19 Março 2020
"Estou praticamente há um mês dentro de casa, na Itália do norte (sic!), vizinho ao coração epidêmico do coronavírus", escreve Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especializado em Liturgia pela PUC-SP e música ritual pela FACCAMP, assessor eclesiástico para a Liturgia na mesma Arquidiocese, membro da Equipe de Trabalho para o Espaço Sagrado para a Catedral Cristo Rei, mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (FAJE) e doutorando em liturgia pastoral em Santa Giustina – Pádua.
Segundo ele, "o coronavírus não pode cancelar o domingo, a quaresma, o tríduo pascal porque não pode cancelar nossa condição filial. Podemos, ainda, reunirmo-nos ao redor da mesa, em nossas casas, e fazer a memória do Dia do Senhor sem eucaristia. Podemos celebrar a Palavra de Deus e podemos, inclusive, concluir tudo com o ágape fraterno (que seria uma das refeições daquele dia) como fizeram muitas vezes as comunidades cristãs na origem. O rito estará ali cumprindo seu papel de mediação, embora não seja o mais apropriado para o Domingo que é o rito eucarístico. Mas até isso, para aqueles que estão acostumados à comodidade de celebrar todos os domingos a eucaristia em suas comunidades, esse jejum forçado pode fazer-nos mais próximos de milhares e milhares de irmãos e irmãs nossas que são privados continuamente do rito apropriado".
Pessoalmente, penso que o momento não é para palavrório. O contexto não é propício para delongas, explicações, diatribes. O covid-19 exige de todos nós algumas posturas, decisões e sobretudo silêncio. A pandemia que o planeta experimenta certamente será ressignificada de tantos modos, o que implicará atribuir-lhe alguma função no âmbito da trajetória humana sobre a face da terra. Mas, por agora, somente o silêncio e o vazio devem ocupar o espaço antes devotado ao frenesi que nos movia. Somente silêncio e vazio de quem está à beira do túmulo– e aqui não posso deixar de pensar no sábado santo – poderá ser realmente transformador.
No lugar da prolixidade de nossos discursos contra ou a favor de medidas mais ou menos restritivas no intuito de conter a veloz disseminação viral, cabe simplesmente às pessoas profissionalmente habilitadas e cientificamente capazes, propor as medidas. De nossa parte, fazer coro, aclamar e obedecer às indicações que visem a defesa da vida das pessoas, sobretudo daquelas mais vulneráveis por motivos ou médicos, sociais ou econômicos. Penso que a maioria de nós deve aproveitar o tempo para observar atentamente o que está acontecendo no mundo. O convite – na verdade, a condição para que saiamos desta mais vivos e mais fortes – é fazê-lo das nossas casas. E só em dizer isso, já começo a imaginar tantos que não possuem tal conforto...
Estar em casa não significa desconectar-se, mas também não implica estar conectado digitalmente todo o tempo. Não devemos tolerar o boicote do silêncio e do vazio. Não devemos permitir que nos retirem o direito de passar por estes momentos de maneira vigilante, cônscia... despertos. Estou praticamente há um mês dentro de casa, na Itália do norte (sic!), vizinho ao coração epidêmico do coronavírus. Tenho acompanhado diariamente o noticiário televisivo e escrito e também nas mídias sociais, mas sobretudo tenho lido bastante, pensado e rezado um pouco também. O que tenho feito em excesso é conviver com outros dois companheiros de ministério, oportunizando-os estar mais juntos do que antes, conversando sobre tudo (e todos! rsrsrsrsrsrs), descobrindo formas de curtir a obrigação de estar em casa. O imperativo de estar praticamente “confinados” fica mais suportável quando a casa se transforma em lar, isto é, em um ambiente de cuidado mútuo, de devota entrega pelo bem do outro. Vínculos mais fortes, pessoas mais felizes e mais sãs.
Viver responsavelmente a intersubjetividade pode ser o grande lance do momento. Para nós, cristãos e cristãs, diria que é a chave para que não nos percamos de nossa identidade e para manter acesa aquela caridade que, segundo Leão Magno, tanto agrada a Deus porque é epifania de sua própria bondade agindo nos fiéis. Neste momento histórico, ser uma pessoa de fé não significa renunciar às relações interpessoais porque são elas o nosso lugar de encontro com o Senhor. Se esquecermos este fato, nossa identidade eclesial rui e a fé evapora, ao menos do ponto de vista da Revelação. A primeira tentação, portanto, é renunciar à mediação, dizendo-a não necessária à fé. Li isso de um teólogo italiano: para ter fé em Deus não precisamos de celebrações e igrejas. Acho – digo humildemente – que ele se perdeu um pouco da tradição mais genuína, aquela do evangelho. Talvez ele tenha buscado formas para justificar a opção corajosa dos bispos italiano de suspender a celebração da eucaristia e todas as outras formas de convivialidade que exigem – como condição – a reunião de pessoas.
Evidentemente, a decisão dos bispos – inevitável e necessária – está ligada á normalidade de nos reunirmos para celebrar. Não tem celebração sem reunião de pessoas, sem fiéis convocados, sem sujeito eclesial. O padre ou o bispo não podem celebrar sozinhos porque é uma contradição. Para os casos extremos, no caso da missa, se exige ao menos a participação de mais uma pessoa porque a celebração do Sacrum Convivium exige o convivium. Se pensarmos assim, onde se optou, corajosamente – repito, por suspender a celebração eucarística com a presença “normal” dos fiéis, não temos uma proibição de celebrar a missa, mas de fazê-la nos moldes habituais. O fato é que a estrutura ministerial da Igreja, associada à compressão teológica e à disciplina eclesial hodiernas não permitem que se celebre a eucaristia sem a presença de um presbítero ou bispo que a presida. Se fosse diferente, certamente celebraríamos a eucaristia em nossas casas. Mas isso não é possível no presente momento histórico.
No entanto, a mediação permanece. O coronavírus não pode cancelar o domingo, a quaresma, o tríduo pascal porque não pode cancelar nossa condição filial. Podemos, ainda, reunirmo-nos ao redor da mesa, em nossas casas, e fazer a memória do Dia do Senhor sem eucaristia. Podemos celebrar a Palavra de Deus e podemos, inclusive, concluir tudo com o ágape fraterno (que seria uma das refeições daquele dia) como fizeram muitas vezes as comunidades cristãs na origem. O rito estará ali cumprindo seu papel de mediação, embora não seja o mais apropriado para o Domingo que é o rito eucarístico. Mas até isso, para aqueles que estão acostumados à comodidade de celebrar todos os domingos a eucaristia em suas comunidades, esse jejum forçado pode fazer-nos mais próximos de milhares e milhares de irmãos e irmãs nossas que são privados continuamente do rito apropriado. Não podemos cancelar a convivialidade eucarística que o rito eucarístico tantas e tantas vezes criou em nós. Portanto, devemos – ritualmente, sim, porque é necessário à fé – celebrar. Mas o façamos sem pôr em risco a saúde dos nossos irmãos e irmãs.
Uma última coisa: ponhamos limite ao streaming. Somos o tempo todo invadidos pela virtualidade de nossos computadores, celeulares, tablets... basta. A missa transmitida não substitui nem hipoteticamente a participação à oração comunitária, porque não pode gerar verdadeiro convivium. É, no máximo, pedagógica. Jamais pode tomar lugar de uma comunidade que celebra. Sou da opinião que se deve economizar com estas transmissões e fortalecer nas pessoas o desejo de celebrar como é possível no momento. Ah... e vamos começar a – pedagogicamente – ajudar as pessoas a celebrar o Ofício Divino? “Taí” um uso interessante dos media... ao invés de convidar para rezar o terço por streaming (pode-se fazer este ato devocional sem o auxílio da telinha!), que tal ajudar as pessoas a redescobrirem uma das fontes mais genuínas da espiritualidade cristã? Porque não ajudá-las, também, a conhecer e aprofundar a Lectio Divina? Está aí a minha sugestão: celebrar a Palavra de Deus dominicalmente em casa, rezar o Ofício Divino, e fazer a leitura orante. Estas opções não precisam ser intercambiáveis porque respondem de modo diferente ao complexo da fé cristã: por exemplo, meditação pessoal com a Lectio (tão importante para ler o momento em que vivemos a partir da História da Salvação); já que estamos – ou estaremos – todos em casa, reunir-se manhã e tarde para o Ofício Divino e, aos domingos, celebração da Palavra de Deus com um ágape fraterno. Tudo isso não é para “substituir” a Missa, mas para não deixar morrer a fé. Penso que seja isso que se espere de uma Igreja que redescobriu a beleza do sacerdócio comum dos fiéis e que não se deseja – outra vez – centrada no ministério dos presbíteros. Ah... e menos streaming... estamos fartos de tanto espetáculo.
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A tentação de perder a mediação. Artigo de Márcio Pimentel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU