"O ponto é que estamos tendo dificuldade para nos acostumar com a ideia de que recomeçar não pode significar começar de novo depois que a 'guerra' tiver acabado. Essa é uma imagem tranquilizadora de tipo regressivo. Ela nos projeta para um futuro próximo, finalmente livres da angústia do vírus. Mas todo trauma sempre deixa restos que nunca podem ser completamente eliminados", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 11-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o psicanalista, "essa é a duríssima prova de realidade que esse trauma coletivo exige e que não poderá ser adiada. É a angústia de não poder nos representar como seremos e o que nos tornaremos em um tempo que não nos permita separar o passado traumático do futuro do reinício. É a zona instável do meio pela qual estamos atravessando: não a luz ou as trevas, mas a luz oblíqua nas trevas; não o medo ou a coragem, mas a coragem no medo. Não poderemos mais ser o que fomos, mas ainda não sabemos o que poderemos nos tornar".
Eis o artigo.
A primeira angústia foi persecutória: o medo do contágio, da doença e de seus riscos. Se o perigo de contágio está potencialmente em toda parte, é necessário o distanciamento social para conter sua presença intrusiva. Meu semelhante se revelou não mais por motivos ideológicos, mas por motivos científicos, como um perigo ao reativar o medo arcaico do desconhecido.
Quando o primeiro decreto do governo, ligado à emergência da epidemia, comprimiu nossa liberdade no confinamento de nossas casas, apenas temporariamente resolveu essa primeira angústia. Essa resolução traduziu-se inicialmente em um sentimento sem precedentes de solidariedade e unidade nacional. O trauma coletivo, em vez de separar na dor, tornou nossas existências mais coesas. Nos sentimos unidos em uma comunidade feita de solidões. Uma espécie de "narcisismo de equipe" se desenvolveu positivamente para combater o desespero de uma doença que se mostrou muito mais agressiva e temível do que era inicialmente apresentada e pelas mortes que se acumularam ao longo do tempo. O nós prevaleceu sobre o eu, o caráter individualista da liberdade deu lugar à ideia coletiva de liberdade como solidariedade.
Mas atrás da porta espreitava outra angústia. Não mais aquela do risco de contágio, nem a da privação de liberdade, mas aquela muito mais insidiosa e catastrófica da perda do mundo. Essa nova angústia não se manifesta mais com vivências persecutórias de intrusão - ser contagiados pelo vírus -, mas assume as características de uma espécie de luto coletivo. Perdemos o nosso mundo, os nossos hábitos, a possibilidade de viver juntos como antes. É a atmosfera francamente depressiva em que todos acabamos encarando o retrato das cidades do mundo transformadas em desertos. A configuração dessa segunda angústia confirmou a experiência apocalíptica do fim do mundo: não será mais como antes.
Portanto, as mudanças que a epidemia nos impõe não serão apenas medidas temporárias, mas inevitavelmente alterarão nossa vida juntos. Uma nova angústia se abre, a mais atual: a verdadeira restrição não é mais aquela da reclusão, mas a da necessária convivência com o vírus. Do ponto de vista social, isso significa esmagar os sujeitos mais frágeis em uma condição de total dependência e lançar na impotência aqueles com potencial generativo maior. Para os primeiros, a angústia é a do abandono, para os segundos, a da imobilidade. Para uns, a angústia é a da sobrevivência; para os outros, a da morte profissional e empresarial. O ponto é que estamos tendo dificuldade para nos acostumar com a ideia de que recomeçar não pode significar começar de novo depois que a "guerra" tiver acabado. Essa é uma imagem tranquilizadora de tipo regressivo. Ela nos projeta para um futuro próximo, finalmente livres da angústia do vírus. Mas todo trauma sempre deixa restos que nunca podem ser completamente eliminados.
Tivemos que nos acostumar com o intruso, com um governo que só pode ser provisório em seu caráter ameaçador. Nossa fantasia seria, ao contrário, a de um verdadeiro começo, livre da presença incômoda do vírus. Mas é uma fantasia infantil: separar claramente o bem do mal para libertar nossas vidas da angústia que sua presença simultânea acarreta. A nova angústia é a da reabertura da vida em um tempo de inevitável convivência coletiva com o mal. É aquela de uma abertura à vida tanto necessária quanto incerta, fatalmente exposta ao risco. A tarefa de uma comunidade é certamente a de proteger a vida, especialmente dos sujeitos mais frágeis, mas também é aquela, como acontece no mito bíblico do profeta Noé, que sobreviveu à catástrofe do dilúvio, de saber plantar a vinha.
As melhores partes de nós e nosso país são aquelas que se assemelham a Noé; o "remanescente salvo" da destruição, as forças positivas que resistem à devastação do mal. Mas, no nosso caso, a vinha exige ser plantada, mesmo que ainda exista morte e destruição ao seu redor. Não poderá acontecer no final do dilúvio, mas em uma zona de trânsito, fatalmente incerta. Essa é a duríssima prova de realidade que esse trauma coletivo exige e que não poderá ser adiada. É a angústia de não poder nos representar como seremos e o que nos tornaremos em um tempo que não nos permita separar o passado traumático do futuro do reinício. É a zona instável do meio pela qual estamos atravessando: não a luz ou as trevas, mas a luz oblíqua nas trevas; não o medo ou a coragem, mas a coragem no medo. Não poderemos mais ser o que fomos, mas ainda não sabemos o que poderemos nos tornar.
O certo é que o que nos tornaremos ainda não foi, não pode ser o que já fomos. Não mais depois desse trauma. Esse é o nosso maior medo. Mas como Jung costumava dizer: "Onde está o medo, lá está sua tarefa".
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