19 Julho 2016
"Termos misericórdia é sermos tocados pela dor de outra pessoa. Quando Jesus tem misericórdia, a palavra significa literalmente que ele se sente comovido nas vísceras, sente conturbarem-se os órgãos internos. A palavra latina significa literalmente que a misericórdia por alguém (míseri) toca o coração (cor). Não importa se aquela pessoa está na dor por causa dos seus pecados ou por causa de uma injustiça ou de doença. Somos tomados pela sua dor, pelo seu sofrimento. O motivo é irrelevante", escreve Timothy Radcliffe, teólogo inglês, frade dominicano, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 16-07-2016. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Na bula de proclamação do Jubileu da misericórdia, o Papa Francisco sublinhava que a misericórdia é a via que une Deus e o homem “porque abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, não obstante o limite do nosso pecado”. Além disso, na prece que compôs especificamente para o Jubileu, convida-nos a pedir ao Senhor que a Igreja “com renovado entusiasmo possa levar aos pobres a alegre mensagem, proclamar aos prisioneiros e aos oprimidos a liberdade e aos cegos restituir a visão”. Vê-se que o termo misericórdia é usado em dois sentidos. Em primeiro lugar, significa piedade pelos pobres e pelos enfermos. Dois cegos clamam a Jesus: “Filho de Davi, tenha piedade de nós” (Mateus 9, 27). Aqui a misericórdia é dirigida a pessoas que são portadoras de inabilidades. Além disso, o Evangelho fala também de misericórdia com os pecadores, ou seja, de perdão, Mas, o que tem a ver a misericórdia com os pecadores com a misericórdia com as pessoas que sem culpa têm uma inabilidade?
Termos misericórdia é sermos tocados pela dor de outra pessoa. Quando Jesus tem misericórdia, a palavra significa literalmente que ele se sente comovido nas vísceras, sente conturbarem-se os órgãos internos. A palavra latina significa literalmente que a misericórdia por alguém (míseri) toca o coração (cor). Não importa se aquela pessoa está na dor por causa dos seus pecados ou por causa de uma injustiça ou de doença. Somos tomados pela sua dor, pelo seu sofrimento. O motivo é irrelevante. A palavra hebraica para indicar a misericórdia, rahamim, vem da mesma raiz de “útero” (rehem).
Misericórdia significa que se compartilha a dor de outra pessoa, como o faz uma mãe. Não há nenhuma distinção entre a compaixão por um filho pobre e faminto e a compaixão por um filho pecador que escapou com a muamba. O que conta é que aquele filho está sofrendo. Milhões de pessoas se comoveram profundamente, em setembro de 2015, quando viram o corpo morto daquela criança de três anos, Aylan Kurdi, lambido pelas ondas numa praia turca. O sofrimento de seu pai, prófugo sírio, tocou nossos corações.
Frequentemente as pessoas são cegas aos sofrimentos dos estrangeiros. Após tudo, dizem, são forasteiros, não são como nós. O filósofo australiano Raimond Gaita conta ter falado com uma mulher que havia perdido um filho. Estava olhando um documentário sobre as mães vietnamitas cujos filhos tinham sido mortos durante a guerra. Inicialmente a mulher ficara golpeada e se identificara com aquelas mães, mas depois havia dito: “Para elas é diverso. Basta que façam outros filhos”.
Segundo ela, aquelas mulheres vietnamitas eram incapazes de sofrer como nós. “Podem substituir os seus filhos mais ou menos como nós substituímos os animais domésticos”. Quando o telejornal transmite imagens de pessoas de barriga cheia que morem de fome em Darfur, vemo-las como nossos semelhantes? Talvez não, porque poucos de nós conheceram realmente a fome.
Misericórdia, no sentido cristão, não é fazer um pouco de caridade de maneira paternalista, mandando aos necessitados alguma batata fria ou uma panela de sopa. É procurar um mundo mais justo no qual a sua dignidade seja reconhecida, porque fazem parte do que somos, são carne da nossa carne. Isaías diz que esta é a vontade do Senhor: “Não consiste talvez em compartilhar o pão com o faminto, em introduzir em casa os míseros, sem teto, em vestir alguém que vê nu, sem desviar os olhos daqueles da tua carne?” (58,7). Nós somos eles. A primeira visita do Papa fora de Roma foi a Lampedusa. Milhares de migrantes provenientes da África navegam na tentativa de desembarcar para entrar na Europa.
O Papa disse: “Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que estavam sobre a barca? Pelas jovens mamães que carregavam os seus filhinhos? Por estes homens que desejavam alguma coisa para sustentar as próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a experiência do chorar, do “sofrer com”: a globalização da indiferença nos tirou a capacidade de chorar”.
O outro significado da misericórdia é o perdão dos pecados. É fundamental na vida cristã. Pedimos perdão dos nossos pecados, e perdoamos aos outros. O cristianismo, mais do que outra grande religião, coloca no centro o perdão dos pecados. Toda celebração da missa começa com o convite a recordarmos os nossos pecados e a nos arrependermos. Não é um modo muito alegre de iniciar uma festa. Quando eu era criança, quase todos iam confessar-se com frequência. Agora a prática desapareceu em grande parte. E muitas pessoas dizem que não vão porque querem sair desta obsessão do pecado.
Com frequência a gente pensa que a exigência de perdão alimente um complexo de culpa. Este gênero de complexo de culpa é destrutivo. Torna-se um peso psicológico que esmaga as pessoas. E não tem nada a ver com o cristianismo. Deus se delicia conosco, lhe dá prazer que existamos. O padre jesuíta Gregory Boyle trabalha com os jovens que correm o risco de acabar no círculo dos traficantes de droga em Los Angeles. Assim ele lhes apresenta Deus: “É aquele que não consegue desviar os olhos de nós, porque nos fez e nos acha belíssimos”.
Reconhecer que somos pecadores não quer dizer sentir desgosto por nós mesmos, Então, a que se refere. o pecado? Em primeiro lugar, não se trata sentir coisas negativas em nós mesmos. Mesmo que fôssemos grandes santos, sabemos que fomos criados para amar infinitamente e que não o podemos consegui-lo sozinhos. A nossa felicidade é estarmos envolvidos num amor total e incondicionado. É uma espécie de louco amor absoluto que supera as nossas capacidades naturais.
Francis Spufford observa que o cristianismo “faz exigências francamente impossíveis [...]. Diz-te que does os teus bens, que recuses defender-te, que ames os estranhos tanto quanto os teus parentes, que comportes como se não houvesse um amanhã. Estes princípios não constituem um programa sustentável”. Jesus nos convida a um amor impossível, além do nosso alcance. Este amor total e sem limites é a própria vida de Deus. Não podemos amar assim por nós mesmos. Não o conseguimos. A exigência de perdão não significa que sejamos maus. Em geral não o somos.
A imensa maioria das pessoas é boa, é pelo bem. Quer dizer que fomos criados para amar totalmente, mas que não estamos em condições de fazê-lo por nós mesmos. Ir confessar-se não quer dizer bater no peito e resmungar sobre a própria malvadeza. Significa reconhecer que cada um é chamado ao amor total e incondicionado e que necessita da graça sanadora de Deus para atingi-lo. Ainda recordo o funeral do amado coirmão Pierre Claverie, bispo na Argélia. Foi assassinado em 1996 por causa de sua oposição à violência. Mas uns mil muçulmanos vieram ao seu funeral.
Uma jovem mulher deu no final o seu testemunho. Disse que retornara à própria fé graças a Pierre. “Ele também foi o bispo dos muçulmanos”. Lentamente, na catedral começou a ressoar um murmúrio em árabe. Perguntei o que estavam dizendo. Mil muçulmanos diziam: “Era também o nosso bispo”. O terrível ato do seu assassínio gerou este fruto inesperado. Isto é o perdão.
Pode a graça de Deus remediar sempre os erros da nossa vida? Direi que sim, desde que haja de nossa parte uma abertura ao amor, mesmo que seja mínima. Não tem sentido pedir perdão se não se está disposto a perdoar. Se não nos tornarmos pessoas que perdoam, não somos capazes de receber este perdão. Nem sempre é fácil perdoar os outros. O que podemos fazer? Antes de tudo, podemos pedir a Deus que perdoe. Morrendo sobre a cruz, Jesus não disse que perdoava os seus carnífices. Não estava em condições de fazê-lo. Mas disse ao Pai: “Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.
Este pode ser o primeiro passo ante uma dor profunda. Perdoa-lhes Tu, Pai. Eu ainda não o consigo. Ainda estou demasiadamente enraivecido e ferido. Mas Tu, na tua misericórdia infinita, o podes. Em segundo lugar, façamos espaço ao perdão no nosso coração. Aprendamos pouco a pouco a não agarrar-nos às feridas e ao ressentimento. Talvez devamos iniciar com os pequenos gestos de perdão às pequenas feridas. E depois, um pouco de cada vez, tornar-nos-emos capazes de perdoar as coisas mais sérias. Enfrentaremos as maiores feridas quando os tempos estiverem maduros. Se o perdão é como uma plantinha que floresce no deserto, é necessário deixá-lo desabrochar quando estiver pronto. Não se faz crescer as plantas tirando-as fora da terra.
Como disse Stephen Cherry, decano do King’s College de Cambridge: “O perdão emergirá lentamente de um coração preparado para viver a tensão entre a impossibilidade e a simultânea necessidade de perdoar”. É quanto o próprio Papa pretendeu recapitular no símbolo jubilar da “passagem” pelas Portas da misericórdia: “Todo aquele que [por aí] entrar poderá experimentar o amor de Deus que consola, que perdoa e doa esperança”.
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A obra da misericórdia. Piedade e perdão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU