02 Março 2020
"O governante, que brinca com o fogo do medo, acaba sendo queimado por ele. Enquanto acredita que está administrando perfeitamente o ódio, gerindo devidamente o medo, tudo está escapando ao seu controle. Este é o ponto: a governança, que gostaria de governar em nome do estado de exceção, é por sua vez governada pelo que se torna ingovernável. É essa inversão contínua que impressiona", escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana, em artigo publicado por Il Manifesto, 01-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Será uma coincidência que o pânico tenha explodido especialmente nas regiões governadas pela Liga do Norte, onde há tempo se instiga ao ódio, se identifica no migrante o inimigo público, portador de toda doença? Muitos se perguntam isso. E a pergunta parece encontrar confirmação nas recentes declarações dos governadores de plantão. Com um golpe de cena um saca do bolso uma máscara para se cobrir, "para se isolar", para se declarar em risco, para si e para os outros, instigando assim novamente o medo - se não fosse que a máscara em suas mãos se transforma e tudo assume contornos burlescos.
Outro relança as costumeiras discriminações - nós superiores, eles inferiores, nós saudáveis, eles doentes, nós limpos, eles sujos - e, desta vez, chega à hipérbole grotesca dos "ratos vivos", aquela famosa iguaria chinesa que todos conhecem. É difícil falar aqui em "estado de exceção", aquele paradigma de governo através do qual ler o mundo atual, como Giorgio Agamben magistralmente nos ensinou, que o relançou nestas páginas (em 26 de fevereiro passado).
Ao contrário do que alguns afirmam, o paradigma continua válido. Aliás, já é agora práxis cotidiana: os procedimentos democráticos são suspensos por disposições tomadas sob o signo da emergência. Um decreto aqui, outro decreto ali: assim, cidadãos e cidadãs acabam aceitando "medidas" que deveriam garantir sua segurança, mas que de fato limitam severamente sua liberdade. As medidas tomadas nos últimos dias pelo governo e pelas regiões - sem nenhuma ordem específica - são emblemáticas. Chegam ao ponto de fechar os locais de cultura, proibir manifestações e reuniões. São "medidas" que têm – inútil dizê-lo - um sabor autoritário e um caráter preocupante.
Mas parece que o "estado de exceção" não seja suficiente para um mundo tão complexo como o globalizado, onde o medo agora desempenha um papel político decisivo. O medo do estrangeiro, xenofobia, que leva a erguer barreiras e muros, junto, porém, com o medo de tudo o que é de fora, exofobia, que leva a se encerrar no próprio nicho, a se imunizar, a se proteger, a observar o que acontece através da tela protetora de um dispositivo qualquer. A pulsão securitária é fomentada. Assim como é fomentada aquela que alguns confundem com indiferença, como se fosse uma questão ética, mas que é mais uma tetania afetiva com grande envolvimento do estado. Não há dúvida que se usa desavergonhadamente o medo para governar. Precisamente por esse motivo, o soberanismo, especialmente o antimigrantes, não é uma reedição do antigo nacionalismo. É um fenômeno novo: se alavanca no medo do outro, o alarme do que vem de fora, a ansiedade da precariedade, o desejo de ser imune a tudo isso.
Mas esse é apenas um aspecto. Porque o governante, que brinca com o fogo do medo, acaba sendo queimado por ele. Enquanto acredita que está administrando perfeitamente o ódio, gerindo devidamente o medo, tudo está escapando ao seu controle. Este é o ponto: a governança, que gostaria de governar em nome do estado de exceção, é por sua vez governada pelo que se torna ingovernável. É essa inversão contínua que impressiona. O modelo aqui é o da técnica: quem a emprega, é empregado, quem a dispõe, é desbancado.
A democracia imunitária é, portanto, uma forma inédita de governança, onde a política, reduzida a administração, refere-se, por um lado, aos ditames da economia planetária e, pelo outro, se auto suspende abdicando à ciência - "vamos dar a palavra aos especialistas!" - que se imagina objetiva, verdadeira, decisiva. Como se a ciência fosse neutra e neutral, como se já não estivesse há muito tempo estreitamente vinculada com a técnica, altamente tecnicizada.
Assim o estado de segurança revela-se um estado médico-pastoral que garante a imunização ao cidadão-paciente, pronto, por sua vez, a seguir - entre o direito ao desinfetante e a proibição à aglomeração - toda regra higiênico-sanitária que o proteja do contágio, ou seja, do contato com o outro. Não se sabe onde termina o direito e onde começa a saúde.
O coronavírus, esse vírus soberano já no nome, zomba do soberanismo da exceção, que gostaria grotescamente de tirar proveito dele. Escapa, escorrega, passa além, atravessa as fronteiras. E se torna metáfora para uma crise ingovernável, para um colapso apocalíptico. Mas o capitalismo, todos nós sabemos, não é um desastre natural.
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Até mesmo para o estado de exceção, o medo é um boomerang. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU