16 Novembro 2020
"A intrusão do Covid-19 revelou estas virtudes, presentes nos humanos mas de modo especial nos pobres e nas periferias, porque lá se refugiaram, pois nas cidades impera a cultura do capital, com seu individualismo e falta de sensibilidade face à dor e ao sofrimento das grandes maiorias da população. O que se esconde atrás destes gestos cotidianos de solidariedade? Esconde-se o princípio esperança e a confiança de que, apesar de tudo, vale a pena viver porque a vida, na sua profundidade, é boa e foi feita para ser levada com coragem que produz autoestima e sentido de valor", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro, e autor de Saudade de Deus (Vozes 2019).
A intrusão do Covid-19 atingindo todo o planeta e dizimando mais de um milhão de vidas sem poderem ser veladas e receberem o último carinho de seus familiares, além de infectar outras milhões de pessoas, suscitou a perturbadora pergunta: qual o sentido da vida? Por que esse sofrimento todo? O que a natureza nos quer dizer com esse vírus invisível que colocou de joelhos todas as potências militaristas tornando ineficazes suas armas de destruição em massa? O Covid-19 caiu como um meteoro rasante sobre o sistema do capital e o neoliberalismo. Seus mantras foram destroçados. Adiantou alguma coisa o lema de Wall Street: “greed is good” = a cobiça é boa? Ninguém come computadores, nem se alimenta dos algoritmos da inteligência artificial.
Qual eram os dogmas da fé capitalista e neoliberal? O essencial é o lucro, no menor tempo possível, a concorrência feroz, a acumulação individual ou corporativa, o saque cruel dos recursos da natureza, deixando as externalidades por conta do estado, a indiferença face à taxa de iniquidade social e ambiental, a postulação de um Estado mínimo para escapar das leis limitantes e poder acumular mais desimpedidamente.
Se tivéssemos seguido estes mantras, o extermínio de vidas humanas seria incalculável. Sem políticas públicas as pessoas seriam tragadas por um destino atroz.
O que nos tem salvado? Aqueles valores e atitudes ausentes no sistema do capital e neoliberal: a percepção de que não somos "deuses" mas totalmente vulneráveis e mortais, expostos à imprevisibilidade. O que conta não é o lucro mas a vida; não é a concorrência mas a solidariedade; não é individualismo mas a cooperação entre todos; não é o assalto aos bens e serviços da natureza mas o seu cuidado e proteção; não é um estado mínimo, mas o estado suficientemente apetrechado para atender as demandas urgentes da população. Dito diretamente: o que vale mais, a vida ou o lucro? A natureza ou a sua expoliação desenfreada?
Responder a estas perguntas impostergáveis é interrogar-se sobre o sentido ou o absurdo de nossa vida, pessoal e coletiva. O isolamento social é uma espécie de retiro existencial que a situação nos impôs. Cria-se a oportunidade de colocar estas questões inadiáveis. Nada é fortuito nesse mundo. Tudo guarda uma lição ou um sentido secreto que cabe desvendar, por mais perplexa que seja a realidade. O que não podemos é permitir que esse sofrimento coletivo seja em vão. Ele funciona como um crisol que purifica o ouro, que acrisola nossa mente, e põe em xeque certos hábitos a serem revistos e novos a serem incorporados especialmente com referência à nossa relação para com a natureza e o tipo de sociedade que queremos, menos perversa e mais solidária.
Todos falam da medicina, da técnica e dos insumos e principalmente da busca ansiosa de uma vacina contra o Covid-19. Poucos são os que falam da natureza. Precisamos considerar o contexto da irrupção do coronavírus. Ele não é isolado. Veio da natureza que por séculos foi saqueada irresponsavelmente pelo processo industrialista do capitalismo e também do socialismo, no falso pressuposto de que a Terra teria recursos infinitos. Desmatamos impiedosamente e assim destruímos os habitats dos milhares de vírus que vivem nos animais e até nas plantas. Perdendo sua “morada natural” buscam em nós um lugar de sobrevivência. Desta forma temos conhecido uma vasta gama de vírus como o zika, o chikungunya, o ebola, a série derivados do SARS como o Covid-19 entre outros.
Temos a ver com um contra-ataque da natureza ou da Mãe Terra contra a humanidade, que querem nos transmitir uma severa admoestação: “parem com a agressão impiedosa, destruindo as bases físico-químicas-ecológicas que sustentam a vossa vida; caso contrário poderemos lhes mandar vírus muito mais letais que poderão dizimar bilhões de vocês, da espécie humana, e afetar gravemente a biosfera, aquela fina capa um pouco maior que um fio da navalha que garante a continuidade da vida”.
Predominarão estas advertências vitais ou o afã de acumular e garantir os interesses materiais? Teremos suficiente sabedoria para responder à alternativa que Aquele Ser que faz ser todos os seres: “proponho-vos a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe a vida para que vivas com tua descendência” (Deut 30,19)?
Portadores de uma fé num “Deus, apaixonado amante da vida” (Sab 11,26) apostamos ainda num sentido da história e da vida. Elas escreverão a última página da saga humana, construída com tanto esforço neste planeta.
Isso porém não nos deve desviar o olhar sobre o que está ocorrendo no cenário mundial e especificamente no brasileiro onde um chefe de estado, negacionista, não tem como projeto cuidar de seu povo e de nossa luxuriante natureza. Com desprezo e ironia assiste qual Nero que assistia Roma sendo queimada e ele tocando cítara.
A despeito disso tudo, nossa esperança não morre. Como afirma a Fratelli tutti do Papa Francisco: “A esperança nos fala de uma realidade enraizada no profundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive” (n.55). Aqui ressoa o princípio esperança, que é mais que uma virtude, mas um princípio, motor interior, que projeta sonhos e visões novas, tão bem formulado pelo filósofo alemão Ernst Bloch em seu O Princípio Esperança. Esta esperança nos resgatará um sentido de viver neste pequeno e amado planeta Terra.
Apesar de sermos seres contraditórios, feitos simultaneamente de luz e de sombras, cremos que a luz triunfará. Atestam-nos tantos bioantropólogos e neurocientistas: somos por essência seres de bondade e de cooperação. Vigora uma bondade fundamental na vida.
O homem comum que compõe a grande maioria, se levanta, perde precioso tempo de vida nos ônibus, vai ao trabalho, não raro penoso e mal remunerado, luta pela família, se preocupa com a educação de seus filhos, sonha com um país melhor. Surpreendentemente, é capaz de gestos generosos, auxiliando um vizinho mais pobre do que ele e, em casos extremos, arrisca a vida, para salvar uma inocente menina ameaçada de estupro. Nele está agindo o princípio esperança.
Nesse contexto não me furto de citar os sentimentos de um de nossos maiores escritores modernos Erico Veríssimo. Em seu famoso “Olhai os lírios do campo”:
“Se naquele instante caísse na terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas, fábricas … E se perguntasse a qualquer um deles: ‘Homem, por que trabalhas com tanta fúria durante todas as horas de sol?’ – ouviria esta resposta singular: ‘Para ganhar a vida’. E no entanto a vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se na terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição os transformava em inimigos. E havia muitos séculos, tinham crucificado um profeta que se esforçara por lhes mostrar que eles eram irmãos, apenas e sempre irmãos. (Olhai os Lírios do Campo, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1973. p. 292).
A intrusão do Covid-19 revelou estas virtudes, presentes nos humanos mas de modo especial nos pobres e nas periferias, porque lá se refugiaram, pois nas cidades impera a cultura do capital, com seu individualismo e falta de sensibilidade face à dor e ao sofrimento das grandes maiorias da população.
O que se esconde atrás destes gestos cotidianos de solidariedade? Esconde-se o princípio esperança e a confiança de que, apesar de tudo, vale a pena viver porque a vida, na sua profundidade, é boa e foi feita para ser levada com coragem que produz autoestima e sentido de valor.
Há aqui uma sacralidade que não vem sob o signo religioso mas sob a perspectiva do ético, do viver corretamente e do fazer o que deve ser feito.
O renomado sociólogo austríaco-norte-americano Peter Berger, já falecido, escreveu um brilhante livro, relativizando a tese de Max Weber sobre a total secularização da vida moderna com o título: “Um rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural” (Vozes 1973/2013). Aí descreve inúmeros sinais (chama de “rumor de anjos”) que mostram o sagrado da vida e o sentido secreto que ela sempre guarda, a despeito de todo caos e dos contrassensos históricos.
Aduzo, na esteira de Peter Berger, apenas um exemplo banal, entendido por todas as mães que acalentam suas crianças à noite.
Uma delas acorda sobressaltada. Teve um pesadelo, percebe a escuridão, sente-se só e é tomada pelo medo. Grita pela mãe. Esta se levanta, toma a criancinha no colo e no gesto primordial da magna mater cerca-a de carinho e de beijos, fala-lhe coisas doces e sussurra: “Filhinha, não tenha medo; sua mãe está aqui. Está tudo bem e está tudo em ordem, querida”. A criança deixa de soluçar. Reconquista a confiança e um pouco mais e mais um pouco, adormece, serenada e reconciliada com a escuridão.
Esta cena tão comum, esconde algo radical que se manifesta na pergunta: será que a mãe não está enganando a criança? O mundo não está em ordem, nem tudo está bem. E contudo, estamos certos: a mãe não está enganando sua filhinha. Seu gesto e palavras revelam que, não obstante a desordem reinante, impera uma ordem profunda e secreta.
Assim cremos que os tempos de Covid-19, tão dramáticos, hão de passar. Esperamos e como esperamos que, por debaixo deles e dentro deles, vai se fortalecendo uma ordem abscôndita que, quando tudo passar, irá irromper.
Assim a sociedade e a inteira humanidade poderão caminhar rumo a um sentido maior, cujo desenho final nos escapa. Mas intuímos desde sempre, que ele existe e será bom. A ele caberá escrever a última página com um happy end. Como escreveu o filósofo do Princípio Esperança, Ernst Bloch, verificaremos que o verdadeiro gênesis não estava no começo das coisas mas no seu fim. Só então será verdade: “Deus viu tudo quanto havia feito e achou que estava muito bom” (Gen 1,31).
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O covid-19 questiona o sentido da vida. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU