antes nas filas de emergência em hospitais sucateados, na emergência da ausência de renda etc., não eram então motivo suficiente para sensibilizar os governos?
Por outro lado, a hipocrisia em torno do discurso da austeridade não autoriza, a meu ver, o discurso de parte dos economistas heterodoxos de que é possível sustentar a máquina capitalista colocando em marcha sem mais uma política de expansão de gastos públicos via endividamento e/ou criação monetária. É certo que o endividamento público e a rolagem de dívidas do Estado não são nenhuma novidade na história do capitalismo. Mas isso não anula o fato de que o aumento gigantesco tanto do endividamento público como do privado que temos visto nas últimas décadas não tenha qualquer importância. Pensamos, ao contrário, que esse é um fator decisivo do que temos argumentado até aqui.
A dívida global em 2019, isto é, ainda antes da crise atual da pandemia que deve aumentá-la sobremaneira, já era, segundo o FMI, 60% maior do que em 2007, quando da véspera da crise do subprime. Ressalte-se ainda que os países ditos emergentes tiveram aumento de endividamento ainda maior que esta média global. Em boa medida, a origem desse processo são as antinomias contemporâneas da forma valor que já mencionamos e que acarretam grande fragilidade na acumulação produtiva capitalista. Daí o que vemos são os Estados que têm sua base de arrecadação enfraquecida e assim aumentam suas dívidas, as dívidas dos consumidores que crescem como forma de compensar os baixos salários, empresas que vão rolando dívidas e que dificilmente poderão pagá-las no futuro etc.
Ora, isso significa que temos uma dada configuração em que para que a máquina capitalista não pare por completo, ela depende cada vez mais da criação de capital fictício: créditos e papéis que não têm qualquer valor em si mesmos, mas que expressam direitos de propriedade que são negociados a todo momento, tendo como lastro de um processo de valorização efetivo que não pode nunca vir a ser produzido no futuro. Assim, o que se quer aqui então chamar a atenção é que temos um processo em que a riqueza financeira vai se autonomizando da produção real, isto é, um capitalismo que tenta se apropriar no presente de promessas futuras de valorização real que, como tentamos indicar, são cada vez menos críveis.
Não à toa, como vimos em 2008 e vemos agora em 2020, são necessárias políticas monetárias antes tidas como "exóticas", como taxas de juros zeradas e injeções fabulosas de dinheiro para evitar que essa arquitetura desmonte de vez. O economista pós-keynesiano Hyman Minsky descrevia de forma interessante como os ciclos de endividamento que aumentavam a fragilidade financeira do sistema econômico eram algo intrínseco às economias capitalistas modernas. Todavia, Minsky acreditava que o "Big Government", isto é, a ação estatal poderia suavizar os efeitos mais disruptivos de crises financeiras sobre a atividade econômica, de forma que ele acreditava serem altamente improváveis novas crises como a de 1929. A questão que se coloca hoje, a nosso ver, é que a fragilidade financeira decorrente do acúmulo de dívidas expressa não mais uma dinâmica cíclica que possa ser aliviada de tempo em tempo pelo Estado, mas sim o próprio modus operandi estrutural e perene do capitalismo neste século XXI. Destarte, não se trata de Estado e setor privado se endividarem mais para se motorizar um crescimento econômico que depois aliviará o fardo da dívida, mas sim de um crescimento cumulativo de dívidas precisamente porque estagnação e fraco crescimento viraram regra.
IHU On-Line - O que significa falar em “mais Estado”, segundo Keynes, e “mais Estado”, como se fala hoje, para enfrentar grandes crises? Que diferenças existem nessas duas abordagens e em que aspectos elas se aproximam e se diferenciam?
Daniel Feldmann - Se antes era possível o Estado, até certo grau, planejar numa perspectiva de longo prazo, me parece que hoje ele é compelido a atuar para promover a contenção dos efeitos mais disruptivos advindos da crise permanente. E tal contenção vai tanto no sentido já comentado de salvar os capitais, como também vai no sentido de administrar as crescentes tensões sociais combinando políticas de assistência (quando possível...) com dispositivos de repressão. Esse seria, portanto, o conteúdo do "mais Estado", bem diferente do "mais Estado" advogado por Keynes. A questão a meu ver é que tais tentativas de contenção, ao reporem a mesma forma de dinâmica socioeconômica “presentista” que já comentamos, acaba por acelerar mais à frente o processo de destrutividade social. Temos aí uma espécie de "contenção aceleracionista".
E há também aqui outra dimensão mais propriamente econômica que cabe mencionar. Existe uma linha de argumentação que diz que o processo de financeirização arraigado, que aumenta a instabilidade e ingovernabilidade geral, seria em última instância um produto consciente e planejado das elites econômicas que souberam impor a todos tal nova estruturação do capitalismo. Nessa linha de argumentação ainda, a estagnação em curso seria decorrência do caráter parasitário de tais elites que se concentrariam em ganhos de curto prazo na esfera financeira, em detrimento de investimentos produtivos de longo prazo. Aqui, a meu ver, confunde-se causa e consequência. Não é financeirização que debilita a expansão da valorização capitalista, mas precisamente o contrário, a saber, o bloqueio de tal valorização na esfera da produção que fomenta a hipertrofia financeira.
De maneira convincente, a meu ver, economistas como Chesnais, Kliman e Roberts têm mostrado que o pano de fundo da ascensão irresistível da financeirização é um declínio prolongado das taxas de lucro globais do capital. De nossa parte achamos que tal queda prolongada na lucratividade tem como causa principal a "contradição em processo" do capital que já abordamos. Independentemente das diferentes formas de se aferir a lucratividade do capital, me parece inegável que as taxas em vigor são insuficientes para qualquer retomada sustentável de sua reprodução ampliada. É verdade, por outro lado, que a ascensão chinesa das últimas décadas produziu uma mitigação de tal tendência, na medida em que o país se transformou numa poderosa fábrica de mais-valor em escala mundial. Mas isso sob nenhuma hipótese anula a tendência geral. Note-se que a expansão das exportações chinesas já era desde a origem tributária das bolhas de crédito e ativos, sobretudo dos EUA, e que daqui para frente nada indica que a China conseguirá manter-se como polo compensador das fragilidades do capitalismo global.
Esse tema é importante posto que a dificuldade de coordenação efetiva do Estado não é meramente oriunda de uma determinada correlação conjuntural de poder, como se fosse possível resgatar um capitalismo mais "produtivista" e menos "rentista" e "financeirizado" caso tal correlação se alterasse. O curto-prazismo generalizado é uma tentativa de fuga para frente em função das contradições do capital, e não algo que pode ser dirimido por uma hipotética vontade soberana dos governos. Em outras palavras, um curto-prazismo que já dura no longuíssimo prazo simplesmente não pode ser explicado pela força e vontade subjetiva dos capitalistas como pretendem certas interpretações, mas tem causas objetivas muito mais fundas e que não podem ser solucionadas dentro dos pressupostos capitalistas.
IHU On-Line - Que diferenciações o senhor percebe entre o relatório do Fundo Monetário Internacional - FMI recém-lançado, em abril de 2020, e relatórios anteriores?
Daniel Feldmann - Há dois aspectos neste último relatório que chamo a atenção. De um lado, o FMI sugere ações que em outros tempos ele refutava, como o uso amplo de políticas fiscais expansionistas antes e depois da pandemia, assim como ele acena para a possibilidade de controles de fluxos internacionais de capitais e mesmo para eventuais moratórias da dívida externa para países pobres com problemas em seu balanço de pagamento. Creio que a própria profundidade inaudita da crise de covid-19, que já fez o FMI ampliar sua carteira de empréstimos para vários países, ajuda a explicar tais mudanças de posição em relação a relatórios anteriores, em especial no que diz respeito às contas externas de países fragilizados. Ao mesmo tempo, o FMI afirma 10 vezes em seu relatório que é esperado que as economias voltem à sua "normalidade". Como já argumentei, essa insistência de que as coisas voltarão ao seu "normal" persiste como um mantra cuja função prática – consciente ou não – é a de evitar qualquer reflexão séria sobre a crise estrutural do capitalismo.
Por outro lado, penso que tais apelos à normalidade não podem sublimar a sensação generalizada de que há algo de muito errado no capitalismo contemporâneo. Mesmo antes da pandemia, o jornal Financial Times – muito influente no mundo financeiro – em editorial do ano passado já destacava a necessidade de reformas e de uma pactuação social que fizesse com que os lucros passassem a ser "socialmente justificados".
É imperioso aqui constatar o sabor keynesiano de uma proposta como essa, tendo sido Keynes um severo crítico dos excessos egoístas do que ele chamava de "amor ao dinheiro". E aqui temos, talvez, uma outra explicação para essa volta a Keynes. Pois como afirma Geoff Mann em livro recente, o espectro de Keynes sempre tende a ser amplamente evocado em momentos de crise social. Para Mann, inclusive tal espectro em certa medida seria tanto anterior como posterior ao homem Keynes na medida em que expressaria aqueles momentos em que a civilização moderna busca conter os antagonismos que tendem a dilacerá-la.
Achamos que é uma abordagem interessante, mas ao mesmo tempo achamos que tal espectro pode muito bem estar servindo como pura petição de fé ou ainda como expressão de uma má consciência. Afinal, a ideia de que é possível um lucro socialmente útil, ou de que é possível uma reorientação subjetiva que contenha o "amor pelo dinheiro", são impraticáveis se é o próprio mecanismo social que continua como nunca elegendo o lucro e o dinheiro como critérios últimos de todas as iniciativas humanas.
IHU On-Line - Qual sua expectativa em relação aos efeitos da crise pandêmica sobre a economia? As economias mundiais caminham para uma superação do neoliberalismo ou para seu aprofundamento?
Daniel Feldmann - A resposta a essa questão depende do que se chama efetivamente de neoliberalismo. Gosto de pensar esse conceito não como uma dada ideologia ou forma de política econômica, mas como uma razão totalizante, que ao se apoiar na crescente atomização da sociedade, impõe a lógica de concorrência em todas as esferas da vida. Lógica essa que, diga-se de passagem, tende a se amplificar numa dinâmica de crise social na medida em que se reforçam os dispositivos de seleção e exclusão dentro de um campo de oportunidades individuais cada vez mais estreito. Neste sentido, não consigo ver por que o neoliberalismo sairia enfraquecido da situação atual. O contrário me parece bem mais provável, sobretudo, se tivermos em mente que, na definição em que nos apoiamos inspirada em Dardot e Laval, o neoliberalismo não significa "menos Estado", mas sim o reforço da atuação estatal no sentido de impor um modo de governo pautado na concorrência. Evidentemente, o que quero dizer aqui é que não há nenhuma tendência para uma autorreforma do sistema enquanto tal, o que não quer dizer que as lutas sociais em curso – cujo exemplo mais importante é o levante negro nos EUA – não possam apontar para transformações importantes.
Há uma outra forma que penso ser profícua para enxergar o mesmo problema. Karl Polanyi afirmava que uma sociedade baseada exclusivamente em relações de mercado seria inviável, e que necessariamente a sociedade tenderia a reagir para controlar os excessos de tal mercantilização. O paradoxo de nosso tempo é que a despeito de uma profunda insatisfação social, os governos, seja de esquerda seja de direita, acabam nos fatos por reproduzir a racionalidade neoliberal no sentido acima definido. Mais ainda, o ressentimento social em curso tem sido capitaneado por setores de extrema direita que, quando no governo, buscam governar precisamente através do estímulo à lógica autofágica que é a razão neoliberal levada às últimas consequências. Nesse sentido, penso que um equívoco de muitas análises é usarem o conceito de neoliberalismo como se ele fosse uma espécie de sujeito histórico, um ator social, como se fosse ele o motor último de nossa história recente. Na realidade, penso que o neoliberalismo é a forma para um dado conteúdo, a crise do capitalismo, que faz com que os antagonismos sociais se tornem mais violentos e acelerados na medida em que os espaços – tanto para o capital como para as pessoas – vão se reduzindo. E é claro que são as pessoas que têm sido derrotadas nesse embate.
IHU On-Line - Como vê a proposta do Plano Pró-Brasil, que alguns chamam de uma continuação dos PACs petistas?
Daniel Feldmann - É difícil opinar posto que esse tema, como quase tudo no Brasil, está congelado em função de sermos o epicentro mundial de covid-19 e vivermos em profunda crise política. Pouca coisa foi falada sobre o que viria a ser tal projeto, e não sei se de fato ele será tirado do papel. Me parece que não há acordo completo dos militares com o ultraliberalismo de Guedes. Nesse sentido específico, esse plano seria algo em consonância com o sentido geral do mundo hoje e do próprio FMI de aumentar gastos públicos em meio à crise. Mas a questão mais importante nisso me parece outra, a saber, o papel que os militares ocupam no governo atual, com milhares de ocupantes de postos governamentais. Independentemente de quais sejam suas intenções concretas e seus próximos passos na nossa tragédia atual, isso expressa o fato de que no Brasil, aquilo que temos chamado de institucionalização de um estado de emergência tende a radicalizar aspectos autoritários e de controle armado da vida social. E na atual conjuntura, os militares certamente pretendem aparecer como fiadores da "ordem" a partir do caos provocado pelo próprio governo em que eles têm papel-chave.
Por outro lado, na medida em que o país já ficou para trás na corrida tecnológica, qualquer estratégia econômica dos militares não poderá ter a pretensão de internalizar no país setores bélicos e securitários sofisticados, como foi ainda a pretensão deles durante o II Plano Nacional de Desenvolvimento - PND de Geisel, que levou inclusive a se oporem aos EUA na questão nuclear. Em grande medida, creio, a aproximação dos militares brasileiros com os EUA tem a ver com a constatação de que, para eles, segurança não tem mais a ver com soberania, mas sim com estar sob o guarda-chuva protetor estadunidense, num mundo cada vez mais convulsivo.
IHU On-Line - Que tipo de políticas econômicas deveriam ser adotadas para enfrentar esta e outras crises econômicas? Que tipo de negociação e pacto tem que ser feito tendo em vista o futuro tanto de empresas quanto dos trabalhadores, mas também um desenvolvimento sustentável a longo prazo?
Daniel Feldmann - Não tenho uma resposta acabada para a questão, mas gostaria de desenvolver a seguinte reflexão. De imediato é necessário que se reivindiquem amplos investimentos na saúde e em pesquisas, bem como que sejam garantidas a manutenção da renda, defesa de empregos e condições de vida, sobretudo dos mais vulneráveis. E evidentemente a profunda desigualdade social que fica ainda mais escancarada com a pandemia aumenta a legitimidade imediata de medidas distributivas como taxação das grandes fortunas, por exemplo. Nesse sentido, deve-se de imediato exigir que o dinheiro flua de forma equitativa em função das necessidades sociais mais prementes.
Todavia – e aqui reside o nó da questão – o que indicamos acima, de longe esgota a questão, ao contrário. Pois o que também é escancarado pela catástrofe que vivemos é que a própria forma de mediação social calcada no dinheiro e no valor é totalmente contraditória com soluções consistentes para os dilemas postos. Pode-se por certo exigir hoje como saída imediata – até porque não existe qualquer outra alternativa dada às formas sociais vigentes – que sejam financiadas atividades emergenciais. Mas a salvação monetária apenas pode recolocar a necessidade geral de que a sociedade volte a intensificar mais à frente sua lógica de sacrifícios cada vez mais duros em torno do dinheiro, ou melhor dizendo, sacrifícios que decorrem de um metabolismo social que exige sempre transformar uma determinada quantia de dinheiro em mais dinheiro, reiterando um círculo vicioso que anula todo o potencial de outras formas de sociabilidade.
E não se trata aqui de apenas uma metáfora religiosa, apesar de que a ideia do capitalismo como religião de Walter Benjamin é cada vez mais pertinente. São questões muito concretas que daí decorrem: como garantir uma saúde adequada para todos? Como estabelecer as condições materiais para uma vida decente para toda a população? Nos deparamos aqui com aquilo que Moishe Postone chamou de "anacronismo da forma valor", na medida em que se torna cada vez mais irracional o fato de que apenas podem prosperar em nossa sociedade aquelas atividades que passem pelo filtro da rentabilidade e da financiabilidade monetária. E se é verdade que nas circunstâncias atuais o Estado pode até certo ponto criar dinheiro para financiar ações, é evidente que isso está limitado pelo fato de que o próprio Estado também em última instância depende do desempenho da dinâmica da valorização, dinâmica que como sugerimos está bastante avariada. Destarte, quando uma parte da esquerda diz que "não falta dinheiro" para a solução dos enormes problemas sociais colocados, isto é apenas uma meia-verdade que elide o problema central. Pensamos que seria mais correto, em vez de dizer que "não falta dinheiro", dizer que não faltam meios materiais e humanos para que a própria sociedade de forma autogerida encontre soluções para seus problemas.
O que deve ser explicitado, portanto, é a distância enorme entre as formas de vida que poderíamos ter e as que efetivamente temos, distância que só pode ser reduzida caso superemos a dinâmica sacrificial e fetichista de nossas relações sociais. É preciso imaginar outras formas de produzir nossas vidas em comum que não passem pelos critérios cada vez mais estreitos e autofágicos da forma valor. Evidentemente que não se trata de algo simples e nem de algo para ser realizado já amanhã, mas, por outro lado, é absolutamente necessário que essas questões comecem a ser postas desde já. E creio ainda que tal perspectiva poderia dar maior inteligibilidade e consistência para as demandas que têm sido expressas por diferentes movimentos e lutas sociais.
IHU On-Line - Que ideias e propostas de Bruno Latour podem contribuir nesse sentido?
Daniel Feldmann - Latour tem chamado atenção para o fato de que ao contrário do argumento ouvido desde sempre, de que "a economia não pode parar", a própria pandemia forçou o mundo todo a uma interrupção que era tida como inimaginável. É claro que o argumento de Latour não diz toda a verdade, na medida em que para que uma parte da população prossiga em quarentena, é necessário que uma outra parte se arrisque e se sacrifique para manter as coisas funcionando. Ou ainda, como bem frisou meu colega Tiaraju D'Andrea, no Brasil a resistência de parte das comunidades periféricas ao isolamento social total não pode ser creditada de forma alguma à insanidade bolsonarista, mas, sim, parte de questões muito concretas de sobrevivência, como a necessidade de prosseguir trabalhando para não passar fome, ou ainda as condições extremamente precárias de moradia de muitos que tornam a ideia de ficar o dia inteiro em casa algo impraticável.
Feitas tais ressalvas, a provocação de Latour não deixa de ser muito rica. Pois me parece que o ponto para o qual ele quer chamar atenção é que diante do colapso ambiental muito real, ou praticamos a partir daqui uma grande recusa e reordenamos as formas de produção e consumo que vínhamos levando, ou tudo serão discursos inócuos. Assim, creio que seu recado é que a paralisação a que fomos forçados de forma heterônoma em função da pandemia deveria servir para que agora, de forma autônoma, não deixemos que as coisas voltem a uma suposta "normalidade", que, ao fim e ao cabo, é a raiz dos enormes riscos que afligem a humanidade.
Penso também que Latour tem razão ao afirmar que, quando parcela das elites políticas e econômicas prossegue defendendo práticas que aceleram a destruição ambiental, não se trata aí de forma alguma de algo que se origina de um mero "negacionismo" ignorante diante de evidências cada vez mais cristalinas. É justamente porque eles sabem que a catástrofe ambiental se aproxima e porque também sabem que a lógica econômica em curso cada vez mais tende a deixar as pessoas para trás, que eles pisam no acelerador da barbárie, como numa espécie de gozo hedonista diante do fim do mundo. Daí que eu ache que o mérito de Latour é de tentar dar voz à extrema gravidade com que estamos confrontados. E em última análise, penso que seu recado se coaduna com o tipo de reflexão e ação que sugerimos na pergunta anterior. Se Marx (não o Karl, mas o humorista Groucho!) dizia que "inteligência militar é uma contradição em termos", podemos extrapolar essa ideia e dizer que "capitalismo verde" também o é.
IHU On-Line - Muitos especialistas têm escrito sobre o futuro do capitalismo e suas transformações pós-pandemia e, em cada crise capitalista, uma parcela dos teóricos projeta o seu fim ou a sua transformação. Em que eles se baseiam para fazer essas projeções? É muito mais um desejo do que uma realidade? Por que o senhor não aposta no fim do capitalismo?
Daniel Feldmann - Creio que não se trata de apostar ou não, mas sim de perceber que um efetivo fim do capitalismo só é possível se conseguirmos escapar de seus poderosos e pervasivos mecanismos de dominação que reduzem tudo ao denominador comum da riqueza abstrata na forma de mercadorias. Penso que na questão 11 acima eu tentei justamente esboçar – sem a pretensão de esgotar o tema – como poderíamos produzir uma efetiva crítica teórica e prática do capitalismo contemporâneo. Claro que a mera enunciação da possibilidade de sairmos da lógica do dinheiro, do valor e do capital pode soar distante e utópico para as pessoas. Mas creio que a superação das formas fetichistas de sociabilidade é o legado mais atual e profícuo da crítica à economia política de Marx e é precisamente por aí que deveríamos dedicar nossos esforços intelectuais e nossa mobilização para que não sejamos tragados por tentativas cada vez mais inviáveis e destrutivas de meramente administrar a crise que se desenvolve. E justamente tal legado tem sido o mais ignorado pela esquerda, seja na sua forma social-democrata, como pelo socialismo estatista que, ao fim e ao cabo, acabaram por reproduzir tais formas fetichistas quando no poder.
IHU On-Line - Quais suas projeções para a economia brasileira pós-pandemia?
Daniel Feldmann - O processo de crise geral do capitalismo tem também como característica aumentar as disparidades entre os países. Eu penso que no Brasil, desde os anos 1990, já estava encerrada a perspectiva de um projeto nacional de desenvolvimento na medida em que as exigências em termos de capitalização, mercados, tecnologia e domínio de conhecimentos se tornam inalcançáveis para se continuar com a pretensão de enfrentar o fardo da concorrência global de ponta. É de se notar que mesmo no período em que nossa economia parecia retomar o crescimento na era Lula, o país intensificava a reprimarização de suas exportações, ao passo que sua indústria se tornava mais frágil perante a competição externa, sobretudo da China. A abertura financeira do país que vem também dos anos 1990 e que foi a contraface da estabilização da alta inflação, transformou o país naquilo que Leda Paulani chamou de uma plataforma de valorização financeira. Isso significa que o Brasil se torna especialmente refém dos humores dos mercados globais e de seus ciclos de criação de crédito e capital fictício, o que tem se refletido em pronunciadas valorizações e desvalorizações do Real a depender de tais humores.
Não é mera coincidência o fato de que, desde os anos 1980, os únicos dois períodos em que foi possível algum crescimento razoável do PIB se deu quando havia abundância de liquidez externa e forte entrada de dólares, isto é, na época do surgimento do Real e depois durante alguns anos da era Lula. E me parece que Paulo Nogueira Batista Jr. tem razão quando afirmou recentemente que hoje a subida do dólar pode sim ser um sinal de risco de nova crise cambial. Pois, a despeito das grandes reservas cambiais, a situação de instabilidade generalizada aqui e no exterior pode insuflar grandes saídas de recursos com caráter cumulativo em sua conta de capitais externos.
Ademais, a famosa "reunião do vídeo" do governo Bolsonaro é paradigmática de que o Brasil é à sua maneira "vanguarda" de uma dimensão essencial da crise capitalista contemporânea. Quando Guedes grita pela privatização do Banco do Brasil ou quando Salles propõe que se aproveite a pandemia para passar a "boiada" em favor da desregulamentação ambiental e fundiária, eles apenas revelam qual é efetivamente um dos principais horizontes da acumulação capitalista no mundo, e principalmente por aqui. Na medida em que o processo de reprodução ampliada em que o capital se expande a partir de si mesmo vai ficando rarefeito em função de sua "contradição em processo", ele precisa intensificar alternativamente práticas de despossessão, isto é, de tomada de posse de riquezas externas a si próprio. É como se na ausência de horizonte de futuro o capital tenha de reiterar sua antiga marca original de expropriações do seu entorno. E disso decorre inclusive o aumento da corrupção e da promiscuidade entre poder público e iniciativa privada. Ao mesmo tempo vale frisar que nos processos de despossessão se mesclam tanto formas antigas como a monopolização de recursos naturais e territórios, quanto formas mais modernas como as privatizações e o "cercamento" de técnicas e conhecimentos através de patentes e propriedade intelectual.
Se tais práticas de despossessão, sobretudo no Brasil, nunca deixaram de estar presentes, me parece que elas hoje têm um sentido diverso. Francisco de Oliveira, entre outros, nos alertou que tais práticas de despossessão foram o pressuposto da acelerada industrialização brasileira no século XX. Penso que tais práticas hoje não mais servem para que se impulsione uma efetiva valorização capitalista baseada na exploração em larga escala de trabalho abstrato, mas ao contrário, trata-se de uma radicalização da espoliação impulsionada pela impossibilidade de prosseguir a valorização e reprodução ampliada do capital de forma "normal".
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Daniel Feldmann - Agradeço muito as questões e aproveito apenas para tentar iluminar uma questão de forma a dialogar com uma objeção que por vezes aparece quanto à linha de raciocínio que tentei descortinar acima. Em nossa leitura, as crises do capital, do Estado e do mundo do trabalho estão entrelaçadas na medida em que expressam o anacronismo da forma valor. Mas quando afirmamos que o trabalho que produz mais-valor vai sendo expulso da produção, isso não implica que as pessoas tenham de trabalhar menos. É justo o contrário. Como não existe ainda outra forma de socialização além da venda da força de trabalho para a maioria das pessoas, a concorrência no mercado de trabalho tende a se tornar cada vez mais difícil e violenta. Na realidade, a lei do valor torna-se ainda mais implacável, colonizando todas as instituições e âmbitos da vida ainda com mais ferocidade justamente porque torna-se escassa a sua "matéria-prima".
Se, como já dizia Cervantes, "o melhor tempero é a fome", a insaciabilidade e o caráter exploratório do capital só podem crescer quando se torna mais rara a possibilidade efetiva de novas frentes sustentáveis e perenes de valorização. Ao mesmo tempo, é preciso ter em mente que grande parte das ocupações que ainda geram muitos empregos hoje são aquilo que Marx chamava de "trabalho improdutivo", trabalhos que são fundamentais para a reprodução capitalista, mas que não têm a capacidade de aumentar a massa de mais-valor. Quando as pessoas, por exemplo, são empregadas em setores como o financeiro, comércio ou telemarketing, elas ajudam a circular o capital, mas elas não aumentam a massa de mais-valor. Mais ainda, para que as empresas destes setores sejam remuneradas e paguem seus trabalhadores, é preciso deduzir parte do mais-valor socialmente produzido de outros setores "produtivos" da economia.
Cabe por fim mencionar aqui ainda uma nova situação que advém da chamada "economia de plataforma" de empresas como Uber e Rappi. Creio que temos aí uma situação em que ferramentas tecnológicas ultramodernas são usadas para reproduzir formas arcaicas capitalistas que têm a ver com a ideia de "acumulação por despossessão" que comentamos acima. Pode-se afirmar que esses motoristas, ao operarem com suas motos e carros, produzem valor a partir das atividades de transportes realizadas. Mas note-se aqui que o capital consegue extrair tal valor desses trabalhadores não mais a partir de sua própria reprodução ampliada, isto é, comprando sua força de trabalho para fazê-los produzir mais-valor. O que permite o capital extrair uma pesada renda em tais plataformas é o simples fato de monopolizarem dispositivos digitais e cobrarem por seu uso, impossibilitando assim outras formas de uso mais cooperativo dos aplicativos que poderiam ser mais favoráveis aos trabalhadores. Assim, há alguma similaridade entre tais plataformas e mecanismos que estiveram na origem do modo de produção capitalista, com o antigo "putting out system" (subordinação formal do trabalho) em que ainda não era o capital enquanto tal que organizava todo o processo de produção como viria a ser depois com o advento da grande indústria (subordinação real do trabalho). Em suma, o capital só age externamente como pura propriedade jurídica para expropriar o valor, sendo o trabalho realizado por inúmeros produtores independentes dispersos e concorrendo entre si. Não teríamos aí mais um exemplo flagrante do anacronismo da forma valor e do capital?