23 Abril 2020
Judith Butler é filósofa feminista e professora da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Em fins de março, a editora ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio) lançou Sopa de Wuhan: pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemia, uma coletânea de textos de vários intelectuais sobre a Covid-19, entre eles, além de Butler, Byung Chul-Han, Slavoj Zizek, Franco "Bifo" Berardi e David Harvey. Nesta entrevista, a autora de Problemas de gênero reflete sobre o mundo açoitado pela pandemia de coronavírus.
A entrevista é e Constanza Michelson, publicada por Ctxt, 20-04-2020. A tradução é do Cepat.
Como você está? Nesses dias, seu país foi duramente açoitado pelo vírus.
Estou bem, obrigada. Estou confinada em casa, como todos na Califórnia, mas posso caminhar e me encontrar com pessoas através do aplicativo Zoom. Todos conhecemos pessoas que estão doentes, e alguns de nós conhecemos outras que morreram.
Como vê o tratamento que foi dado à pandemia? Em uma entrevista, dizia que Trump quis comprar os direitos exclusivos de uma possível vacina de uma empresa alemã, mas que o responderam que “o capitalismo tem um limite”.
Por um lado, há governos que tendem a negar a realidade do vírus e como se propaga, e estão colocando em risco sua gente. Bolsonaro é o exemplo mais óbvio. Por outro lado, a gestão do coronavírus pode se tornar uma ocasião para afirmar e fortalecer o controle governamental. É o que vemos em Israel e na Hungria, mas também em muitos países onde os militares são chamados a administrar a população.
Pessoalmente, sou a favor de uma resposta governamental forte, já que se necessita de mais espaço nos hospitais, mais tratamentos e mais informação. Ao mesmo tempo, vemos muitos casos em que as comunidades compreendem a necessidade de se autoisolar para o seu próprio bem, pela sua própria saúde e a saúde dos outros. E esta é uma forma de autogoverno muito impressionante. Não tem como prever em que direção a política caminhará após o coronavírus, mas agora temos a oportunidade de fortalecer os ideais de solidariedade social.
O capitalismo poderia, de fato, se ver obrigado a ter um limite? Ou, talvez, como aconteceu em outras catástrofes, ganhe um novo impulso.
O mundo deve mudar, e os ideais do socialismo democrático são os que mais deveriam ser estimados. Quando vemos como certas populações se veem privadas de atenção médica e direitos básicos, e que isto leva a sua mais provável morte, devemos responder com indignação e compromisso. Nunca foi tão importante garantir refúgio, atenção médica e participação pública na construção de uma democracia. Muitas corporações estão prontas para se beneficiar de tratamentos médicos, especialmente vacinas, e na medida em que os governos permitam que os mercados decidam o preço e a distribuição de tais bens, os pobres ficarão privados de seus direitos. Trump trata o governo como se fosse um negócio. Esta pode ser uma característica definidora do neoliberalismo. Mas, idealmente, deveria preservar os direitos básicos das pessoas, especialmente dos pobres, a uma vida habitável.
A pandemia acentuou o debate sobre segurança e liberdade. Até que ponto devemos ceder à vigilância em benefício da saúde?
A intervenção de Agamben [filósofo italiano criticado por seu artigo A invenção de uma epidemia, no qual denunciou os riscos trazidos pelos estados de exceção decretados pelo vírus] foi claramente um erro. Ele só conseguia ver a intensificação do poder estatal e a perda de liberdades civis para o povo. Mas é necessária uma resposta governamental forte para garantir que os recursos médicos estejam disponíveis para as pessoas e que sejam distribuídos equitativamente. Para assegurar tanto a vida como a igualdade, necessitamos de um poder governamental responsável.
Agamben respondeu às críticas dizendo – entre outras coisas – que as guerras sempre deixaram legados: concertinas, centrais nucleares... Talvez esta catástrofe nos deixe “a distância social” ou a educação on-line. O que poderia ocorrer com a biopolítica?
Biopolítica é um termo que descreve aquelas operações de poder que buscam gerir populações. Não são necessariamente decisões emitidas pelo poder soberano, mas, com mais frequência, são políticas e práticas que surgem de diversas origens dentro das regulamentações governamentais e sociais. A condução do coronavírus tem sido dirigida pelo poder executivo ou soberano, que não é o mesmo que a biopolítica.
Ao mesmo tempo, o tipo de racionalidade que os governos utilizam está impregnado de suposições biopolíticas. Quem deve receber os medicamentos, quando forem desenvolvidos, e quem não? Haverá uma nova forma de eugenia e como será administrada? Que vidas estarão dotadas de valor e que vidas serão consideradas prescindíveis?
Essas formas de dividir as populações são biopolíticas. Joseph-Achille Mbembe as chamou de “necropolíticas”: formas de organizar a morte. Na medida em que entra em jogo o cálculo de custo-benefício, escutamos os representantes do governo decidirem implícita ou explicitamente quem deve viver e quem deve morrer. Não é necessário “executá-los”, conforme procederam os soberanos tradicionais. Podem “deixá-los morrer” ao não proporcionar benefícios para a saúde ou refúgios seguros, ao manter as pessoas nas prisões, onde a taxa de infecção é alta ou, no caso de Gaza, ao manter a fronteira fechada.
Volta-se a falar da importância da verdade para enfrentar o dano provocado pelas ‘fake news’. Mas também surgiu um discurso sobre a ciência como a única disciplina verdadeira, que parece estar muito mais a serviço de negar os conflitos políticos. No Chile, por exemplo, há aqueles que dizem que hoje não se deveria continuar pensando na crise social que se deflagrou em outubro.
Isso me parece um movimento cínico, muito parecido a que Netanyahu suspenda os procedimentos judiciais contra ele, devido ao vírus! Tais tipos de movimentos invisíveis são injustos e é preciso resisti-los. Também acredito que é o momento da verdade e da ciência. Nos Estados Unidos, temos um presidente que mente para nós a respeito do vírus, da ciência e do futuro. Estou muito grata de que haja epidemiologistas corajosos. Todos dependemos vitalmente de uma boa atenção médica, de trabalhadores da saúde em quem possamos confiar e de uma excelente pesquisa científica. Portanto, o conhecimento sobre o vírus deve ser veraz.
Se nos perguntamos por que deve ser veraz, há muitas razões: os cidadãos têm direito a conhecer as condições em que vivem e a emitir juízos sobre se estão sendo bem atendidos por seus governos. Nesta última declaração, notará que “o direito a saber” e o “juízo” são conceitos que estão fora da ciência, e que pertencem à ética e a política da atenção médica. Quem decide se alguém pode ter acesso e que condições decidem se pode pagar? A ciência do tipo médica não pode responder a essa pergunta, mas a ética e a política sim. E se perguntamos o que constitui a “autonomia” e como se define, então, estamos no campo da interpretação, da ética e das humanidades.
Portanto, nem sequer podemos descrever alguns dos problemas mais importantes de nosso tempo, caso não recorramos a todos esses modos de pesquisa. E seria uma bobagem pensar que todos estamos de acordo, de antemão, sobre o que é a autonomia e quem deveria tê-la. Essas são questões de interpretação e definição que impregnam o mundo político. Tais perguntas não negam a ciência, mas a ciência não pode responder a essas perguntas.
Um assunto político é sobre quem pode ou não estar em quarentena. Na América do Sul, já são registrados feminicídios e o assassinato de uma menina, durante a quarentena.
O lar costuma ser figurado como um espaço “seguro” contra o vírus. Inclusive quando esse é o caso (o que nem sempre é certo), não significa que seja seguro para as mulheres que sofrem violência dentro de seus próprios lares. Deveria haver outras formas de refúgio que não dependam de uma falsa ideia do lar como um lugar seguro. Espero que possamos reimaginar o que significa “refugiar-se”. Esse é um conceito em que os governos se baseiam, mas, muitas vezes, é uma noção idealizada do lar familiar que oculta a verdade.
Em seu último livro, “The force of non-violence” [A força da não-violência], desenvolve a ideia de interdependência. A relação com outros não é uma espécie “voluntariedade”, mas algo que nos constitui. Diz, então, que destruir o outro é destruir algo de nós mesmos. Esta crise nos obriga a experimentar a interdependência para além de um clichê?
Não gostaria de dizer que o vírus está servindo aos propósitos da educação. O vírus deve ser curado, e não há uma lição necessária que o vírus nos ensine. E, no entanto, a forma como o vírus funciona nos desafia a repensar o que é ser você mesmo. Posso estar infectado, mas também posso infectar mais alguém. E isto pode acontecer sem que eu saiba. Então, este “eu que sou” pode ser prejudicado, e pode prejudicar outros.
Estou conectada não apenas com pessoas que conheço, comunidades das quais faço parte, mas também com o estranho. Posso prejudicar esse estranho ou ser prejudicado por esse estranho, e isto é certo não apenas no mundo criado pelo vírus, mas também em nosso mundo cotidiano.
A avareza corporativa do Norte depende da política extrativista que devastou o Sul. No entanto, aqueles que insistem nesse “direito” à exploração, não se veem interpelados pelo prejuízo ético. Destrói-se o potencial de reciprocidade, a ideia de que poderíamos viver juntos em condições de igualdade, em um mundo habitável, uma terra habitável.
O que significa o poder da não-violência? É possível convencer disso aqueles que a exercem pelo poder, mas também aqueles que a consideram uma via legítima de luta social?
Meu argumento é que geralmente cometemos um erro, se pensamos que a violência é o meio com o qual podemos conseguir um fim não violento. Os meios que utilizamos para mudar o mundo já supõem uma visão de mundo. Se escolhemos a violência como um meio, trazemos mais violência ao mundo, e essa violência não podemos controlar.
É possível uma política da interdependência, quando os regimes de subjetivação promovem o individualismo e o “capitalismo do ego”.
É claro, um mundo de igualdade e interdependência parece impossível, nessa perspectiva. Mas essa é uma razão a mais para desenvolver tal visão. Não devemos aceitar que o “capitalismo do ego” seja um fato necessário e imutável. É possível resisti-lo e miná-lo. Vemos isso nos fortes movimentos de solidariedade das mulheres, indígenas e pobres.
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“O mundo deve mudar, e os ideais do socialismo democrático são os que mais deveriam ser estimados”. Entrevista com Judith Butler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU