Triagem de pacientes e racionamento de respiradores: bioeticistas debatem os problemas éticos da pandemia

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07 Abril 2020

Notícias sobre o racionamento de respiradores salva-vidas, sobre a emissão pelos hospitais de ordens gerais de não ressuscitação (DNR, na sigla em inglês) e sobre a sugestão de políticos de que algumas vidas humanas são dispensáveis em prol da economia têm ressaltado a importância de um marco ético para a tomada de decisões durante a pandemia do coronavírus.

A reportagem é de Heidi Schlumpf, publicada em National Catholic Reporter, 06-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Aqueles que costumavam ser exercícios de livros teóricos têm se tornado dilemas para sistemas de saúde sobrecarregados ou que em breve assim estarão.

Mas os bioeticistas católicos dizem que as decisões clínicas de triagem, embora importantes, são apenas uma parte de uma série de preocupações éticas mais amplas, incluindo estratégias preventivas como licença médica remunerada, comunicação sincera dos líderes políticos e assistência no pagamento de testes e tratamento.

A preocupação com o bem comum e com as populações mais vulneráveis se torna ainda mais urgente durante uma pandemia, disseram eticistas católicos ao NCR. E a preparação e a prevenção são questões tão morais quanto as decisões do fim da vida.

Quase 1.400 bioeticistas e lideranças da saúde disseram isso em uma carta à Casa Branca e ao Congresso dos EUA datada de 21 de março. A carta foi organizada pelo Hastings Center, um instituto de pesquisa em bioética com sede em Nova York, e inclui vários signatários católicos importantes.

A carta exigia mais ações do governo para “melhorar a saúde pública, proteger a saúde dos indivíduos, especialmente os vulneráveis, e preservar a vitalidade da nação”.

Ela urge o governo federal dos EUA a garantir a fabricação e a distribuição dos suprimentos necessários, a se comprometer com o pagamento dos cuidados e do tratamento da Covid-19 e a criar uma estratégia de comunicação abrangente e confiável. Populações vulneráveis, como os sem-teto ou as pessoas que estão em prisões e em centros de detenção de imigrantes, devem ser uma prioridade, afirma a carta.

“As respostas às pandemias revelam os valores e as crenças de uma nação”, diz a carta. “Nossa crença no igual valor de todas as pessoas obriga a essas recomendações, mas o mesmo acontece com um cálculo mais utilitário, que reconhece que, se deixarmos de proteger os outros, nossa própria segurança e a vitalidade da nação serão prejudicadas.”

A carta acrescenta: “A ética exige que os agentes morais ajam para evitar danos evitáveis, que reconheçamos o igual valor de todos os membros da sociedade e que cuidemos especialmente dos mais vulneráveis entre nós”.

Uma pandemia como a da Covid-19 é um lembrete de que a saúde não é um bem individual, mas sim social, disse o padre jesuíta Andrea Vicini, médico e professor de teologia moral no Boston College.

“Minha saúde é a saúde do outro, e a saúde do outro é a minha saúde”, disse Vicini ao NCR. “Se tomarmos ciência dessa conexão, então teremos que perguntar o que estamos fazendo para implementar serviços de saúde que beneficiem a todos.”

Embora a carta do Hastings Center não use a linguagem católica do “bem comum”, a sua visão mais ampla da justiça diante da pandemia é útil, disse Vicini, que assinou o documento. “Ao ajudar a abordar os aspectos específicos dessa situação, queremos continuar implementando a visão do tipo de sociedade que queremos e de como cuidar da humanidade.”

Triagem e racionamento

Apesar da necessidade de uma visão social mais ampla da justiça durante uma pandemia, relatos que vêm da Europa sobre a necessidade de reservar respiradores salva-vidas para os pacientes mais jovens – e, de acordo com a NBC News, preocupações de que “planos ou propostas de racionamento de respiradores no Alabama e no Estado de Washington discriminariam os deficientes” – preocupam os eticistas sobre a imoralidade da discriminação durante a crise.

Perguntar por que os Estados Unidos não estavam mais preparados para uma pandemia é uma questão moral justa, mas também o é questionar os critérios com os quais quaisquer decisões de triagem ou de racionamento serão tomadas se não houver a capacidade de ajudar a todos.

“Em pandemias, especialmente quando os recursos são escassos, o paradigma se torna mais complexo. Os profissionais da saúde devem fazer trágicas escolhas de alocação com consequências de vida ou morte. Existe uma vasta literatura bioética sobre como abordar as decisões de triagem, e os bioeticistas estão bem treinados para orientar os profissionais e os sistemas de saúde para enfrentar escolhas difíceis”, diz a carta do Hastings.

O racionamento não é necessariamente contrário ao ensino moral católico, disse o padre vicentino Richard Benson, vice-presidente e reitor acadêmico do Catholic Theological Union, em Chicago, cuja formação acadêmica é em bioética.

“O fato é que os medicamentos ou as terapias essenciais para salvar vidas geralmente não estão disponíveis para todos, e por isso a Igreja tem se engajado com diversas formas de triagem, uma espécie de racionamento, desde o início da medicina moderna”, disse ele.

Benson compara as decisões a serem tomadas sobre os respiradores com as dos transplantes, em que a demanda por órgãos também excede a oferta. “Não é uma decisão no sentido de que o primeiro a chegar deve ser o primeiro a ser servido”, disse ele, “mas sim de quem provavelmente poderá utilizar isso para que possa ser uma medida que salve vidas”.

Mas, como no caso dos transplantes, a decisão sobre quais pacientes com Covid-19 serão colocados nos respiradores – ou, infelizmente, que deverá ser removido de um – deve ser médica, com base em uma avaliação completa da condição médica e do prognóstico do paciente para uma eventual recuperação, não na capacidade de pagamento, no status ou na celebridade, disseram os eticistas.

“Para fazer isso de uma forma justa, precisamos aplicar os mesmos padrões a todos os pacientes”, como a pontuação na Avaliação de Falhas de Órgãos Sequenciais (Sofa, na sigla em inglês), disse Brian Kane, diretor sênior de ética da Catholic Health Association.

Mesmo antes da pandemia do coronavírus, as equipes médicas levavam em consideração o prognóstico do paciente, assim como quaisquer diretrizes antecipadas que eles pudessem ter adotado sobre seus cuidados no fim da vida antes de decidir usar respiradores ou outros procedimentos invasivos.

“Por causa do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, muitas coisas são usadas para prolongar a vida, e pode haver uma expectativa de que seu uso seja automático”, disse Shawnee Daniels-Sykes, professora de teologia da Mount Mary University, em Milwaukee. “Mas simplesmente porque o equipamento existe, isso não significa necessariamente que devamos usá-lo.”

Aqueles que o ensino católico costumava chamar de meios “ordinários” e “extraordinários” são referidos agora como “proporcionais” e “desproporcionais”, mas a essência é a mesma: os pacientes podem recusar o tratamento se julgarem que o fardo físico, espiritual ou financeiro excedem o benefício, de acordo com um documento de 1980 da Congregação para a Doutrina da Fé [disponível aqui, em português].

Quando essas decisões precisam ser tomadas por uma equipe médica – especialmente em meio a uma pandemia – elas devem ser guiadas por diretrizes éticas, como as que foram divulgadas no dia 23 de março pelo New England Journal of Medicine, intituladas “Alocação justa de recursos médicos escassos tem tempos de Covid-19” [disponível aqui, em inglês], que pede a tentativa de maximizar os benefícios para a maioria das pessoas, tratando todas de modo igual. Elas também consideram a necessidade de priorizar os profissionais da saúde.

Em um comunicado do dia 3 de abril, três bispos que presidem comissões da Conferência dos Bispos dos EUA citaram documentos de ética da Catholic Health Association of the United States, da Catholic Medical Association, da National Association of Catholic Nurses-USA e do National Catholic Bioethics Center como orientações.

A declaração foi assinada pelo bispo de Fort-Wayne-South Bend, Kevin Rhoades, da Comissão de Doutrina, o arcebispo de Kansas City, Joseph Naumann, da Comissão de Atividades Pró-Vida, e o arcebispo de Oklahoma City, Paul Coakley, da Comissão de Justiça Interna e Desenvolvimento Humano.

Os bispos argumentaram que a boa administração dos recursos deve servir ao bem comum, sem qualquer discriminação com base em deficiências, recursos financeiros, idade, status de imigração ou raça.

“O principal na nossa abordagem aos recursos limitados é sempre ter em mente a dignidade de cada pessoa e a nossa obrigação de cuidar dos doentes e moribundos”, diz o comunicado dos bispos. “Esses cuidados, no entanto, exigirão que os pacientes, suas famílias e os profissionais médicos trabalhem juntos na ponderação dos benefícios e dos encargos dos cuidados, nas necessidades e na segurança de todos, e no modo como distribuir os recursos de forma prudente, justa e imparcial.”

Embora o ensino moral católico permita algumas decisões utilitárias – maximizando o maior benefício para a maioria das pessoas – os eticistas católicos alertam contra um cálculo puramente utilitário que não inclua a dignidade de todas as pessoas. O Papa Francisco criticou um utilitarismo semelhante na tomada de decisões econômicas que prioriza o lucro sobre as pessoas.

“Embora sopesemos as consequências na tomada de decisões morais, traçamos certas linhas que não ultrapassaremos, independentemente das consequências”, disse Tobias Winright, professor de Ética em Saúde e Ética Teológica da St. Louis University. “Os fins não justificam os meios. Os meios devem ser bons, e o fim deve ser bom.”

Qualquer discriminação com base na idade, na incapacidade ou na riqueza seria imoral, disseram Winright e outros bioeticistas entrevistados pelo NCR. A idade de um paciente pode fazer parte de uma avaliação médica, mas, por si só, não pode ser um critério suficiente para recusar o tratamento, disse Winright.

Saúde pública

Menos decisões morais difíceis sobre triagem e racionamento seriam necessárias se as questões de justiça em saúde pública fossem mais bem abordadas, de acordo com Hille Haker, professora de Ética da Loyola University Chicago.

“É por isso que agora importa vincular as questões de ética clínica às questões de saúde pública”, disse ela, “porque toda decisão tomada na clínica é afetada pelas decisões de saúde pública que estão sendo tomadas”.

Haker acredita que as lideranças da Igreja poderiam estar fazendo mais durante esta pandemia para comunicar a importância dos ensinamentos católicos, como as virtudes da prudência e da solidariedade, especialmente para combater a narrativa do “darwinismo social”, segundo a qual algumas vidas são vistas como menos valiosas do que outras.

Ela também adverte contra uma interpretação errônea do princípio católico do “bem comum”, quando usado de modo utilitário para descartar os direitos individuais.

No entanto, alguns eticistas esperam que as questões levantadas pela pandemia do coronavírus possam ampliar a atenção à ética católica para além do foco restrito à ética sexual, de modo a incluir os objetivos sociais da medicina, como articulados nas “Diretrizes Éticas e Religiosas para os Serviços Católicos de Saúde” [disponível aqui, em inglês] ou na declaração dos bispos dos EUA sobre os serviços de saúde, de 1993 [disponível aqui, em inglês], que declarou a assistência médica como um direito humano.

Kane, da Catholic Health Association, espera que isso provoque um debate mais amplo, não apenas sobre a pandemia, mas também sobre como desviar alguns recursos dos cuidados intensivos durante os últimos seis meses de vida para o cuidado da saúde de toda uma população, especialmente daqueles que já estão em desvantagem devido à pobreza.

“Os serviços de saúde católicos enfatizaram como ir ao encontro das pessoas antes que elas precisem de tratamento intensivo”, disse Kane. “Queremos fornecer as condições pelas quais todos possam ser o mais saudáveis possível.”

A emergência global da Covid-19 também poderia chamar a atenção para as condições extremas de saúde enfrentadas pelas populações vulneráveis em todo o mundo, especialmente os refugiados e os habitantes do Sul do mundo, onde as pessoas vivem em barracos com uma dezena de outras pessoas e não têm sabão para lavar as mãos, disse Vicini.

“Vamos ver uma tragédia debaixo dos nossos olhos”, disse ele. “Podemos colocar a saúde pública global no topo da pauta agora? Certamente, isso faz parte de uma visão da justiça.”

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