17 Dezembro 2024
Querido Leonardo, siga como luz vigorosa na festa de seus 86 anos na memória do santo de 14 de dezembro, São João da Cruz: “Não faça coisa nenhuma nem diga palavra que Cristo não faria ou não diria se encontrasse as mesmas circunstâncias”.
O artigo é de Fernando Altemeyer Junior, publicado em seu Facebook, 13-12-2024.
Fernando Altemeyer Junior É graduado em Filosofia, pela Faculdades Associadas do Ipiranga (1979), e em Teologia, pela Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção (1983). Tem mestrado em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-La-Neuve na Bélgica (1993) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) (2006). É assistente doutor da PUC-SP e pertence ao Departamento de Ciência da Religião (Faculdade de Ciências Sociais). Exerceu o cargo de ouvidor público da PUC-SP entre 2005 e 2009
Em 1981 Leonardo Boff lançava o livro Igreja: Carisma e Poder, uma coletânea de 13 textos escritos por ele. Quais foram os pontos-chaves e a importância da obra?
Há muitos modos de pensar a fé e fazer teologia. Sempre houve e sempre haverá. Todos merecem ser ouvidos, compreendidos, vividos e passar pelo crivo inteligente do Evangelho e da Tradição. A fé sempre busca inteligibilidade (Fides quaerens intellectum). O que não se deve é canonizar uma única interpretação uniforme como verdadeira ao negar outros modos de pensar apenas por terem pontos diversos daquele olhar centralizador. A uniformidade é danosa e mesquinha. O pluralismo é a grande riqueza do amor e da esperança. Para entender a tensão que ocorreu entre os escritos de Leonardo e a Cúria Romana é preciso compreender os dois modos de ver o mundo e a Igreja: Na América Latina, a formulação da fé é direta. Na Europa, é reflexa.
Na América Latina, o ponto de partida é o rosto de Cristo transfigurado nos pobres. Na Europa, o ponto crucial é a transfiguração do Cristo na filosofia e no pensamento clássico. Na teologia latino-americana a preocupação é prática. Na Europa, é lógica. Na América Latina vemos o povo crucificado como cruz divina. Os pobres são cruciais. Na Europa fala-se do Deus crucificado como cruz humana. A Igreja é crucial. Na América Latina, a consciência histórica é um critério de seguimento de Jesus. Crer é seguir Jesus. Na Europa, o caminho de Jesus é objeto de investigação e critério para discernir entre o crer e o não crer. Crer é entender Jesus. Na América Latina, a pregação de Jesus sobre o Reinado de Deus é um contexto vital e se faz a mediação concreta para conhecer o Deus vivo e verdadeiro. O Reino revela o amor e a verdade. Na Europa, a proclamação da verdade é a fonte segura do fazer teologia.
A verdade é quem revela o amor e o Reino. Como podem ver são modos distintos de pensar e produzir teologia. Ambos válidos e pertinentes. Boff foi condenado a priori por pensar a partir de outro polo, já que a Cúria Romana, por séculos produziu uma teologia descendente (tal qual a antiga escola alexandrina) e pensadores eminentes como Leonardo Boff, João Batista Libanio, Ignácio Ellacurria, Jon Sobrino e Ivone Gebara produzem teologia ascendente (tal qual a antiga escola antioquena). Ao ler o mundo de cima, os funcionários da Cúria não conseguem ver o mundo daqueles que vivem e pensam a partir do mundo dos pobres com autonomia e inteligência de sujeitos eclesiais. Não conseguem aprovar o movimento do humano ao divino. Pensam que só pode existir teologia do divino ao humano. Disseram que Leonardo Boff era heterodoxo, pois sua teologia não era eurocêntrica e conceitualmente europeia.
A questão central é que Leonardo Boff havia assumido a letra e o espírito dos documentos do Concílio Vaticano II, particularmente a Gaudium et Spes como seu critério e a Cúria Romana quis fazer a leitura retrógrada ao negar a nova teologia do Povo de Deus. Os teólogos romanos não quiseram avançar na eclesiologia e em nova teologia para o novo milênio. Quiseram congelar o pensamento.
A Cúria Romana bloqueou o Concílio e propôs a volta às categorias de Corpo e hierarquia eclesiástica como expressões de poder. Temeu a crítica profética de Leonardo Boff e dos cristãos que clamavam por justiça social e uma Igreja solidária aos oprimidos. Boff fez teologia a partir das comunidades eclesiais inspiradas nas Conferências de Medellin e Puebla. Usou do linguajar da Patrística, de João XXIII, de Mesters, auxiliado por conceitos de Max Weber que deixaram o rei nu e exaltavam o carisma originário de Jesus e do apóstolo Paulo. Ao perceber o grave erro que cometera contra a Igreja dos Pobres, o papa João Paulo II em carta dirigida ao episcopado brasileiro, de nove de abril de 1986, dirá em alto e bom som: “…estamos convencidos, nós e os senhores, de que a Teologia da Libertação é não só oportuna, mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa – em estreita conexão com as anteriores – daquela reflexão teológica iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes padres e doutores, com o magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico patrimônio da doutrina social da Igreja expressa em documentos que vão da Rerum Novarum a Laborem Exercens”. Insiste o papa polonês: “Os pobres deste país, que tem nos senhores os seus pastores, os pobres deste continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los”.
A condenação pela Congregação para a Doutrina da Fé ao “silêncio obsequioso”. Por quê? Há algo no livro Carisma e poder que conflita com a Igreja Católica?
A meta era atingir a mente mais lúcida da América Latina e Caribe para calar o pensamento em favor do mundo dos pobres. A estratégia persistiu até a eleição do Papa Francisco, quando voltamos a ter oxigênio para fazer teologia. Superou-se o verdadeiro inverno eclesial e eclesiástico que durou 40 anos. Um verdadeiro deserto para os intelectuais católicos. A Cristologia latino-americana se faz a partir da dor humana, especialmente da humanidade padecente em sua carne e corpo, nas ditaduras militares foi calada e perseguida dentro da própria Igreja (exemplo dramático vemos na pessoa de Dom Romero, de El Salvador, perseguido por militares e pelos próprios irmãos bispos de seu país). A Cristologia europeia se fez a partir do conhecimento humano e da angústia existencial em sua alma e mente (é cristologia descendente). A Cristologia latino-americana vem de baixo para cima.
Do histórico de Jesus ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. É alinhada à escola teológica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a São João Crisóstomo. Fazer teologia muda a vida dos teólogos. Já a Cristologia europeia vem de cima para baixo. Do ser de Deus ao Cristo da fé. Do Cristo ao Jesus Ressuscitado. Do Ressuscitado ao crucificado. É alinhada aos pensadores alexandrinos, particularmente ao grande doutor Atanásio. Os teólogos da América Latina e Caribe (e Leonardo entre eles e elas) assumiram a chave interpretativa proposta por Simone Weil: “a plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de perguntar: qual a tua aflição?” A Teologia da Libertação quis pensar a fé cristã respondendo às perguntas dos aflitos. A Teologia da Libertação continua ainda viva ao preocupar-se com os novos pobres do continente e assumir-se como uma teologia da compaixão. Ficar longe dos pobres é o que seria a maior das heresias.
Leonardo Boff segue sendo um teólogo respeitado, inclusive estudado em seminários católicos e universidades católicas ao redor do mundo até hoje. Porque sua obra cresce e enobrece a missa evangelizadora e resiste ao tempo e aos integristas?
A teologia de Boff e tantos pensadores do hemisfério sul participa da esperança libertadora dos povos crucificados. É uma cristologia ascendente, inspirada em textos clássicos dos aristotélicos e tomistas. Leonardo Boff, Carlos Mesters, Ivone Gebara, Jon Sobrino, Milton Schwantes fazem parte da família espiritual que bebe dessa fonte teologal. A teologia europeia trabalha a encarnação do Verbo como manifestação salvífica de Deus. É uma teologia descendente, inspirada em textos clássicos dos platônicos e dos agostinianos.
Os teólogos da Congregação da Doutrina da Fé têm bebido dessa fonte espiritual, legítima, mas não única. A Igreja latino-americana construiu uma teologia que dialoga com o magistério local e com o mundo dos pobres.
E esse magistério se exprimiu teologicamente de forma adulta em Medellin, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, em documentos pastorais de serviço ao povo e ao Evangelho. O que foi escrito na Conferencia Geral de Medellin, em 1968, foi uma profecia autêntica do povo de Deus. O que foi assumido em Puebla, em 1979, foi a opção do Evangelho pelos pobres e contra a pobreza. O que foi encarnado e inculturado em Santo Domingo, em 1992, foi chave interpretativa dos sinais dos tempos. Essa é a teologia da Igreja em saída como pede o documento de Aparecida em 2007. A missão da Igreja não é restauradora. É anúncio feliz da vida em Cristo. É ação do Evangelho e anuncio do Reino mais que doutrina ou dogmas teóricos. É seguimento e testemunho vital. Estar ao lado dos vulneráveis e subalternos. Isso incomoda o centro romano. A teologia de Boff segue necessária e vigorosa até hoje.
O pensamento do nosso amado irmãozinho Leonardo Boff segue relevante até hoje aos 86 anos de vida e esperança. A teologia proposta e gestada por Leonardo e em praticamente toda América hispânica e brasileira dialogou e questionou o magistério local e o universal. Assumiu colóquios fecundos com pastores como dom Luciano Pedro Mendes de Almeida e dom José Ivo Lorscheiter. Sustentada por cardeais como Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, e por patriarcas da Igreja latino-americana que podem ser chamados de novos padres da Igreja: Jaime Francisco de Nevares, Alberto Pascual Devoto, Eduardo Francisco Pironio, Enrique Angel Angelelli (argentinos); Jorge ManriqueHurtado (boliviano); Avelar Brandão Vilela, Fernando Gomes dos Santos, Helder Pessoa Câmara, Romeu Alberti (brasileiros); Enrique Alvear, Manuel Larrain Errazuriz, Raul Silva Henríquez (chilenos); Gerardo Valencia Cano (colombiano); Oscar Arnulfo Romero (salvadorenho); Leônidas E. Proaño Villalba, Pablo Muñoz Vega (equatorianos); Juan Gerardi Conedera (guatemalteco); Marcelo Gerin (hondurenho); Bartolomé Carrasco Briseño, José Salazar López, José Alberto Llaguno Farias, Sergio Méndez Arceo (mexicanos); Marcos Gregório McGrath (panamenho); Ramón Bogarín Argaña (paraguaio); Juan Landázurri Rickett (peruano) e Carlos Parteli Kéller (uruguaio). Todos filhos e filhas do Vaticano II que retomaram a antiga patrística.
Padres testemunhas como Oscar Romero e Enrique Angelelli. Mártires como Dorothy Mae Stang, Margarida Alves, Ita Ford, Creusa, semearam igrejas em todo o continente, como lemos na ancestral expressão de Tertuliano: sanguis martyrorum, semina christianorum – sangue dos mártires é sementeira de novos cristãos.
Grupos da ultradireita seguem perseguindo a Teologia da Libertação e todos que defendem a libertação, a liberdade e uma Igreja de cristãos adultos sem narcisismo nem padres feiticeiros. Boff segue sendo incomodo?
Sim, durante décadas o olhar rígido e inflexível da parte da Comissão da Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício pretendia enquadrar e silenciar qualquer reflexão que não obedecesse ao método curial. Muitos foram silenciados, perseguidos e condenados durante o longo pontificado do papa João Paulo II (1978-2005). Estima-se em torno de duzentos processos entre os quais: Hans Küng em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Edward Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya em 1997; Anthony de Mello, punido em 1998 (morto em 1997!); Reinhard Messner no ano 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal em 2001; Roger Haight em 2004; Irmã Ivone Gebara, cônega de Santo Agostinho, punida em 30 de maio de 1995 e, o jesuíta Jon Sobrino em março de 2007.
Divina de gratidão ao mestre, amigo Leonardo por tanto bem que testemunhou em nossas vidas.
O sofrimento pessoal de Leonardo Boff punido com o silêncio e o ostracismo pela Cúria Romana foi momento fecundo para que se descobrisse que a humanidade sacratíssima de Jesus é o caminho seguro para contentar a Deus, para alcançar grandes graças do Espírito Santo e, sobretudo, pode ser a porta segura para que Deus nos mostre seus grandes segredos. São Francisco de Assis mostrou isso ao receber as chagas de Cristo. Santo Antônio de Pádua, ao apresentar em seu colo o menino Deus. São Bernardo e Catarina de Sena em seus poemas de amor à humanidade de Deus feito humano. A doutora Santa Teresa de Ávila, dizia no Livro da Vida, capítulo 22, que o melhor “caminho para a mais alta contemplação de Deus passa pela humanidade de Jesus." Todo esse sofrimento o irmana ao sofrimento de Congar, de Teilhard de Chardin, e, sobretudo às perseguições vividas pelo pensamento de Santo Tomás de Aquino durante séculos na Igreja. No largo peregrinar da fé dos pequeninos assumo os versos do poeta Carlos Drummond de Andrade: “Como vencer o oceano se é livre a navegação, mas proibido fazer barcos?”. A tarefa da teologia é produzir remos para que o barco da Igreja se lance ao mar e, submetida ao Espírito Santo, acuda os náufragos que confiam suas frágeis existências àqueles que conduzem os instrumentos de salvação guiados pelo Pai de Jesus Cristo. Parafraseando ao francês Blaise Pascal podemos dizer: “Todas as teologias não valem um gesto autêntico de solidariedade com os pequeninos”.
Querido Leonardo, siga como luz vigorosa na festa de seus 86 anos na memória do santo de 14 de dezembro, São João da Cruz: “Não faça coisa nenhuma nem diga palavra que Cristo não faria ou não diria se encontrasse as mesmas circunstâncias”.
Anexo uma oração irlandesa com votos de Paz e bem. Abreijos, querido Leonardo Genezio Boff (disponível aqui).
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Na festa de seus 86 anos faço memória da pessoa viva e querida de Leonardo Boff. Artigo de Fernando Altemeyer Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU