03 Março 2020
"Mais um vírus certamente não aumenta sua ansiedade como descartados. Olhando para os invisíveis. Talvez nos ajudará a enfrentar nossos problemas epidêmicos e a ter menos medo, consultar os números da Saúde na África, que, infelizmente, não são aqueles dos vilarejos de férias e dos economistas que se comprazem pelos números do crescimento do continente".
O comentário é de Domenico Quirico, jornalista italiano, publicado por La Stampa, 02-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
E se o Medo, esse poder imaterial, fosse basicamente um luxo, um luxo que só nós, no mundo da segurança, das fábulas limpas, claras, confiantes e amáveis, podemos nos permitir? Em suma: ao mesmo tempo, é uma maldição e um privilégio, que se insinua nas pausas em que as nossas certezas, saúde, PIB, fronteiras abertas, por uma repentina e insidiosa afecção respiratória em massa, parecem escorregar entre os dedos. Afundam em dúvidas, desconfortos, aflições, lágrimas, clamores de vozes ímpares.
Assim, o Medo se torna universalmente visível nos dias na Lombardia e do Vêneto de pessoas em quarentena e entristecidas, uma névoa suja em torno da vida cotidiana. Como nos atentados: que trazem para dentro da nossa casa a guerra que não conhecemos e, acima de tudo, não queremos ver.
Acostumados a nos espelhar em um futuro radiante, onde a Morte é um tópico desagradável de conversa, a ser evitado por ''bon ton'', e nunca nos detemos sobre o sofrimento, parece-nos que o mundo tenha virado de cabeça para baixo: por um vírus. Mas assim que a pressão atmosférica da modernidade e da segurança desaparece, na África, por exemplo, tudo se torna tragicamente mais simples.
O pânico se torna luxo, como os hospitais assépticos e equipados, os virologistas, as vacinas que mais cedo ou mais tarde serão encontradas, as ambulâncias, as quarentenas de precaução, o turismo, os supermercados a serem esvaziados. Que eles não têm. Os homens que moram lá dispensam o Medo sem titubear, porque não podem se permiti-lo.
A segurança de sobreviver, permanecer saudável, não morrer de fome ou de kalashnikov e facões, no desgaste daquelas existências, no mundo pelo qual eu viajo, não está disponível. A Praga é permanente, como a vida e a morte.
Depois de uma semana de nossa própria "praga", as frases se misturam, os discursos dos políticos, epidemiologistas, catastrofistas tenazes e imaculados "sanitaristas" agora estão lotados de papel, esgotadas também as elucubrações sobre os desinfetantes, a lavagem de mãos e as máscaras; também está mais difícil a busca de coincidências, às custas de alguns desvairos filológicos, com as doenças bem escritas por Manzoni, Tucídides, Defoe e Boccaccio e até a praga metafísica de Camus, uma espécie de grotesco antídoto da literatura. Então é hora de uma viagem concebida como um exame de consciência, no outro mundo que está à nossa volta. Só assim nos libertaremos do Medo: que é feito do “olhem apenas para mim”, não tirem o olhar, é proibido evocar outras vítimas.
Por exemplo: recentemente atravessei o Sahel, onde quatro milhões de homens, mulheres e crianças estão expostos à desnutrição e à possibilidade imediata de fome. Por trás, há uma mortal mistura de insegurança causada por guerras étnicas e fanatismo islâmico que, nas áreas rurais, obriga agricultores e pecuaristas a se tornarem prófugos, abandonando o gado e os campos; a que se acrescenta a desertificação. A fome, a mais primitiva das pragas, endêmica, recorrente em ondas, nos lugares do mundo em que a geografia simboliza as dificuldades da vida. Olho nos olhos a fila das pessoas famintas que se estendem nos lugares onde esperam encontrar comida. Não há medo, mas aquele pouco de indômito fatalismo que entra no sangue dos povos acostumados a realmente arrancar a vida do nada.
Entendo o que um amigo que mora no Níger escreveu para mim, respondendo à minha descrição detalhada do vírus, das vítimas idosas, das atividades econômicas interrompidas: “Bem-aventurados vocês, que só têm o problema do coronavírus, aqui não conseguimos nem contá-los, os problemas...” Sim: continentes inteiros, onde a vida está suspensa por fios insignificantes, um abismo diário no qual se pode cair sem ter a impressão de se machucar, um abismo mãe, um precipício de sombra antigo como o homem e a praga, um funil infinito no qual, se você vive ali, se enfia todos os dias como se fosse uma viagem qualquer.
O mundo das maldições bíblicas, epidemias de guerras, da fome, onde um hospital, quando existe, precisa atender 350 mil pessoas; onde você pode ver estatísticas de crianças que morrem de sarampo (no terceiro milênio!) ou pela mordida de um cachorro com raiva que, como ele, remexia no lixo (não há antídoto contra a raiva). Onde os homens não choram. E ninguém pode ter medo. Mais um vírus certamente não aumenta sua ansiedade como descartados.
Talvez nos ajudará, a enfrentar nossos problemas epidêmicos e a ter menos medo, consultar os números da Saúde na África, que, infelizmente, não são aqueles dos vilarejos de férias e dos economistas que se comprazem pelos números do crescimento do continente. Mas eles não percebem que a riqueza aumenta, sim, mas vai para as mãos de cerca de quarenta bandidos, os presidentes, com quem fazemos negócios. Descobre-se que milhares de pessoas morrem de cólera, dengue, listeriose, febre de lassa todos os anos.
Que em Madagascar houve uma epidemia de peste mortal, a verdadeira, e realmente manzoniana. E existe o ebola: lembram-se do ebola em 2014, o surto brutal de febre que matou vinte mil pessoas na África Ocidental?
No Congo, a epidemia nunca terminou, arrefece, ressurge, mata.
Da Nigéria ao Sudão, da Zâmbia à África Central, o medo de se infectar, de morrer, não passa de um imenso distúrbio fatal. O medo é uma questão entre nós e nós; os outros, aqueles do terceiro mundo, não aparecem na fotografia. Talvez olhar para eles nos ajude a ter mais coragem.
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África, o continente que não chora. “Bem-aventurados vocês que só têm o coronavírus” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU