13 Abril 2020
Do ponto de vista espiritual: "Esta pode ser a mais autêntica de todas as Páscoas que já celebramos até agora, embora não poderemos ir à missa nem sair de casa". O motivo, segundo Vito Mancuso, teólogo e escritor, está inscrito na palavra: “Páscoa é um termo de origem judaica. Os estudos mais credenciados concordam em dizer que significa 'saltar', a partir do gesto que o anjo do Senhor fez quando - no Egito - ele passou pelas casas dos judeus, marcadas pelo sangue do cordeiro: ele as saltou, salvando a vida de seus primogênitos. Hoje, a paixão que o mundo está vivendo passa por dentro de nós, nos atravessa, está nos marcando profundamente. E, marcando-nos, ensina-nos que a vida é um nó que entrelaça duas cordas: uma que é feita de prazer, alegria, felicidade; o outra de dor, desespero e mal-estar. É uma dialética que está bem clara para todas as religiões do mundo e todas as grandes filosofias. Desta vez, porém, somos nós que temos que realizar um salto, escolhendo qual dessas duas partes que compõem a vida queremos privilegiar".
Autor de livros que conseguiram criar questionamentos religiosos para o grande público, Mancuso rejeita muitas das metáforas usadas nas últimas semanas para descrever a condição em que nos encontramos: "Não estamos em guerra nem trancados em uma cela como prisioneiros". Ele não nega que há pessoas que possam se sentir presas no espaço apertado de seu apartamento. Acredita que mesmo assim, podemos ser livres: “A liberdade não é um estado definido: é um processo. Até poucas semanas atrás, podíamos fazer o que queríamos. Circular por aí, ir ao cinema, restaurantes, à casa de amigos. No entanto, estávamos cheios de restrições, imperativos, que nem percebíamos".
A entrevista com Vito Mancuso é de Nicola Marenzi, publicada por Huffingotn Post, 12-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A que você está se referindo?
O fato de os seres humanos serem condicionados por seu corpo (é saudável ou doente?), pela sociologia (são ricos ou pobres?), pela geografia (vêm do norte ou do sul do planeta?). E muitas outras coisas. Mesmo antes de agora, estávamos fechados na casa do nosso eu, na casa de nossa cultura, na casa de nossa identidade, na casa de nossos medos.
E então?
E então reconhecer que estamos acorrentados é a primeira condição para poder se libertar. Qual é o êxodo de que a Bíblia fala, se não este deixar para trás a opressão? Aqui está o significado desta Páscoa, que pode unir crentes e não crentes: reconhecer as outras casas em que estamos fechados para escolher se queremos ficar ali ou preferimos sair.
A ciência é uma dessas casas-prisão?
Se não houvesse ciência, não saberíamos nada sobre esta doença, nem teríamos ideia de como combatê-la. Na verdade, é o ídolo da ciência que nos mantém prisioneiros, nos iludindo de estar em posição de dominar todas as forças da natureza. Até a morte.
Não é uma negação da morte também a ideia da ressurreição que os cristãos celebram hoje?
O cristianismo não tem as ideias claras sobre a morte. Há uma tendência que remonta a São Paulo, que considera a morte filha do pecado, portanto a última inimiga a ser derrotada, antes do triunfo do Reino. E depois há outra vertente, minoritária, que se reporta a São Francisco de Assis, que no Cântico das Criaturas louva a Deus por ter nos dado "nossa irmã morte". Uma visão que a considera parte do ritmo da vida, não como algo estranho, a ser negado. É assim que vejo a morte.
E os italianos que oram neste momento?
As palavras não mentem. Em italiano a palavra pregare (orar) vem do verbo latino precari, do qual também o adjetivo precário. Quem não tem problemas não ora. Aqueles que oram, no entanto, sentem o desejo de encontrar um sentido, ter justiça, de serem acolhidos. Fazem isso porque sentem que no mundo esse sentido é humilhado, insultado, traído. Nessa condição, nos encontramos hoje. E temos uma escolha diante de nós: acreditar que esse sentimento de fragilidade que queremos consolar é fútil e transitório, ou observar que nele existe a possibilidade de outro mundo, onde pode ser encontrado sentido, justiça e acolhimento.
Em sua opinião, em que direção iremos?
Não sei se, como dizem alguns, as estruturas sociais, econômicas e políticas do mundo mudarão. Ou, como outros dizem, tudo será como antes. O que eu acredito é que uma nova espiritualidade nascerá a partir desse momento dramático. Na verdade, tenho a impressão de que já está nascendo.
Do que você intui isso?
Essa doença ataca os pulmões, lembrando-nos quanto dependemos da respiração. Em grego, em latim, em hebraico, em sânscrito, na língua hindu, a palavra espírito significa justamente respiração, ar em movimento, vento. A pergunta é: por que todas essas línguas, entre as muitas palavras que tinham disponíveis, foram buscar justamente esta para nomear aquela parte do ser humano que nós chamamos de espírito?
Você tem a resposta?
Suponho que seja porque o ar é a coisa mais impossível de segurar que exista. Não se vê. Não se sabe de onde vem. Nem para onde vai. É imprevisível e não classificável.
O que isso significa?
Que a espiritualidade não é ir à Igreja: é algo que preocupa todos os seres humanos que querem ser livres, ou seja, todos aqueles que se questionam sobre o problema de gestir as rajadas de vento dentro deles. Não para eliminá-las nem as remover. Porque é esse caos que nos distingue de todos os outros seres vivos e nos torna homens.
Não foi espiritual pedir para abrir as igrejas para a Páscoa?
Não conheço nenhuma grande religião do mundo que não dê grande importância às celebrações públicas. Como não conheço nenhum que não dê extrema importância ao recolhimento. Quando tinha que escolher entre uma e outro, Jesus Cristo dizia: “E, quando orardes, não sejais como os hipócritas, pois que apreciam orar em pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem admirados pelos outros. Tu, porém, quando orares, vai para teu quarto e, após ter fechado a porta, orarás a teu Pai em secreto”.
Você não me respondeu.
Aqueles que pediram para abrir as Igrejas para ganhar alguns pontos nas pesquisas fazem parte desse tipo de homens que sempre usaram Deus para seus negócios terrestres. Sempre houve. Eles nunca tiveram nada a ver com a espiritualidade.
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“Nós já estamos mudando”. Entrevista com Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU