23 Março 2020
"Qual é o sentido de falar sobre "indulgências" neste momento? Eu tento responder, de modo crítico, em uma série de pontos-chave".
A reflexão é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 22-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o teólogo, "este tempo não precisa de "remissão das penas", mas de acompanhamento nos sofrimentos, de orientação na confusão, de recuperação de prioridades elementares. Para falar da Misericórdia de Deus, o tema "indulgências" aqui parece, com toda a franqueza, um exagero inútil".
Quais são as prioridades sobre as quais a Igreja católica pode e deve tomar a palavra, no contexto particular desta Quaresma e Páscoa marcada tão profundamente pela pandemia? Os últimos documentos produzidos pela Cúria romana intervêm, como vimos no post de ontem, com algumas evidências claras, mas também com problema de estilo, linguagem e opções, que merece consideração cuidadosa.
Gostaria de me debruçar sobre o delicado ponto das "indulgências" propostas pelo recente decreto da Penitenciaria Apostólica. Depois de ter remetido a um esclarecimento sobre a "terminologia clássica" com a qual a Igreja fala do tema, e que é facilmente mal compreendida (limito-me a repropor um post publicado em 2015, em vista do Jubileu da Misericórdia), é necessário examinar cuidadosamente a pertinência e a oportunidade de tal intervenção. Qual é o sentido de falar sobre "indulgências" neste momento? Eu tento responder, de modo crítico, em uma série de pontos-chave.
- A evolução do termo indulgência sofreu com Francisco uma aceleração: na Bula de proclamação do Jubileu de 2015-2016, o termo é usado apenas no singular e perde as características "contábeis" que lhe valeram, com toda razão, uma reputação não exatamente brilhante.
- Mas a característica da "indulgência" é ser um "peixe" que pode nadar na água das "penas temporais". Aqui, para evitar equívocos, é preciso explicar bem a seriedade do tema, pelo menos como foi pensado pela tradição medieval. Não diz respeito ao "perdão do pecado", mas à "remissão da pena".
- De fato, toda absolvição, que tenha matéria "circa quam", ou seja, que seja justificada pelo pecado grave, entendido como ruptura da comunhão eclesial, segundo a tradição, implica a superação da "pena eterna", mas não a da "pena temporal". O que isso significa? Isso significa que o sujeito, a quem Deus perdoou, deve responder no tempo, com sua liberdade, à graça do perdão. Deve "trabalhar sobre si mesmo".
- Ora, essa "tarefa penitencial" - isto é, as "obras de penitência" que aguardam quem recebeu a graça do perdão - implica um percurso de elaboração com o qual os homens e as mulheres respondem com suas vidas à vocação do amor e à paz que em Cristo eles conheceram e provaram. Portanto, implica um sofrimento de percurso e um aprendizado doloroso, mesmo brotando da alegria.
- Somente nesse ponto as indulgências podem aparecer no horizonte e fazer sentido. São o ato festivo, extraordinário e excepcional com o qual a Igreja, com sua oração, assume sobre si os esforços dessa mudança e os "remite", cancelando-as, no todo ou em parte. E isso acontece no tempo ou no espaço. É por isso que as indulgências estão ligadas a "tempos especiais" (jubileus, anos santos ...) ou a lugares particulares (santuários).
- Parece-me, portanto, pelo que posso entender, que o contexto de uma grave epidemia, que certamente é um tempo de exceção, tenha características que não exigem tanto uma "remissão festiva das penas temporais", mas sim um "ordinário consolo do sofrimento". Trata-se de "assumir uma dor e direcioná-la", não “da remissão de uma pena".
- Além disso, e aqui tocamos uma questão ainda mais delicada, como eu disse no começo e, como tentei explicar acima, a indulgência faz sentido para o sujeito que vive a tarefa de uma "penitência" a ser realizada ao longo do tempo e que, em vez disso, a descobre misericordiosamente perdoada por um ato simbólico. O sacramento da penitência determina uma condição de "pena temporal" apenas se souber explicitamente tematizá-la. Se celebrarmos a confissão e, como "penitência", recebermos "10 Avemarias", não podemos compreender de forma alguma o valor da "indulgência" como remissão festiva de uma tarefa que não existe, não por nossa má vontade, mas porque assim é hoje geralmente a praxe eclesial, e a própria interpretação da Penitenciaria Apostólica lê o sacramento da penitência como simples união de "confissão" e "absolvição". Acho muito curioso que os dois documentos da Penitenciária sejam tão contraditórios: um fala das indulgências na base de "penas temporais", das quais o outro documento não se importa minimamente. Contradição curiosa no mesmo gabinete.
- Portanto, parece-me que, neste momento, a referência à "indulgência", não como sinônimo de "misericórdia", mas quando entendida como instituto específico exercido pelo Dicastério de Penitenciaria Apostólica, parece deslocada e, de certa forma, gere interferências arriscadas, entre cuidado dos doentes, medo pela incerteza e perdão da pena. Este tempo não precisa de "remissão das penas", mas de acompanhamento nos sofrimentos, de orientação na confusão, de recuperação de prioridades elementares. Para falar da Misericórdia de Deus, o tema "indulgências" aqui parece, com toda a franqueza, um exagero inútil.
- Finalmente, em relação à Bula Misericordiae Vultus de 2015, o recente Decreto da Penitenciaria Apostólica constitui uma involução objetiva em estilo e conteúdo. O fato é bastante evidente, já que se volta a falar com a terminologia de uma "matemática das remissões" que tem dificuldade não apenas para ser entendida, mas ainda mais para ser justificada ou justificável. Nem tudo aquilo de que um Dicastério da Cúria é competente resulta, portanto, também sempre oportuno ou justo.
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Pandemia e indulgências: se realmente sabemos do que se trata, era realmente o caso? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU