13 Junho 2024
No Festival das Periferias, em Roma: alguns trechos da apresentação de Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor. O teólogo reflete sobre a influência do pensamento racionalista na abordagem do planeta. Faz isso a partir da ideia de utopia e do princípio esperança, de Bloch, retomado por Francisco. O conceito de Antropoceno e a visão de “Gaia” como organismo vivo, introduzida por Lovelock e Wilson, fazem compreender a urgência de reencontrar um equilíbrio perdido. Chega às livrarias pela Castelvecchi o novo livro La tenerezza di Dio-Abba e di Gesù [A amorosidade do Deus-Abba e Jesus de Nazaré].
A apresentação foi publicada por Avvenire, 11-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para falar da “Utopia da Mãe Terra” com um significado correto, devemos recuperar o conceito de utopia e de Mãe Terra. A utopia não deve ser entendida no sentido comum de algo fantasioso e irreal. Modernamente, o significado positivo da utopia foi recuperado. A utopia não se opõe à realidade, pelo contrário, pertence à realidade, porque esta não é feita apenas do que é dado e visto, mas do que é potencial, que ainda não se vê, mas que um dia poderá se tornar dado real e visível. O ser humano é um projeto infinito. Escondido dentro dele está um número ilimitado de potencialidades e virtualidades. Elas podem ser destrincadas e transformadas em realidade.
Este é o lugar de nascimento da utopia. O filósofo alemão Ernst Bloch cunhou a expressão princípio-esperança. O princípio-esperança, cujo conceito é retomado na encíclica Fratelli tutti do Papa Francisco, é mais do que a virtude da esperança. O princípio da esperança representa uma força motriz interior que está sempre em funcionamento e alimenta a imaginação e o inesgotável potencial da existência e da história humana. O princípio-esperança é o nicho das utopias. Permite projetar continuamente novas visões, novos percursos ainda não trilhados e sonhos realizáveis.
O significado da utopia é sempre fazer-nos mover, superar sempre as dificuldades e melhorar a realidade. Como seres humanos, somos seres utópicos. Ainda temos que recuperar a nossa compreensão da Mãe Terra. (...).
Até ao advento da ciência moderna, com os pais fundadores do atual paradigma científico, Descartes, Galileu Galilei e acima de tudo Francis Bacon, a Terra era sentida e vivida como a Grande Mãe, a Magna Mater, Nana, Totanzin e Pacha Mama que nos doa tudo: uma realidade irradiante que inspirava medo, respeito e veneração. A partir da razão analítico-instrumental dos modernos tudo mudou. Começou a ser vista simplesmente como uma coisa extensa (res extensa) e sem propósito, dada aos humanos para fazerem o que quisessem. Esses pais fundadores, por utilizarem apenas a matemática e a física, não percebiam que a Terra não era apenas uma coisa extensa. Nela havia natureza e vida. Mas não a apreciavam porque não se enquadrava no seu conceito de ciência (...)
A exploração excessiva da natureza, sem se preocupar com as consequências negativas, nos levou à crise atual. Inauguramos, como diz um grupo de cientistas, uma nova era geológica, o Antropoceno. Isso significa: os danos à natureza e à Terra não vêm de fora, mas da atividade humana que é demasiado destrutiva ao ponto de o planeta perder o seu equilíbrio dinâmico.
Seguindo essa lógica de exploração, dizem os cientistas da Terra, poderíamos, antes de chegar ao ano 2050, testemunhar a devastação da biosfera com milhões de pessoas ameaçadas nas suas vidas pela fome, subnutrição, doença e morte. Nosso futuro seria ameaçado. Mas a partir da década de 1970 surgiu uma nova imagem da Terra que recupera a visão dos antigos: o cientista da NASA James Lovelock e sua equipe, estudando as condições dos vários planetas, perceberam que a Terra é um superorganismo vivo.
Articula, com sutil calibração, todos os elementos fundamentais para a vida, químicos, físicos e ecológicos, de modo que emerge como uma entidade viva e geradora de vida. Ele a chamou de Gaia, do nome mítico da divindade grega que representava a vida na Terra. (...) A prova mais convincente de que a Terra está viva nos foi dada pelo grande biólogo Edward Wilson. Em um de seus livros afirma que “num único grama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem aproximadamente 10 bilhões de microrganismos: bactérias, fungos e vírus, de 6 mil espécies diferentes”. Se há tanta vida em uma porção tão pequena da terra, imagine o planeta inteiro. Os astronautas de suas naves espaciais, que viram a terra do espaço, assistiram à mesma coisa: sentiram a Terra como algo vivo. Disseram que não há separação entre a Terra e a Humanidade. Formam uma única unidade.
Isaac Asimov, grande divulgador do conhecimento científico, por ocasião dos 25 anos do lançamento do Sputnik que inaugurou a era espacial, declarou numa entrevista ao New York Times em outubro de 1982: “O grande legado deste quarto de século é a percepção de que, do ponto de vista das naves espaciais, a Terra e a Humanidade formam uma única entidade. Têm a mesma origem e o mesmo destino." Como dizia o grande poeta e cantor indígena argentino Athaualpa Yupanki: “O ser humano é a Terra que caminha”. O ser humano é a própria Terra, que num momento avançado em sua evolução e complexidade começou a sentir, pensar, amar e venerar. Eis que apareceram o homem e a mulher. Pois esse homo (homem e mulher) vem de húmus, terra boa e fértil. Em hebraico Adam também significa filho e filha de Adamah, terra fecunda e cultivável.
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Terra e humanidade, o destino é único. Apresentação de Leonardo Boff no Festival das Periferias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU