14 Mai 2020
Marcelo Percia (Buenos Aires, 1954) é ensaísta, psicanalista e professor na cátedra de Teoria e Técnica de Grupos, na Faculdade de Psicologia, da Universidade de Buenos Aires. Desde o início da quarentena, Percia divulga suas reflexões sobre esta situação inédita atravessada pelo mundo. A incerteza, o medo, a angústia, a esperança, a relação Estado-mercado, o senso comum e a normalidade são alguns dos conceitos que repassa nesta entrevista.
A entrevista é publicada por Diario Z, 11-05-2020. A tradução é do Cepat.
O que mais mobilizou você, desde que a crise do coronavírus foi deflagrada?
Uma das coisas mais comovedoras do ponto de vista da civilização é a morte não poder ser acompanhada. Sempre morremos na solidão, mas o ingresso na morte desejamos que seja acompanhado, com um abraço, um olhar, com alguém que segure sua mão nesses últimos momentos. Uma coisa que está acontecendo com este vírus é que a morte não é acompanhada. O mesmo com a dor. É uma das coisas mais dolorosas, um dos maiores horrores. E depois temos a vida sem o abraço, sem a companhia, que coloca diante de nós uma proposição que não tínhamos presente: uma vida assim não faz sentido ser vivida. Estas duas coisas são as que mais me impactam.
No comum viver, o problema da morte e a proximidade são questões cruciais, ainda que não se fale delas. Nestas circunstâncias, precipitou-se tudo. Na história da literatura castelhana, uma das expressões que mais amamos, que apresenta essa resistência à solidão da morte, está nos sonetos de Quevedo: “Pó será, mas pó no amor”. Não conheço outro verso com tanta potência: vamos nos tornar pó ou cinza, mas a ideia de pó no amor é a última façanha diante da morte. A morte neste contexto, impede essa façanha.
Quais são os efeitos imediatos na psicologia coletiva?
A circunstância atual é uma grande lente de aumento, as afetividades da vida em comum aumentam. A pergunta que me faz é a pergunta da incerteza. Não temos uma resposta certa, nem sabemos quando isso acaba. Não a tem os sanitaristas, nem ninguém. Isso é a incerteza. E diante da incerteza só se alcança o que se chama esperança. A esperança é a única que pode ser oferecida, a esperança sabe que espera.
A pergunta é: o que espera a esperança? Há muitas esperanças que esperam voltar ao que chamam de normalidade. Há uma discussão sobre isto. Assistimos a um momento extraordinário em que, globalmente, está sendo discutido o que significa voltar à normalidade. A primeira afetividade que aumenta na quarentena, então, é a incerteza. Equivocadamente, deseja-se falar que estamos diante de um inimigo invisível, e isto esboça uma ideia de defesa muito difícil: como nos defendemos de algo que é invisível? As paranoias precisam identificar o inimigo. Toco ou não toco? Onde está a carga viral? E a depressão é assinalar algo perdido. Aqui, está mais em jogo a incerteza que a depressão. Não sabemos se perderemos ou não, não conhecemos a dimensão da mudança.
A incerteza é o mais próximo que conhecemos da angústia. Falam uma mesma língua que é intraduzível. Quando se está angustiado, é difícil descrever o que está acontecendo, não é ansiedade, não é tristeza. Estamos diante de uma situação intraduzível. E não necessariamente se deve essa questão de maneira negativa. Simplesmente acontece que diante do intraduzível entramos em perplexidade porque esta é uma sociedade que a todo tempo traduz tudo, dá certeza, oferece formas de segurança. Neste contexto, não há segurança, não há certeza que vale. O intraduzível abre uma faixa que não esperávamos: abre-se a faixa do possível. Tudo pode ser possível, para o bem ou para o mal.
A esperança é que se abram possibilidades para estar melhor?
Não, a esperança só espera o bem. E sabe o que espera. A esperança projeta no futuro aquilo que gostaria que ocorresse. Ao contrário, na incerteza falamos de uma espera que não sabe o que virá. E como não se sabe o que virá, abre-se o possível. Poucas vezes na vida e na história se apresentou a possibilidade de imaginar o inimaginável, de pensar o possível, de estar na espera de um futuro que ainda não está fechado. Se a civilização aproveitasse este momento, seria extraordinário.
A incerteza não é algo novo para o ser humano, a novidade é que é uma incerteza global.
O fato de que seja planetária... nunca ocorreu algo assim. Nós conhecemos a palavra “incerteza” e a usamos cotidianamente, mas são incertezas provisórias para as quais o sistema tem um montão de respostas preparadas. Hoje, as empresas de seguros... que seguro podem vender a você nessas circunstâncias? O que eu chamo “falas do capital” também estão em perplexidade, não têm resposta. As respostas foram deixadas para os sanitaristas.
Que ferramentas temos para enfrentar este momento de incerteza? Onde encontramos o consolo?
Talvez buscar um consolo não nos convém. Tampouco nos convém ficar infectados pelo medo em cair na incerteza. Tampouco nos convém alguns discursos do medo, da espetacularização. Não nos convém o consolo porque sempre reconforta, inclinado à aceitação do que acontece. Não nos convém considerar ruim cair na incerteza, porque se abre uma possibilidade e este mundo precisava passar por isto, porque parecia tudo definido. E não nos convém as versões do medo, com sua gramática do pânico, porque estão inclinadas a viver a angústia como algo negativo.
Essa é a lógica midiática.
Claro. A lógica midiática e da fala do capital não podem pensar na angústia. Confundem a angústia com depressão e pânico, procuram medicá-la. Mas a angústia não pode ser medicada. É um momento para reafirmar o direito à angústia, mas não como algo negativo. Os noticiários confundem sensibilidade com espetacularização, que é uma forma de negação da angústia. Porque a angústia incuba raiva, uma dor comum. E essa raiva se torna perigosa para o sistema, inclusive no estado de confinamento.
Eu acredito que temos que discutir a linguagem com a qual definimos o que acontecendo conosco, não temer a incerteza, a perplexidade, despejar a angústia do medo e a libertar, resistir à espetacularização, inventar formas de proximidade. E discutir as palavras que são utilizadas pelos sanitaristas, entrar no debate. Discutiu-se muito a gramática bélica utilizada no momento. Não é a mesma coisa dizer confinamento, refúgio, reclusão ou recolhimento, e sobretudo não é o mesmo dizer Estado protetor e Estado que cuida ou Estado repressor. Existem arestas.
Você propõe discutir a interpretação do que está acontecendo.
Certos setores usaram a palavra Comunismo para assustar, mas acertaram em outro sentido. O que a Argentina e o resto do mundo vivem, o que está provocando tensão nas relações planetárias é a relação Estado-Mercado, como nunca antes nos últimos 50 ou 60 anos. Neste momento, fica claro que é preferível confiar no Estado e não no mercado. Isto era inimaginável há seis meses. É preferível confiar em uma autoridade pública, responsável, do que nos poderes cruéis do mercado, que além do mais são suicidas.
A luta pelo mercado das máscaras, das vacinas, tudo isso é suicida. Isto não passa por uma avaliação do Estado, mas pelo questionamento do que se chama mercado, os poderes privados. Mas recordemos que a preferência é uma condição frágil da escolha. Opta-se pela preferência quando se pode escolher entre alternativas dadas e quando não há tempo. Por isso, digo que acertaram com a palavra Comunismo, onde aparece cristalizada a ideia do comum. Temos que resgatar a ideia do comum porque hoje está relacionada com essa expressão terrível: o senso comum, o sentido das maiorias normalizadas. O senso comum busca o consolo do “já voltaremos à normalidade”.
O que seria essa normalidade?
É o que o capital instalou como afetividade das maiorias, é unificante, é para todos igual. A normalidade é o que mais se parece com uma vala comum. O senso comum é horroroso. Por isso, é preciso recuperar a ideia do comum, do comum cuidar, do comum proteger, do comum sentir, do comum escutar, essa ressonância do comum é o que faz com que temam algo que acreditavam sepultado. É a ideia de um comum viver, algo que certa vez se chamou comunismo.
Pensando no dia depois, abre-se a possibilidade de discutir isto?
Eu gostaria. Alguns meses atrás, era impensável falar sobre isto. Pode ser que vença o senso comum e que se imponha essa normalidade, que tudo continue visto como antes. Mas também pode acontecer que durante este apagão da normalidade tenhamos visto coisas que não esqueceremos. Que não esqueçamos que há uma destruição do habitat que não pode continuar, que não esqueçamos que os sistemas imunológicos não são individuais, que precisamos de um equilíbrio de todos os ecossistemas.
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“A normalidade é o que mais se parece com uma vala comum”. Entrevista com Marcelo Percia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU