06 Julho 2018
"A Conferência de 1968, em seu modus operandi se propôs a reler e recepcionar na realidade deste continente os postulados do Vaticano II. Ela não o fez com parcimônia, mas com extrema perícia, profundidade e competência. De maneira singular aplicou o aggiornamento proposto pelo Concilio Vaticano II em suas estruturas eclesiais e em certo sentido foi muito mais além".
O comentário é de Reuberson Ferreira, religioso Missionário do Sagrado Coração, vigário paroquial na Paróquia S. Miguel Arcanjo - SP, mestre em Teologia e especialista em docência do Ensino Superior e em Teologia, Cultura e História judaica. Também é membro do grupo de pesquisa no CNPq Religião e política no Brasil contemporâneo e assessor de Cursos Populares de teologia.
No mês de agosto próximo e ao longo de todo ano, parcela significativa da Igreja recorda com nostálgica memória e com consciência de um marco fundador de uma Igreja com feições Latino-americana, os cinquenta anos de Medellín[1]. De fato a II conferência geral do Episcopado Latino-Americano celebrada de 24 de agosto à 06 de setembro de 1968 lavrou a certidão de nascimento da Igreja neste continente, tornou-se fonte e não mais reflexo, para recordar a clássica expressão do Jesuíta Henrique Lima Vaz.
A Conferência de 1968, em seu modus operandi se propôs a reler e recepcionar na realidade deste continente os postulados do Vaticano II[2]. Ela não o fez com parcimônia, mas com extrema perícia, profundidade e competência. De maneira singular aplicou o aggiornamento proposto pelo Concilio Vaticano II em suas estruturas eclesiais e em certo sentido foi muito mais além[3]. Nesse espectro inseriu-se a busca de renovação, inclusive da Vida religiosa consagrada, a qual Medellín dedica um relatório inteiro de suas conclusões.
Atualmente, ultrapassando à marca dos cinquenta anos e já tendo sido celebrada outras três Conferências Gerais, cabe inquirir o que Medellín tem a dizer a VRC hodierna? O que os homens e mulheres, consagrados ao Senhor, nas diversas formas de expressão de Vida Religiosa, podem apreender e agregar à sua forma de servir a Deus e a Igreja a partir de Medellín?
Dentre uma variável de múltiplas possibilidades a serem aventadas, pode-se sugerir três: Seguir sendo sinal escatológico do Cristianismo dentro e fora da Igreja; insistir numa obstinada opção pelos pobres e sofredores; Por fim, no universo dos planos diocesanos das igrejas locais, exercer o que é próprio do carisma e não apenas ser suplência de clero autóctone.
Há cinquenta anos e exalando ares de uma teologia renovada sobre a Vida religiosa oriundos do Vaticano II, Medellín previu que aos consagrados, como em outros tempos, cabe ser sinal escatológico do cristianismo dentro da Igreja[4]. Entendido como , de um lado, compromisso com a realidade concreta e, de outro, como marca da intrínseca vocação transcendente da humanidade.
Nesse sentido, essa flâmula que a VRC porta deve ser um sinal para igreja e para o mundo hoje. Ela deve ser o marco que combate um certo “mundanismo Espiritual”[5] que habita no seio da Igreja( da VRC, incluso) e esconde-se sob a fachada de aspectos religiosos. Ela deve ser espelho da plena convicção de que é a abertura ao Espírito e a graça de Deus que fazem a Igreja avançar e testemunhar o evangelho.
A VRC deve ser sinal de uma igreja em saída, que tateia em meio a noite escura caminhos novos para o anúncio do Evangelho, na convicção de que é guiada pelo Espírito e busca fazer a vontade de Deus. Assim, nestes tempos, a ideia de ser sinal escatológico do cristianismo pede à VRC que seja a primeira deixar de ser auto referencial e apontar para o Reino de Deus com critério de sua atuação da Igreja.
De igual modo, embora o faça de maneira tácita no documento sobre os religiosos[6], as conclusões de Medellín são marcadas por uma deliberada Opção pelos pobres. Convém nesse espírito, recobrar no universo atual da VRC a opção pelos frágeis e sofredores, critério de autenticidade do anuncio do evangelho[7]. Uma opção que deve ser traduzida nas escolhas pessoais e nas decisões de todo o corpo da ordem ou da congregação.
Atualmente, não raro vê-se em congregações uma perene discussão sobre a reestruturação de obras. O critério para tal opção é pautado por uma lógica que foge à da opção pelos pobres. De maneira contumaz, as obras são revistas por uma dinâmica que se aproxima mais da estratégia neoliberal do que da opção evangélica. Aqueles serviços e/ou obras que não oferecem retorno financeiro são facilmente deixadas em vista de uma readequação de trabalhos. Trata-se daquilo que Jaldemir Vitório ao falar da redução de efetivos das congregações, define como “encolhimento da periferia para o centro”[8].
Nesse espírito, convém recobrar uma sadia opção pelos pobres. Se é verdade que as obras devem manter-se, deseja-se que elas não sejam deixadas apenas por não ofertarem dividendos. Que elas sejam mantidas por um verdadeiro compromisso evangélico com os frágeis, no espírito do que inspirou a Conferência de 1968 e tanto instiga o atual pontífice.
Por fim, em Medellín, foi sugerido que os religiosos ( incluso as religiosas) pudessem assumir ministérios paróquias onde houvesse ausência de ministros ordenados. Uma espécie de suplência do clero local[9]. Historicamente isso aconteceu em diversas regiões, sobretudo nas mais periféricas. Aos religiosos, sobretudo os sacerdotes, tal tarefa é anterior a Medellín.
Atualmente essa dimensão de suplência do clero local é algo que se tornou relativo. O aumento do clero secular em algumas regiões, faz com que bispos, não sem razão, solicitem paróquias aos religiosos, sobretudo aquelas nas regiões centrais.
Urge desse modo, que a VRC não assuma mais paróquias na perspectiva de suprir falta de clero, mas sim de contribuir com o seu carisma especifico na gestão e condução de comunidades paroquiais. Seria um trabalho, no bom sentido da palavra, carismático. Um diferencial na condução de certos serviços, não apenas do ponto de vista afetivo de alguns paroquianos, mas numa perspectiva de atuação que fuja ao ordinário das atividades paroquiais. Trata-se não do viés da suplência da falta de clero, mas de mesmo com a existência dele ser, nesse universo, sinal claro de uma Igreja que se renova e busca constituir o Reino.
Em linha gerais, Medellín ainda poderia apresentar muitos questionamentos à VRC. Esses três, no entanto, configuram-se como os mais prementes para os limites desta reflexão. Eles, ao nosso ver, em tempos da primavera eclesial que toma forma a partir do pontificado de Francisco, ajudam a constituir uma vida religiosa mais fiel ao Evangelho e à construção do Reino de Deus. São sinais distintivos de uma VRC que, mesmo recrudescendo em seu número de membros ainda pode oferecer um novo vigor à Evangelização.
Notas:
[1] Para uma análise acurada sobre Medellín e seu impacto na América Latina à luz do Vaticano II, consultar: GUTIÉRREZ, Gustavo. O Concilio Vaticano II na América Latina. In: Beozzo, José Oscar. O Concílio Vaticano II e a Igreja latino Americana. São Paulo: Edições Paulinas,1985, p.17-49; Ou Para uma panorâmica histórica sobre o contexto imediato que secundava Medellín, conferir: DUSSEL, Enrique. A Igreja ante a renovação do Concilio e Medellín(1959 – 1972). DUSSEL, Enrique. História Liberationis: 500 anos de História da Igreja na América Latina. São Paulo: Edições paulinas/ Cehila, 1992, p.244-264. Ou ainda para uma visão mais ampla sobre os antecedentes históricos de Medellín, consultar: SOUZA, Ney. Notas sobre os antecedentes históricos da Conferência de Medellín. In: SOUZA, Ney de; SBARDELOTTI, Emerson(Orgs.). Medellín: Memória, profetismo e esperança n América Latina. Petrópolis: Vozes, 2018, p.23-40.
[2] Cf. CIPOLINI, Carlos Pedro. A identidade da Igreja na América Latina. São Paulo: Edições Loyola, 1987, p.84-85; SOUZA, Luiz Alberto Gomez. A caminhada de Medellín à Puebla. Perspectiva teológica. Belo Horizonte, n. 31, 1999, p. 223-34; Beozzo, José Oscar. Medellín: quarenta anos. Concilium: Revista internacional de Teologia. Petrópolis, n. 328, 2008, p. 124-36; TAVARES, Sinvaldo. Medellín: uma criativa “recepção” do Concílio. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 68, fasc. 269, jan. 2008, p. 46 ss; SOUZA, Ney de. Rio de Janeiro (1955) a Aparecida (2007). Um olhar sobre as Conferências Gerais do Episcopado Da América Latina e do Caribe. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, ano 15, n. 64, jul.-set. 2008, p. 127-47; COMBLIN, Joseph. Conferência Episcopal de Medellín: 40 anos depois. Cadernos de Teologia Pública, São Leopoldo. ano 5, v. 36, 2008, p. 11.
[3] Cf. MANZATTO, Antônio. A situação eclesial atual.In: GODOY, Manoel; AQUINO, Francisco de(Orgs.). 50 anos de Medellín: Revisitando os textos, retomando o caminho. Sã Paulo: paulinas, 2017, p.28-30
[4] Cf. DM, Religiosos, n.2
[5] Cf. EG, 93-97
[6] Cf. DM, Religiosos, n.13f.
[7] Cf. EG, 195;198
[8 ] VITÓRIO, Jaldemir A vida religiosa consagrada em Medellín e hoje. In: GODOY, Manoel; AQUINO, Francisco de(Orgs.). 50 anos de Medellín: Revisitando os textos, retomando o caminho. Sã Paulo: paulinas, 2017, p.226.
[9] Cf. DM, Religiosos, n.20
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50 anos depois: em que Medellín ainda deve provocar a vida religiosa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU