11 Março 2020
A palavra com a qual a Igreja acompanhou a crise do coronavírus não é sintoma nem de medo, nem de fraqueza. Eu diria, ao contrário, que indica a direção certa de uma “vigilância” que visa ao “bem comum”.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 10-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não apenas no início desta epidemia, mas também hoje, 10 de março, depois das medidas excepcionais tomadas na noite dessa terça-feira, 9, ouvem-se vozes eclesiais lamentando uma falta de autoridade, uma falta de coragem e uma posição “isolada” e “passiva” da Igreja Católica em relação ao vírus que se espalha.
Uma reflexão pacata deveria sugerir que nunca se perca o senso da realidade e que se contextualizem as palavras precisamente nesta nossa condição atual. Quero considerar duas vozes que interpretam, de um modo exemplar, esse protesto.
Por um lado, gostaria de citar o texto publicado por Giulio Meiattini (“O medo que mata e a coragem que falta”, disponível aqui, em italiano). Por outro, gostaria de me referir às reflexões de Massimo Introvigne (“A Igreja frágil no momento do contágio”, no jornal Mattino de Nápoles).
Parece-me que, em duas leituras bastante diferentes entre si, o fato comum é uma crítica mais ou menos forte à “irrelevância eclesial” e uma espécie de “idealização” das epidemias passadas. Gostaria quase de sublinhar – mas já havia sido notado nos textos anteriores de Riccardi e Cardini – a tendência de reevocar práticas eclesiais e formas de resistência celebrativa do passado, em relação às quais a Igreja de hoje não estaria à altura.
Nesses julgamentos, que buscam argumentações e que dão exemplos, eu acho que o “lugar comum” é uma espécie de resistência radical à modernidade. Como se fosse evidente que a Igreja Católica só pode ter um futuro na medida em que mantenha uma relevância “em contraste” com o espírito do tempo. Como se “os nossos tempos” não tivessem nada a nos ensinar e somente pudéssemos aprender com o passado o que é uma epidemia, como ela é combatida e com que estilo eclesial e episcopal ela é enfrentada.
Examino, acima de tudo, algumas passagens do texto de Meiattini. Ele lamenta uma falta de coragem no nível da cultura civil. Ele escreve:
“Na realidade, tem-se muito medo de morrer ou mesmo de se sentir um pouco mal. E, neste momento, o medo é desproporcional comparado à ameaça em curso. E por quê? Eu acho que, talvez, o motivo mais profundo, ou um dos principais, seja a falta de perspectiva futura. Pensemos por um momento em quem fez a unidade da Itália ou quem combateu de várias maneiras na resistência durante a última guerra mundial, em quem combateu as guerras estadunidenses de independência e até em quem fez a revolução russa. Para eles, a pátria ou a liberdade valia mais do que a vida, porque o futuro era um bem superior ao presente, pensava-se nas gerações futuras (agindo realmente como adultos-pais) dando a vida por um futuro que se tornaria realidade. De todos os modos, havia alguma fé em um futuro (em certos casos, até mesmo ideológico ou utópico), pelo qual, no entanto, também valia a pena morrer. Analogamente, a pessoa religiosa que prefere arriscar a vida e perdê-la, em vez de renegar a sua fé, tem diante de si o futuro eterno, além do mundo, o paraíso.”
A epidemia, comparada às “guerras de libertação” ou ao “martírio pela fé”, parece uma comparação pelo menos arriscada. As lógicas do “centro de saúde”, efetivamente, são desconhecidas no passado, pelo menos nas formas com que podem ser organizadas hoje. Como a batalha ideal pela liberdade e pela fé pode ser comparada à salvaguarda da saúde pública? Por qual “ideal” se deveria morrer? Para afirmar a fraqueza do homem e a majestade de Deus? Esse “uso apologético da epidemia” justificaria a posição “resistente” da Igreja?
Mas a análise continua e chega a identificar na “relativização da vida” a forma mais verdadeira de identidade cultural:
“Onde não há algo mais alto e mais precioso do que o presente adolescente não determinado, ou seja, onde não há um sentido último da história e da vida ao qual se possa chegar (nem mesmo a idade adulta do Iluminismo) e que possa dar razão da perda parcial ou total do presente, isto é, se não existe algo que valha mais do que a vida, pela qual também vale a pena morrer (não como uma fuga do sofrimento, mas como coragem da convicção), a vida se extingue, porque o medo mata mais do que a espada e mais do que os vírus.”
Assim, nós habitaríamos hoje uma sociedade “do medo”, na qual a Igreja se une ao “pensamento único” e perde a sua identidade junto com a sociedade civil. E é evidente que, nesse raciocínio, a nostalgia se desloca até para as “formas da epidemia”, que hoje não são comparáveis às do passado:
“A epidemia em curso, se é que assim pode ser chamada em comparação com as verdadeiras e grandes epidemias de peste, varíola, cólera, que nos séculos passados dizimavam a população, neste momento obtém toda a sua força não do número de vítimas ou da sua objetiva periculosidade, mas sim da fraqueza espiritual da humanidade, que se apega ao seu presente e não quer perder nada, não quer ceder nada e quer se perpetuar crescendo indefinidamente.”
O autor parece dizer, nesse ímpio nostálgico: “Não se fazem mais as epidemias de antigamente!”. E é curioso que ele não se pergunta, minimamente, por que hoje as epidemias são tão diferentes de antes e se, por acaso, nessa diferença, aquele homem infantil, narcisista e falso do qual Meiattini nos fala ao longo de todas as suas páginas não acabou se intrometendo.
Não surpreende que, em conclusão, referindo-se à Igreja, o tom se torne ainda mais duro, seco e injusto, a ponto de se afirmar:
“A própria Igreja (ou, melhor, os homens da Igreja) esqueceram que a graça de Deus vale mais do que a vida presente. Por isso, fecham-se as igrejas, e se alinham aos critérios de saúde e de higiene. A igreja transformada em agência de saúde, em vez de lugar de salvação.”
A incompreensão do fenômeno na sua dimensão real, a pretensão de julgá-lo “in contumacia” e o julgamento final sem apelo contra uma Igreja “achatada em relação à emergência sanitária” são uma espécie de concentrado antimoderno, espremido sem a devida consideração ao que ocorreu com os homens e as mulheres, cuja existência é reduzida a quanté négligeable.
Mas a saúde e a Igreja não são mais as de 400 anos atrás, se Deus quiser. Enquanto a figura mais preocupante é uma espécie de “nostalgia inercial”, que abala tudo e esquece os pressupostos do mundo em que habitamos, como cidadãos e como cristãos. E ela pode se dar ao luxo de confundir a defesa da saúde pública com o narcisismo do indivíduo.
Parece-me que aqui a grande tradição eclesial é incompreendida e reduzida a uma caricatura que a torna quase irreconhecível. Com a desculpa do “não ter medo”, parece-me que se atesta, de modo macroscópico, um tremendo medo em relação a tudo o que o mundo moderno – que não é o paraíso – sempre soube construir de bom e de forte.
A abordagem de Introvigne é diferente. Com um amplo recurso ao seu bem conhecido understatement, ele delineia um belo raciocínio sobre a excepcionalidade da condição em que a Igreja italiana se encontrou nas últimas semanas.
Ele se posiciona em um ponto de vista que eu chamaria de institucional, levantando a questão decisiva sobre a “autoridade”. E ele se pergunta por que os grandes bispos – que, no passado, por ocasião das epidemias de peste ou de cólera, gozavam de tão alta autoridade –, hoje, ao invés, permanecem muito silenciosos e se adéquam com grande velocidade às decisões tomadas no campo civil?
É claro que Introvigne não precisa ser lembrado de como a sua pergunta é paradoxal. De fato, quando ele lembra que no passado as Igrejas também incidiam profundamente nas decisões em matéria de saúde, ele não pode esquecer que, naquele passado, não havia nada semelhante ao que hoje chamamos de “Ministério da Saúde”. Sequer havia uma ciência médica na época.
É fácil demais comparar os bispos da época com os de hoje, sem levar em conta a evolução institucional, administrativa e sanitária que ocorreu ao longo de quatro séculos. Hoje, estou muito feliz que a minha saúde física, corporal, ambiental seja determinada por uma autoridade civil competente e preparada, e não pelo meu bispo.
Mas não olho para essa “secularização” com nostalgia. Ao contrário, eu nem a chamaria de secularização. Esse nome já assinala, bem no fundo, o fato de que não se consegue – ou não se deseja – legitimá-la totalmente porque, precisamente, eu a chamo assim. Como dizia Cardini, ingenuamente, desde que existem os epidemiologistas, perdemos a fé...
Introvigne, em seguida, mas no âmbito da mesma abordagem, chega à conclusão: “A Igreja deveria temer a irrelevância” – mais do que a acusação de irresponsabilidade. Aqui a questão é séria, mas deve ser entendida corretamente.
Nesta contingência, a “relevância” da Igreja não pode ser pensada com o metro da “concorrência com o Estado”. No fundo, Introvigne parece continuar pensando assim, também ele com um esquema que continua sendo, no fundo, antimodernista. De acordo com esse esquema, se, em matéria de saúde, a Igreja aceita as diretrizes estatais, perde autoridade.
Eu estou convencido do contrário. Que a Igreja perderia autoridade precisamente se quisesse “fazer por conta própria”. O “bem comum” aqui é real, não ideológico ou instrumental. O fato de ela poder ser um “guia moral do país” não depende do fato de querer “abrir o que está fechado” e “aproximar o que está distanciado”. O seu magistério espiritual não vive, acima de tudo, de contraposição, mas sim de integração. Essa é a grande intuição conciliar que hoje põe todos nós à prova. Ela ainda não nos dá todos os recursos de que precisamos. Mas certamente exclui aquelas soluções “clássicas”, com as quais causaríamos danos piores, a nós mesmos e aos outros.
A palavra com a qual a Igreja acompanhou esta crise não é sintoma nem de medo, nem de fraqueza. Eu diria, ao contrário, que indica a direção certa de uma “vigilância” que visa ao “bem comum”. Obviamente, não é apenas a “linguagem canônica” que é adequada para a Igreja, embora seja tão importante. Precisamente a possibilidade de recorrer a outras linguagens, diferentes da “formalidade institucional” e da “devoção individual”, constitui hoje o verdadeiro desafio. Um desafio grande e difícil, mas que sabe que não deve olhar nostalgicamente para um passado separado, mas que deve visar responsavelmente a um futuro comum.
E podemos e ainda queremos cantar: “Vinde, ó Deus, em meu auxílio. Socorrei-me sem demora”, sem termos que nos envergonhar por ter a caderneta de saúde.
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Resistência ao contágio civil sem rendição à nostalgia eclesial. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU