27 Março 2020
“A exigência de proteger os franceses para o seu próprio bem contra a morte é infinitamente mais justificada no caso da crise ecológica do que no caso da crise sanitária”, escreve Bruno Latour, sociólogo, filósofo, antropólogo da ciência e autor de, entre outros livros, Les Microbes. Guerre et paix, seguido de Irréductions (Métailié, 1984) e de Où atterrir ? Comment s’orienter en politique (La Découverte, 2017), em artigo publicado por Le Monde, 25-03-2020. A tradução é de André Langer.
A inesperada coincidência entre uma reclusão geral e o período da quaresma ainda é bem-vinda para aqueles que foram convidados, por solidariedade, a não fazer nada e que se encontram na retaguarda das linhas de frente. Esse jejum forçado, esse ramadã laico e republicano pode ser uma bela oportunidade para refletir sobre o que é importante e o que é insignificante…
Como se a intervenção do vírus pudesse servir como um ensaio geral para a próxima crise, aquela em que a reorientação das condições de vida se apresentará a todos e para todos os detalhes da vida cotidiana que teremos que aprender a selecionar com cuidado. Suponho, como muitos, que a crise sanitária nos prepara, induz e incita a se preparar para as mudanças climáticas. Ainda é necessário testar esta hipótese.
O que autoriza o encadeamento das duas crises é a súbita e dolorosa percepção de que a definição clássica de sociedade – os humanos entre si – não faz nenhum sentido. O estado do social depende o tempo todo das associações entre muitos atores, a maioria dos quais não tem a forma humana. Isso vale para os micróbios – como sabemos desde Pasteur –, mas também para a internet, o direito, a organização dos hospitais, as capacidades do Estado e o clima. E, é claro, apesar da confusão em torno de um “estado de guerra” contra o vírus, este é apenas um dos elos de uma cadeia em que a gestão dos estoques de máscaras ou de testes, a regulamentação do direito de propriedade, os hábitos cívicos, os gestos de solidariedade, contam exatamente tanto para definir o grau de virulência do agente infeccioso.
Uma vez que toda a rede, da qual é apenas um elo, é levada em consideração, o mesmo vírus não age da mesma maneira em Taiwan, Cingapura, Nova York ou Paris. A pandemia não é mais um fenômeno “natural” que as fomes de outrora ou a atual crise climática. Há muito que a sociedade não se mantém mais dentro dos estreitos limites do social.
Dito isto, não está claro para mim se o paralelo vai muito mais longe. Porque, afinal das contas, as crises sanitárias não são novas, e a intervenção rápida e radical do Estado não parece, pelo menos até aqui, estar inovando muito. Basta ver o entusiasmo do presidente Macron em endossar a figura do chefe de Estado que lhe faltou tão pateticamente até agora. Muito melhor do que os atentados – que, afinal, são apenas assuntos de polícia –, as pandemias despertam, entre os líderes e os liderados, uma espécie de evidência – “devemos protegê-los”, “vocês devem nos proteger” – que reforça a autoridade do Estado e lhe permite exigir o que, em qualquer outra circunstância, seria recebido com tumultos.
Mas esse Estado não é o do século XXI e das mudanças ecológicas; é o Estado do século XIX e do comumente chamado “biopoder”. Para falar como o falecido estatístico Alain Desrosières, este é o Estado das apropriadamente chamadas estatísticas: gestão da população em uma grade territorial vista de cima e liderada por um poder de especialistas. Exatamente o que vemos ressuscitar hoje – com a única diferença de que é replicado passo a passo, a ponto de se tornar planetário.
A originalidade da situação atual, parece-me, é que, permanecendo trancados entre quatro paredes enquanto, do lado de fora, há apenas a ampliação dos poderes da polícia e a sirene das ambulâncias, nós praticamos coletivamente uma forma caricatural da figura do biopoder, que parece ter saído diretamente de um curso do filósofo Michel Foucault. Não há sequer a obliteração do grande número de trabalhadores invisíveis forçados a trabalhar de qualquer maneira, para que outros possam continuar a se esconder em suas casas – sem mencionar os migrantes que são impossíveis de fixar. Mas justamente, essa caricatura é de uma era que não é mais a nossa.
Existe um imenso abismo entre o Estado capaz de dizer “eu protejo vocês da vida e da morte”, isto é, da infecção por um vírus cujo rastro é conhecido apenas por cientistas e cujos efeitos são compreensíveis apenas pela coleta de estatísticas, e o Estado que ousaria dizer “eu protejo vocês da vida e da morte, porque mantenho as condições de habitabilidade de todos os seres vivos de quem vocês dependem”.
Pense no seguinte: imagine que o presidente Macron veio anunciar, com o mesmo tom churchilliano, uma série de medidas para abandonar as reservas de gás e petróleo nas profundezas da terra, para interromper a comercialização de pesticidas e suprimir os trabalhos profundos e, audácia suprema, proibir o aquecimento de fumantes no terraço dos bares... Se o imposto sobre os combustíveis desencadeou o movimento dos “coletes amarelos”, então estremeceríamos só de pensar nos tumultos que incendiariam o país. E, no entanto, a exigência de proteger os franceses para o seu próprio bem contra a morte é infinitamente mais justificada no caso da crise ecológica do que no caso da crise sanitária, porque se trata aí literalmente de todo o mundo, e não apenas de alguns milhares de humanos – e não por um tempo, mas para sempre.
Agora podemos sentir que esse Estado não existe. E o mais preocupante é que não está claro como ele se prepararia para passar de uma crise à seguinte. Na crise sanitária, a administração tem um papel pedagógico muito clássico, e sua autoridade coincide perfeitamente com as antigas fronteiras nacionais – o arcaísmo do retorno às fronteiras europeias é uma prova dolorosa disso.
Para a mudança ecológica, a relação se inverte: é a administração que deve aprender com um povo multifacetado, em múltiplas escalas, com que se pode parecer a existência em territórios inteiramente redefinidos pela exigência de abandonar a produção globalizada atual. Ela seria completamente incapaz de ditar as medidas de cima. Na crise sanitária, é o bravo povo que precisa reaprender, como na escola primária, a lavar as mãos e a tossir no cotovelo. No caso da mudança ecológica, é o Estado que se encontra em uma situação de aprendizagem.
Mas há outra razão pela qual a figura da “guerra contra o vírus” é incompreensível: na crise sanitária, talvez seja verdade que os seres humanos tomados em bloco “lutem contra” os vírus – mesmo se estes não se interessam absolutamente por nós e fazem seu caminho do nariz à garganta, matando-nos sem querer.
A situação é tragicamente inversa na mudança ecológica: desta vez, o agente patogênico, cuja terrível virulência modificou as condições de existência de todos os habitantes do planeta, não é o vírus, mas são os humanos! E não todos os humanos, mas alguns, que fazem a guerra sem declará-la. Para essa guerra, o Estado nacional está tão mal preparado, tão mal calibrado, tão mal projetado quanto possível, porque as frentes são múltiplas e atravessam cada um de nós. É nesse sentido que a “mobilização geral” contra o vírus não prova, em hipótese alguma, que estaremos prontos para a próxima. Não são apenas os militares que estão sempre atrasados para uma guerra.
Mas, enfim, nunca se sabe, um tempo de quaresma, mesmo laico e republicano, pode levar a conversões espetaculares. Pela primeira vez em anos, milhões de pessoas, confinadas em suas casas, encontram esse luxo esquecido: tempo para refletir e discernir o que geralmente as faz agitar-se desnecessariamente em todas as direções. Respeitemos esse longo jejum imprevisto.
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“A crise sanitária incita a nos preparar para as mudanças climáticas”. Artigo de Bruno Latour - Instituto Humanitas Unisinos - IHU