20 Março 2020
Propomos uma pequena síntese das características desse "tempo de quarentena", como desafio à identidade civil e eclesial, configurando uma possível resposta da liturgia cristã, também com um exemplo de celebração da Ceia do Senhor da Quinta-Feira Santa. Pensamos que poderia ser útil não apenas uma reflexão geral sobre o "fenômeno novo", relido no plano da experiência litúrgica, mas também oferecer um modelo de celebração, o mais detalhado possível. Para que a pastoral não se perca - teórica e praticamente - na frente (e atrás) das telas das mídias.
A síntese é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, e de Mauro Festi, em artigo publicado por Come Se Non, 19-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Exalte ao Senhor, ó Jerusalém! Louve o seu Deus, ó Sião" (Sl 147)
Partimos da necessidade básica, do grito que hoje levamos a Deus: precisamos ser afastados do domínio da morte. Como crentes, precisamos saber que o Deus de Jesus Cristo, por meio de seu Espírito, está agindo a nosso favor. E precisamos disso como coletividade, como nós. Este é o primeiro ponto a ser esclarecido: não se trata de "desejos individuais", mas de um corpo eclesial que precisa encontrar palavra.
Vamos começar a partir do momento favorável que é nosso hoje. Nunca como agora, talvez, esteja se concretizando uma espécie de mesa sobre a qual se jogue a cartas descobertas: hoje estão emergindo os imaginários que sustentam nossas vidas. Mas, para usar uma imagem, é uma espécie de mesa aquecida furada. Todos os imaginários estão sujeitos a inevitáveis mudanças, sob a ação do calor. Nada é verdadeiro, na realidade; o que vale, nas abordagens rígidas da realidade, vale para as nossas ideias, não para a realidade. O que não vale, se espalha e escorre, pelos furos. Tentar ir desesperadamente para recuperá-lo também nos leva ao desespero. O que vale, o calor ardente da mesa, no entanto, o expõe à remodelação. Se o remodelarmos de maneira sensata, enquanto a mesa estiver quente, se mantém e constitui o surgimento de uma oferta de sentido. Se o remodelarmos de maneira sem sentido, acabará tendo o fim do que não vale, mas o teremos dispersado entre nós. Poderia ter valido. Existe, nessa diferença entre o que objetivamente não está disponível (o evento epidemia, a exigência de isolamento, a impossibilidade de contato) e o que está disponível (nosso modo de responder, individual e comunitário), o espaço estreito, mas real tomar a iniciativa de maneira articulada.
Hoje é um momento favorável para nós:
– Porque estamos todos expostos à morte e a uma morte na qual a única certeza é que há uma evidente desproporção entre sua capacidade de levar a melhor e a nossa de nos defender;
– Porque, como Chiara Giaccardi disse com muita propriedade, agora é evidente que todo individualismo é abstração: agora o paradigma "mors tua, vita mea" escorre pelos furos da mesa, o que segura é "vita tua, vita mea". É uma situação inaudita de solidariedade que não devemos criar nós, como era a situação precedente, e não conseguimos. Agora existe, já está disponível. E nós podemos valorizá-la.
– Porque estamos todos nessa situação "ideal" do segundo anúncio, como falam E. Biemmi e seus colegas: um excesso de exposição à morte, mas que também é, aos olhos de muitos, muitas vezes não crentes ou ainda assim laicos, a abertura de um potencial de vida inimaginável antes.
– Porque está emergindo a inconsistência dos modelos clericais, que talvez teria aparecido daqui a algumas décadas, mas provavelmente sem a capacidade de reelaborar ao mesmo tempo os imaginários. Agora, a fragilidade do modelo clerical está diante de nós, em sua impotência e em sua residual obstinada arrogância.
– Porque estamos na Quaresma, um tempo de suspensão da reconfiguração de identidade e vínculos, para favorecer a experiência radical de vida que rasga a morte por dentro.
– Porque, de repente, aguçou-se o sentido de saber reconhecer palavras vazias e palavras de profecia, das quais estamos terrivelmente sedentos. Somos mais sensíveis do que nunca a palavras que não têm nada a dizer e sedentos por palavras verdadeiras.
– Porque é evidente que a Igreja está optando por dar crédito ao humano com seu saber e as suas práticas, está confessando publicamente - mesmo que em parte inadequadamente e com um certo constrangimento, se não com certa reticência - que Deus não existe a prescindir do homem, mas com o homem e pelo homem. E a Igreja não é a única competente. É o melhor pressuposto para a segunda virada antropológica. Talvez estejamos realmente saindo do anti-modernismo e nos reconciliando - mesmo que ex necessitate - com a força evangélica de aspectos convincentes do "progresso".
– Porque podemos contar no sacerdócio batismal e na participação real no ato de todo o corpo eclesial.
Mas, apesar disso, sentimos a dificuldade de imaginar como configurar um possível ato litúrgico:
– Até ontem estávamos em um contexto plenamente individualista e em um nível eclesial clerical e sacramentalista: não temos uma forte experiência de gestos alinhada com o novo imaginário que está sendo criado, mesmo que talvez sintamos a mudança que está ocorrendo;
– Temos uma suspeita generalizada do rito e confundimos o simbólico com o sinal, pior ainda com o didascálico. Liturgistas e biblicistas, liturgistas e eclesiólogos, liturgistas e pastoralistas, liturgistas e litúrgicos não desfrutam de um campo comum para compartilhar a consciência da importância da mediação simbólico-ritual. Entre os liturgistas, se confrontam modelos tridentinos e pré-modernos clericais com formal assunção de perspectiva conciliar, que manifesta agora a incapacidade de agir no nível profundo do que se pensa e se sente.
– Temos, no fundo, fortes imaginários dualistas que são duros de morrer; portanto, talvez possamos refletir sobre o que está acontecendo e procurar palavras de sentido, mas vemos como "mudar os hábitos" seja muito mais difícil. O nível do gesto é mais difícil de alcançar do que o seu significado, que nos parece dominar;
– Não formamos uma sólida subjetividade e ministerialidade laical e, de repente, tudo parece voltar sobre os ombros "heroicos" do presbítero;
– Somos permeados e invadidos pelas mídias, também e sobretudo a nível eclesial, que correm o risco de saturar o espaço de suspensão que, ao contrário, seria fundamental deixar vazio para que seja possível uma reconfiguração. Se a mídia se insinua imediatamente, para responder a uma necessidade "comunicativa", introduzirá uma distorção adicional.
– Os contextos de celebração são tão variados quanto as realidades das nossas casas neste momento: famílias, pessoas sozinhas, idosos, crianças, pessoas que não saem mais, pessoas que ainda precisam sair, mas não gostariam, pessoas que precisam sair para salvar os outros e não podem voltar, pessoas que passam 90% de seu tempo ativo no hospital ... então as emoções que nos habitam são várias em suas gradações, assim como o são as energias a disposição, os lugares, a atenção ... É extremamente complexo ser capaz de entender o que dessa "ordinariedade extraordinária" que estamos vivendo é hospitaleira ao vir ao encontro de Deus de uma maneira que nos permite percebê-lo como tal e reelaborá-lo realizando gestos simbólicos. Os códigos simbólicos comuns não são praticáveis e aqueles que poderíamos praticar não foram elaborados.
– Nunca experimentamos até o fim uma adaptação litúrgica, exceto nas formas de criatividade "selvagens" e fora da lógica ritual, ou na forma de sua rígida negação. Fizemos isso linguisticamente, mas reduzindo as formas aos conteúdos. Então hoje estamos em grande embaraço. E o risco é que, em vez de novas formas, tenhamos apenas as velhas formas, espalhadas em todos os meios (TV, PC, smartphone, tablet telas gigantes...)
A margem de manobra, objetivamente apertada, não é inexistente. Vamos tentar identificar os pontos-chave desse espaço, que dizem respeito à "percepção da alteridade de Deus nas tramas da existência mais elementar", o "pertencimento dos sujeitos e dos gestos à tradição eclesial" e a "forma simbólica comum, que se faz ato ritual compartilhado".
a) Tentando ligar o humano mais humano e mais consistente que nos torna similares. Porque ali e somente ali podemos perceber o sagrado
– As nuances das emoções relacionadas ao medo, angústia, terror, desespero, mas também à admiração, coragem, esperança, dedicação.
– A necessidade fundamental de percepção da presença, da qual o sentido fundamental é o tato, mas talvez também o olfato, porque é urgente sermos arrancados do isolamento e da solidão.
– A mais forte disponibilidade de superar todas as divisões e a valorização o valorizável, em virtude da percepção de que não há tempo. Ou seja, prestemos atenção ao brigar, porque amanhã talvez você poderia não estar ali, ou eu, e não sei se algum dia teremos oportunidade de nos encontrar, portanto não é importante o motivo da tensão, é importante que você esteja ali. E se, em outros momentos, eu me cansava de responder às dez mensagens de minha mãe pelas quais me sentia invadido, agora tomo cuidado para não deixar de responder ou até tomo a iniciativa, porque não sei quanto poderei tê-la comigo ... Isto é, existe uma maior disponibilidade relacional ligada à percepção da possível proximidade do fim, que leva ao essencial.
– É primavera. Em tempos do coronavírus. A natureza é talvez o lugar mais forte para a manutenção substancial das polaridades opostas da vida e da morte. Nós a vemos maravilhosamente florescer e sorrir, sentimos que é drasticamente portadora de morte. E uma e a outra coisa nos mantêm em uma posição fortemente passiva / receptiva. Algo depende de nós, mas muito não. E não podemos dispor disso: acelerar o florescimento e impedir a propagação do vírus não estão ao alcance de cada um de nós. Por mais que permaneçam nossos os gestos fundamentais do cultivar e cuidar, que são os verbos da aliança.
b) Identificando o que torna possível que aquilo que elaboramos seja um ato de tradição eclesial,
– Deve manter o aspecto receptivo, em um contexto em que a autoridade eclesial e magisterial não fará a "entrega". Os gestos e as palavras devem, portanto, ter muito o gosto dos gestos familiares e das palavras familiares da Igreja, para que não sejam demasiado "nossos" a ponto de não percebermos que um Outro está se aproximando. Deve ser manifestação da Igreja, que em certo sentido já conhecemos, mas também realização de uma Igreja outra que ainda não conhecemos, uma Igreja dentro e não fora da realidade, uma Igreja nas casas, uma Igreja realmente local.
– Deve ser uma atuação da Páscoa, a experiência de ser habitados por dentro por um poder espiritual que atravessa contigo a morte, enxertando-te profundamente no evento de Cristo, que te oferece a garantia da ruptura da solidão e da vitória sobre a morte, percebendo esse vínculo como a realização de uma relação completamente desproporcional no amor, que te conduz a perceber a dissolução das falsas faces de Deus que vivem dentro de ti, e talvez agora estejam se fortalecendo, conseguindo te iluminar, mesmo que apenas por um momento, mesmo que apenas pelas costas, a presença desse Pai que tudo pode e quer, em seu amor, para que seus filhos tenham vida e a tenham em abundância, prometendo que ninguém os arrancará de sua mão.
– Deve ser um ato de recepção ativo, isto é, deve me levar a sentir e me perceber como sujeito do que estou realizando. Uma reddito dentro da traditio.
c) Identificando o que torna possível o que elaboramos seja um ato ritual em linguagens simbólicas:
– Deve envolver uma dimensão de repetição: é necessário organizar tempos, espaços, ações para que tenham relevância com os gestos sagrados cotidianos e rituais que realizamos, mas reorganizando-os para fazer experiência de Deus, da morte vencida pela vida, da sacralidade da vida. Se não houver um mínimo nível de repetição, se a novidade for excessiva, não conseguiremos perceber a novidade de vir ao nosso encontro de Deus,
– Devem ser gestos e palavras que desfrutem de entendimento entre os sujeitos envolvidos: a escolha desses lugares, tempos, gestos deve conduzir à realização de atos que podem ser realizados de tal maneira que todos aqueles que participam percebem que ali está em jogo a sacralidade da vida e sua custódia, e que isso ocorre em virtude de um Rosto que se revela para mim, permanecendo indisponível, mas sempre a meu favor.
– Devem ser criadas as condições para um salto: deve ser possível perceber que algo diferente está sendo feito, que atravessa a lógica ordinária, mas a transgrede. O que se realiza não deve ser inteiramente "sensato" quando visto apenas com os olhos da vida ordinária, mas, principalmente, não deve estar na ordem de "produzir" algo, mas de se expor à gratuidade que pode acontecer naqueles atos. Não na ordem de "fazer uma coisa" (o que fazer?), mas de "expor-se ao possível dom", agindo e sentindo.
– Deve haver uma perceptível expressividade: deve ser um lugar "carregado", um tempo "carregado", atos "carregados" de memória grata, de experiência vital, de emoção mortal, de percepção de algo superabundante que nos precede e nos supera, que recebemos, mas que não produzimos de forma alguma ...
– Deve ter a forma de uma incisão corporal: deve funcionar como uma ação que nos marca com o fogo, que "nos machuca" (e devemos poder perceber que coloca novamente em jogo os medos viscerais) mas que naquele mal incide um pertencimento indelével, como "tomar posse" de um corpo a que se deu forma e que não será abandonado agora, nem nunca.
– Devem ser cruzadas as experiências elementares da vida: devem ser atos que têm a ver com a escuridão e a luz, a fome e a sede, a água-ar-fogo-terra, a orientação (norte-sul, leste-oeste), com a espera e a realização, o desejo e o fracasso, a solidão e a relação, o medo e a segurança / paz, o presente - o passado - o futuro, a admiração e o espanto, o terror e a angústia, a imaginação e a realidade, a palavra e o silêncio, o corpo e seus sentidos.
– Deve-se permitir a hospitalidade de processos simbólicos: deve ser o cruzamento de algo real, perceptível e praticável, que mantenha a distância certa entre a familiaridade do que é realizado (que permite se sentir verdadeiramente sujeitos do que se realiza) e a "estranheza" / a irrupção que deixe espaço para um inesperado por nós não produzido e não controlado, mas "identificável", reconhecível como o fazer-se encontro de Cristo conosco, que nos hospeda nele, salvando-nos da morte.
A liturgia distante, que se aproxima através da TV ou do streaming ao vivo, permanece irremediavelmente distante. Mesmo que seja celebrada pelo pároco, pelo bispo ou pelo papa. Substitui o nada, e isso com certeza é algo, mas não permite celebrar. Uma igreja que conheça a importância decisiva do ato de celebração, deixa de lado a "ligação" e a "conexão" e põe em jogo "evidências primárias", "palavras da tradição" e "ritos poderosos". A TV e a Internet, à sua maneira, só podem guardar aquela "pirâmide não-invertida" na qual nunca encontramos a verdade da Igreja. Se a liturgia é a linguagem de todos os batizados, toda pequena comunidade "em quarentena" deve poder celebrar a Páscoa, sem delegar o ato eclesial a outros. Ela fará isso em comunhão com os santos e com a Igreja, mas terá que fazer isso por si só. Portanto, a dimensão familiar - reduzida àquele mínimo de família que é cidadão individual e fiel em seu apartamento - poderá e terá que entrar na dinâmica da palavra e do sacramento. E terá que fazer isso com o corpo, com todos os seus sentidos, não apenas com a vista faminta de imagens sagradas na tela. Uma "dieta dos olhos" e um "alimento substancioso" dos outros sentidos serão a lógica de uma Igreja que está dispersa, mas que não se perde, que é fracionada, mas não fragmentada, que é apartada, mas não isolada, mas sim consolada pela linguagem comum que atravessa os corpos, aquece os corações e nutre as mentes. O anúncio da ressurreição, enquanto evento corporal, pressupõe uma Igreja que saiba ainda dar a palavra ao seu próprio corpo integral. Isso é esperança. Mesmo neste tempo dilatado e ameaçador, que preocupa e aflige, mas abre novos passos possíveis, necessários e talvez decisivos.
Vamos tentar, no horizonte do que foi expresso até agora, imaginar como poderíamos celebrar a Ceia do Senhor em nossas casas, como autênticas Igrejas domésticas.
Deixamo-nos guiar pela liturgia, adaptando-a aos nossos contextos. É apenas um exemplo possível de "enraizamento" da liturgia eclesial em nosso mundo e modo de vida.
A nossa poderia ser uma reformulação atual da ceia pascoal judaico-cristã, escolhendo com satisfação, com inteligência, adotar formas "espúrias", adequadas à situação do "hospital de campo" que estamos vivendo.
a. "Em sua glória" (Contemplação da cruz da glória)
A liturgia nos faria começar com um cântico inspirado nesta antífona de entrada:
Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. (cf. Gal 6,14)
Poderíamos preparar um canto específico da casa, que se torna um pouco único no tríduo e durante toda o tempo da Páscoa, para colocar de maneira estável um crucifixo significativo, por valor afetivo, por valor estético ou porque feito em família.
Poderíamos começar nos reunindo ali, se possível com luzes mais suaves (mantendo-as assim o tempo todo), não antes de começar a cair à noite.
Poderíamos contemplar a cruz cantando um refrão com as palavras da antífona, se a conhecemos, ou com palavras semelhantes, ou proclamando-as. Poderíamos compartilhar, inclusive criando-o, um refrão ad hoc, de simples beleza, como comunidade paroquial ou como diocese, e fazê-lo circular para conseguir aprendê-lo a tempo.
Poderíamos encontrar palavras breves para orientar a contemplação em direção ao esplendor da glória, e sentir que a glória de Deus na cruz de Cristo tem a ver com seu peso na história, inclusive a nossa. Poderíamos então cantar o cântico da glória para confessar o louvor a Deus que em Cristo vem para tornar nossa história uma história de salvação. Poderíamos alternar um refrão do glória, com expressões de louvor que ecoem situações da história da salvação em que a glória do Senhor se manifestou e com as quais se possa perceber que nossa situação tem semelhança.
b. "Guarde a nossa vida" (rito de custódia do mal: a porta)
Naquele mesmo "canto especial", poderíamos colocar um jarro, talvez transparente, cheio de água.
Poderíamos buscar água nele e levar para um de nossos lugares mais "carregados" de problemas, de mal. Como os judeus, a soleira, a porta da frente. Não podemos atravessá-la, porque lá fora está o mal; dentro, ao contrário, a segurança da vida. Os judeus fizeram um gesto apotropaico, espargindo a soleira com o sangue do cordeiro que depois eles consumiriam. Poderíamos lavar os batentes da porta e a maçaneta com a água, realizando um gesto que estamos repetindo com frequência neste momento para nos proteger, mas oferecendo-lhe um contexto diferente, que o ressignifica, expondo-o à presença de Deus, para que esse mesmo gesto tenha o poder de ressignificar qualquer outra "lavagem" que faremos na vida cotidiana. "Vamos marcar" a soleira da casa com a água que recebemos da contemplação da glória de Cristo na cruz e da confissão de seu peso na história, que se faz esperança de fazer dele experiência na nossa.
Poderíamos acompanhar o gesto com uma parte do Sl 121:
Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro?
O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.
O Senhor te guardará de todo mal; ele guardará a tua alma.
O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre.
Essa mesma água (que será reposta quando acabar) poderia ser a mesma água para encher a jarra para o jantar e, portanto, beber durante a ceia, e a mesma água para lavar as mãos antes de sentar mesa, talvez usando uma bacia e sabão.
É a mesma água e a mesma bacia com a qual será vivido o lava-pés. A mesma bacia e a mesma água poderiam encontrar um lugar em nosso canto especial, ao lado do jarro com água limpa. Como água "carregada" pela passagem salvífica de Deus, não será jogada fora, mas será guardada, pelo menos durante a época da Páscoa.
Ao atravessar a soleira, voltando para casa, pode-se narrar, em breve, a ceia judaica: como Deus pediu aos judeus que espargissem os marcos das portas de suas casas com sangue, para defendê-los do extermínio da morte, hoje nós os purificamos com a água da vida, invocando a mesma proteção.
Lavamos as mãos. Buscamos a água para colocar na mesa.
c. "Admita-nos no banquete do seu reino" (rito de aliança)
Poderíamos nos sentar à mesa, começando a ceia "abençoando a mesa" com a citação de Apocalipse (3,20; 22,20):
O Senhor diz: Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo.
R. Venha, Senhor Jesus.
Inicia-se a ceia. É importante que seja uma ceia onde a ênfase possa ser colocada no pão e no vinho. Seria bom se o pão fosse preparado em casa, talvez juntos, e fosse suficiente para o dia seguinte. Diante do pão e do vinho, compartilhando-os e degustando-os, poderíamos nos ajudar mutuamente a descobrir quantas relações, quanto trabalho, quanta natureza, quanta providência, quanta Escritura há neles. E quando se chega a perceber - conversado, talvez até com histórias "do passado", trocando essas palavras cheias de gratidão e admiração - que está sendo tocada a dimensão da aliança, proclama-se a história da instituição em 1Cor 11, 23- 26.
d. "para que possamos ter parte com você" (rito de custódia do mal: amor até o fim)
Após a proclamação do relato da ceia, uma lavagem mútua dos pés poderia ser realizada (deixando a ceia ali onde está ...). Como se sentíssemos a urgência de agir na mesma lógica da aliança que nos faz experimentar o pão, o vinho e o relato. Aquele que conduz a oração se levanta, vão pegar uma toalha, tira água do jarro e pega a bacia e pede para poder lavar os pés dos outros membros da família, que talvez poderiam nem saber do gesto. Lava os pés com o sabão, beija-os e lava-os novamente com sabão (para não causar contágio). Mas, pelo menos assim, finalmente, se pode voltar a dar um beijo, advertindo-o não perigoso, mas é vital dizer até que ponto a vida do outro me importa, até que ponto a vida do outro importa a Deus, e quero que seja afastada das garras do mal. Se o contexto permitir, pode-se, de fato, viver o gesto com reciprocidade, para que cada um possa acessar novamente esse com-tato essencial, ressignificado cristologicamente. O tempo em que entramos, com nossa "quarentena", não é um tempo apressado; portanto, a ceia e o próprio ato do lava-pés podem não ser tão estilizados a ponto de se tornem insignificantes; pode levar todo o tempo, simbólico e poético, necessário.
Depois de ter realizado o lava-pés, pode-se proclamar o Evangelho (Jo 13, 1-15) e deixar um pouco de silêncio, para que as sensações, pensamentos e percepções relacionadas ao que está sendo vivenciado possam emergir dentro de si.
O silêncio poderia então se abrir e se tornar intercessão, para todos aqueles com quem nos preocupamos e que gostaríamos de lavar para preservar do mal e alcançar com nosso beijo de amor e dedicação, de bênção e eternidade. Essas orações seriam então reunidas na oração fundamental, do Pai nosso, onde é Ele quem acolhe nossas vidas em suas mãos, libertando-nos do mal.
e. Entramos na noite, acompanhados pelo perfume (rito de entrada na noite)
O canto "especial" da casa, que é importante seja um pouco "isolado", percebido como diferente, pode se tornar um local importante para acompanhar o tempo da Páscoa como chave de acesso ao tempo da ameaça da pandemia. Permanecem ali a cruz, a Sagrada Escritura, o jarro com água "pura" e a bacia com a água que purificou. Ali, no final da ceia, se pode colocar o pão para o dia seguinte, aquele pão que hoje está cheio de sentido, e deverá ser capaz de dar sentido também ao drama do dia seguinte.
Ali, uma vela perfumada é acesa e deixada queimando enquanto a casa é reorganizada, após a ceia, para que o perfume se espalhe.
No início da ceia, se pode suspender o uso dos vários meios de comunicação e entrar em um silêncio de profundidade.
Depois da arrumação, prontos para ir para a cama, poder-se-ia reunir, em silêncio, neste canto sagrado da casa, deixando entrar em si o brilho da luz da vela, enquanto todas as outras luzes são apagadas e o perfume se espalha. Poderíamos nos dar o boa noite ali, retomando o Salmo 121, na íntegra:
Levanto os meus olhos para os montes e pergunto:
De onde me vem o socorro?
O meu socorro vem do Senhor,
que fez os céus e a terra.
Ele não permitirá que você tropece;
o seu protetor se manterá alerta,
sim, o protetor de Israel não dormirá,
ele está sempre alerta!
O Senhor é o seu protetor;
como sombra que o protege, ele está à sua direita.
De dia o sol não o ferirá,
nem a lua, de noite.
O Senhor o protegerá de todo o mal,
protegerá a sua vida.
O Senhor protegerá a sua saída e a sua chegada,
desde agora e para sempre.
Poder-se-ia terminar com o Glória ao Pai, confiar-se à intercessão materna de Maria e apagar a vela, tomando cuidado antes que o percurso para chegar aos quartos no escuro seja facilmente praticável. Assim, será possível entrar na noite que prepara a morte, acompanhados pelo perfume que consegue habitá-la mesmo quando a última luz se apaga.
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A liturgia em quarentena e um modelo de celebração (de A. Grillo e M. Festi) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU