18 Março 2020
Nestes tempos de coronavírus, as igrejas permanecem abertas, sim, mas sem celebração eucarística. Para muitas comunidades cristãs do passado, o “jejum eucarístico” durou muito tempo e, para outras, as da Amazônia, por exemplo, ainda continua. Inexplicavelmente.
O comentário é de Francesco Strazzari, padre italiano da Diocese de Vincenza. O artigo foi publicado em Settimana News, 15-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fala-se muito disto nestes tempos de coronavírus. Igrejas abertas, sim, mas sem celebração eucarística. Muitos presbíteros celebram sozinhos, as pessoas se sentem perdidas. Onde ainda existem, elas correm para os altares laterais para a celebração. Há quem não observe as normas, e chovem multas. Sem dúvida, há muito a se refletir. Um pouco de história não faz mal em relação ao jejum eucarístico, imposto agora pelo vírus.
No século XIX, alguns missionários desembarcados no Japão descobriram uma comunidade cristã estabelecida lá no século XVI, decapitada pela perseguição dos seus bispos e dos seus padres. Ela permanecera fiel aos ensinamentos recebidos e à oração.
Os missionários não fizeram nada mais do que confirmá-la na sua fidelidade. É fácil supor que essa comunidade assumiu regras próprias e tinha catequistas capazes de transmitir a religião católica. Ela certamente deve ter celebrado os sacramentos, incluindo os casamentos. A presidência da eucaristia deve ter sido confiada a um idoso.
Segundo a opinião do grande teólogo beneditino, Ghislain Lafont, ela pode ter escolhido um bispo por conta própria. Mediante a experiência, a oração e a invocação ao Espírito, ela pode ter discernido entre os fiéis (e talvez o tenha feito) alguém que tinha a capacidade o carisma de guiá-la em nome de Cristo.
Mais uma vez Lafont: “Ele pode ter rezado sobre ele, imposto coletivamente as mãos sobre ele, pedido para ele a graça e os dons ligados a essa responsabilidade. Por qual razão esse eleito não poderia celebrar com a sua comunidade a eucaristia, ligada ao mandamento do Senhor na Última Ceia e fonte para a comunidade de toda a economia da graça e da salvação?” (cf. Ghislain Lafont, “Piccolo saggio sul tempo di papa Francesco” [Pequeno ensaio sobre o tempo do Papa Francisco], Bolonha: EDB, 2017, p. 87).
Nos anos 1980, o renomado teólogo dominicano Edward Schillebeekx se viu ultrajado e zombado, banido (embora não oficialmente condenado) pela Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo cardeal Ratzinger, por ter argumentado que se poderia confiar a presidência da eucaristia, em certas situações, a um batizado, pessoa equilibrada, capaz de compreender as situações, ou seja, de discernir e de agir. Ele foi intimado a não expor mais de modo algum a sua ideia. E o grande teólogo não abordou mais a questão.
Perto do fim dos anos 1980, eu entrei clandestinamente na Albânia, “o primeiro Estado totalmente ateu do mundo”, como o ditador Hoxha anunciava. Prisão domiciliar para o bispo Thaci, morto em 1946, 20 anos de trabalho forçado para o bispo Prendsuhi, que morreria na prisão em 1949. Principalmente, foram presos e processados os jesuítas, alguns condenados à morte, e expulsos todos os membros não albaneses das ordens religiosas.
No dia 8 de março de 1946, depois de prendê-lo, Hoxha mandou à morte o bispo de Tirana, Fran Gjuni, com outros 18 membros do clero e do laicato. Um mês antes, o bispo Gjiergi Volaj havia sido executado. Entre 1955 e 1965, foram fuzilados mais de uma dezena de padres diocesanos e religiosos; outros foram presos ou mandados para os campos de trabalho forçado. Os serviços religiosos foram impedidos. Os bispos titulares e os seus vigários foram obrigados a varrer as ruas com a inscrição na testa: “Pequei contra o povo”.
De 1967 a 1984, a perseguição foi implacável. Não devia haver nenhum sinal de fé cristã. Os rituais religiosos foram proibidos, penas gravíssimas foram impostas aos transgressores, os poucos padres sobreviventes foram mandados todos para os gulags. As comunidades cristãs, obviamente, ficaram sem a celebração da Eucaristia.
Em 1974, os três últimos bispos católicos foram presos. Foi trágico o fim do arcebispo Ernst Coba, de Shkodër. Enquanto celebrava a missa clandestinamente, ele foi barbaramente espancado por um grupo de jovens e ficou sem vida no chão.
Na hierarquia, apenas o bispo Troshani gozava de uma liberdade muito limitada. Eu o procurei e troquei com ele apenas algumas poucas palavras. Em Shkodër e Tirana, em julho de 1988, eu tive a confirmação de que a religião absolutamente não havia desaparecido. O sucessor de Hoxha, Ramiz Alia (1985), teve que admitir que havia fiéis que continuaram crendo e praticando. Eu tive a sensação de que, no fim dos anos 1980, na Albânia, havia iniciado uma nova fase, sob a pressão e as exigências do mercado, dos intercâmbios, do turismo. Eu tive a confirmação de que os fiéis se reuniam e celebravam. Um jejum eucarístico de anos e anos.
Tendo caído e sido desmembrado o vasto império soviético no início dos anos 1990, eu atravessei os Urais. Visitei o Cazaquistão e passei alguns dias em Kustanaj com o Pe. Alexander Ben, um conventual de Lviv, e, com ele, que tinha um velho mapa dos católicos latinos na Sibéria e nas repúblicas soviéticas asiáticas, transcrevi os dados.
Naquelas infindáveis terras, havia necessidade de tudo. Os fiéis, principalmente de origem alemã, que chegaram lá nos tempos de Catarina II nos anos de 1762 a 1796, pediam-me que enviasse livros religiosos, especialmente o Catecismo. Depois de anos de bombástica propaganda ateísta, eles queriam aprofundar a fé. A sua vida religiosa tinha sido sustentada por práticas tradicionais: terço, novenas, ladainhas, bênçãos... Era impossível para o velho e cansado Pe. Alexander celebrar a missa em todos os lugares.
Era o que os fiéis podiam se permitir até os anos 1970. Antes, a perseguição havia sido feroz. Eles me falavam sobre isso entre lágrimas. Uma ferocidade antirreligiosa e antiétnica contra os fiéis, que encontra espaço nos atos dos mártires.
Em 1996, eu visitei Laos, pouco mais de quatro milhões de habitantes, junto com o amigo Marcello Matté, editor do Settimana News. Na belíssima cidade de Luang Prabang, histórica capital do Estado antes de Vientiane, havia 500 católicos. Havia o bispo, a catedral, um belo seminário, o cemitério.
Em 1975, o regime pró-ocidental foi substituído por um sistema de marca marxista-leninista em total sintonia com os outros Estados comunistas asiáticos. E desencadeou a perseguição. O bispo Nantha, primeiro bispo de Laos, morreu em 1984.
Paramos em frente à catedral: apenas duas pequenas cruzes na fachada que testemunhavam que era a catedral. Ela estava reduzida a uma sala de reuniões em nome da delegacia de polícia local. A torre do sino estava destruída.
Um pouco mais adiante, o seminário que havia se tornado escola e, não muito longe da catedral, o cemitério dos católicos. Despojado das lápides, procuramos em vão o túmulo de um missionário italiano.
Temendo que a pequena mas viva comunidade católica permanecesse sem a eucaristia – pois todos os missionários estrangeiros haviam sido expulsos – o bispo Nantha ordenou padre um catequista, Phanh, de família vietnamita, casado, que tinha pouquíssimos elementos de teologia e de liturgia. Obviamente, ele consultou o núncio que residia em Bangkok. Era Giovanni Moretti, um italiano de Novara de grande sensibilidade. Dizia-se que Moretti teria sido enviado ao Sudão como punição por isso. Ele mesmo me confirmou isso, dizendo-se pronto para fazer de novo o que havia feito.
O velho Phanh, embora doente, continuava celebrando a eucaristia na sua casa, cercado por alguns fiéis. Nenhuma atividade podia ser realizada fora de Luang Prabang. Quem tentou, foi preso.
Obviamente, queríamos encontrá-lo, mas desistimos: teríamos lhe causado apenas incômodos e teríamos induzido a polícia, que o vigiava dia e noite, a nos interrogar sobre os motivos da nossa viagem clandestina. Certamente havia católicos que secretamente se encontravam para a oração e para recordar a ceia do Senhor.
Foi preciso esperar até 1988 para respirar um ar de maior liberdade, que permitiu a libertação de bispos e padres, que puderam se mover, mas sempre com a máxima cautela.
Atravessado o limiar do segundo milênio, fomos ao Camboja para encontrar o padre francês François Ponchaud, intelectual muito refinado, trabalhador incansável, ex-paraquedista na Guerra da Argélia, teimoso e sorridente, muito querido e contestado também pelos missionários por ser khmer demais, animador de escolas na floresta, autor de livros de história, tradutor da Bíblia e dos textos do Concílio Vaticano II em língua cambojana, animador de cursos de catequese.
“Em 1975, quando os khmer vermelhos tomaram o poder – ele nos contou – os bispos, os padres, os religiosos e as religiosas do Camboja podiam escolher entre ficar ou partir para a França: todos escolheram ficar. Todos morreram. Escolheram o único caminho: o da cruz. Grande parte dos cristãos das cidades, especialmente os homens, desapareceram durante os três anos e 23 dias do regime khmer vermelho. Em 1979, durante a libertação pelo Exército vietnamita, havia apenas cerca de 10 cristãos em Phnom Penh. De um grupo de 50 jovens, havia apenas três cristãos. Na igreja de Battambang, a segunda maior cidade do país, restaram apenas alguns idosos. Todos os outros haviam desaparecido.”
A partir de 1993, os missionários voltaram e tiveram que começar do zero: tradução da Bíblia, lecionários, catecismos, formação dos padres e dos catequistas. Tendo sobrevivido à perseguição e ao genocídio, a pequena comunidade católica encontrou-se diante de uma série de perguntas, às quais tentou responder com a “marcha sinodal” a partir de 1990, dando os primeiros passos em um campo de ruínas.
Desaparecidos os cristãos, dispersos os sobreviventes, suprimidos os quadros religiosos, arrasadas as igrejas com Pol Pot, nenhuma celebração eucarística, escolas e instituições confiscadas.
Assim se expressou o bispo Ramousse, que voltou do exílio na França: “Por 15 anos, os fiéis cambojanos aprenderam a fazer silêncio e a obedecer às ordens do partido. Quando reencontraram a liberdade de se reunir, tiveram que recomeçar a aprender a rezar juntos, a celebrar a eucaristia depois de um longuíssimo jejum, a se expressar”.
Esperamos que o nosso “jejum eucarístico” termine logo. Para muitas comunidades cristãs do passado, ele durou muito tempo e, para outras, as da Amazônia, por exemplo, ainda continua. Inexplicavelmente.
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O “jejum eucarístico” das comunidades cristãs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU