20 Junho 2020
Santiago Alba Rico (Madri, 1960) há tempo vem pensando, refletindo, com paixão intelectual e tranquilidade dialética, sobre o corpo. Corpos dos quais, segundo ele, no Ocidente, fugimos. Corpos que, com a crise do coronavírus, voltaram a se encarnar, a descobrir sua condição humana, vulnerável. “Ser o no ser (un cuerpo)” (2017) é justamente o último título dos quinze livros e ensaios que publicou até o momento, ao longo de sua trajetória como filósofo e ensaísta.
Encerrado o confinamento rigoroso e apenas com algumas semanas do início da nova normalidade, nesta entrevista, por videochamada, entre Madri e um povoado de Ávila, discorre sobre o impacto da pandemia sobre os corpos e a política.
A entrevista é de Amanda Andrades, publicada por Ctxt, 18-06-2020. A tradução é do Cepat.
Durante os quase últimos três meses, o vírus paralisou em grande medida o sistema capitalista. Agora que saímos do confinamento rigoroso e começamos a recuperar algo parecido com a normalidade, considera que aprendemos alguma lição e, sobretudo, alguma que se traduza em mudanças políticas e sociais?
Não sei, penso que em nível individual, muitas pessoas, sim, descobriram as vantagens dessa paralisação do sistema. Outra coisa é saber se essas vontades dispersas podem constituir algum tipo de sujeito coletivo capaz de manter o freio sobre o sistema. Naturalmente, houve novos elementos de estresse para muita gente, mas acredito que, em geral, o efeito descongestionante da paralisação, sim, traduziu-se na percepção pelos sujeitos individuais de até que ponto o que era patológico era a normalidade da qual procedíamos. Descobrimos que o confinamento, em algum sentido, nos proporcionava muito mais liberdade que uma vida social, econômica, e diria cultural, caracterizada por uma falsa tensão dramática.
Para mim, um dos grandes mistérios e grandes surpresas foi ver como facilmente a sociedade espanhola lidou com um mundo sem futebol. Pode parecer anedótico, mas as notícias esportivas eram um pouco o modelo de um sistema midiático e cultural no qual se estava imprimindo permanentemente uma falsa tensão dramática, que todos os dias traziam algo novo, muitas coisas novas. E uma sociedade em que tudo é acontecimento é um mundo, na realidade, sem acontecimentos. Este descongestionamento serviu para que distingamos o que é um acontecimento do que não é. É possível viver sem essa necessidade de estar experimentando permanentemente algo novo, algo intenso, algo dramático, algo no qual se decide o mundo.
Alguns de nós pudemos viver o confinamento como essa oportunidade, mas como se estabelecem alianças com aquelas pessoas que o viveram em inframoradias, em situações de muita precariedade, tendo que sair para trabalhar, sofrendo uma repressão policial que também adentrou pelos bairros?
A primeira questão é saber se existe alguma experiência comum, porque se não há, se realmente o abismo vital e vivencial é tão grande que nem sequer podemos entrar em acordo sobre o que vivemos, então não há nenhuma possibilidade. Eu diria que sim, que houve uma experiência vivencial comum para além destas diferenças terríveis, sociais, de classe, econômicas. Houve uma experiência vital comum ligada ao estado de exceção, não falo do estado de alarme, mas deste estado de exceção antropológico que todos, inclusive os que vivem em piores condições, compartilhamos. Todo estado de exceção, uma guerra, uma revolução ou inclusive um eclipse solar, tem algo que sacode emocionalmente de maneira coletiva. Produz-se uma mudança no marco da sensibilidade coletiva.
Preocupa-me mais o outro, a desproporção entre essa experiência comum e a capacidade de construir um sujeito coletivo a partir dela. Em uma situação que, de origem, não era particularmente encantadora ou auspiciosa e na qual, inclusive, os sujeitos coletivos organizados, como o feminismo e o ecologismo, ficaram muito ofuscados e curiosamente não saíram favorecidos desta experiência.
A questão é como se converte a sensibilidade comum em política comum. Não tenho a mínima resposta. Vejo mais facilmente os perigos que as possibilidades de construção de alternativas. Sim, vejo, ainda que seja algo derrotista descrever assim, que toda crise também fragiliza as elites dirigentes, as divide, revela suas fissuras e seus conflitos. Como possuem mais meios e mais recursos, sempre terão mais facilidades em aproveitar esta oportunidade, mas é necessário tentar aproveitar essa fissura, esse dissenso entre as elites dirigentes, e isso implica se organizar o suficiente para exercer alguma pressão.
Surpreende que considere que o feminismo e o ecologismo se viram ofuscados nesta crise, quando algumas das coisas que apareceram são, por um lado, a centralidade dos cuidados e, por outro, a relação que pode existir entre a expansão deste tipo de vírus e a destruição da natureza.
Sim, isso é o mais preocupante. É a sensação de que, ao contrário do que se poderia esperar e necessitamos que ocorra, não se estabeleceu uma relação experiencial, imediata, dramática e trágica, que tampouco havíamos estabelecido antes, ainda que existisse um movimento incipiente nessa direção, entre capitalismo e mudança climática. Até mesmo em nível muito banal, houve, ao contrário, a esperança de que a mudança climática e as altas temperaturas servissem para acabar antes com o vírus.
E em relação ao feminismo também não estou certo de que a percepção repentina e dramática da fragilidade do corpo tenha se traduzido, ou ao menos de uma maneira imediata, em um consenso maior dentro de um feminismo já minado por divisões muito “esquerdistas” entre “facções” e “correntes” e que, no marco da pandemia, recebeu golpes velhacos por parte do neomachismo da direita, cevado ideologicamente na marcha de 8 de março.
Durante o confinamento, também experimentamos, e ainda experimentamos, emoções muito generalizadas, como o medo, a angústia, a incerteza, a ansiedade. É possível construir a partir daí propostas políticas e sociais progressistas?
É preciso distinguir várias coisas. Para muita gente, o confinamento foi fonte de estresse. E o estresse e a ansiedade não são vetores de construção de alternativas progressistas. Mas se falamos de angústia, de medo e de dor, no melhor dos casos, porque acredito que um dos traços que caracterizavam essa anormalidade patológica da qual vínhamos era justamente a reivindicação, a exigência de uma segurança total. O que se traduzia em uma medicalização, psiquiatrização, de todas as experiências adversas da vida.
Agora, todos nós vivemos um medo que não tínhamos de nos reprovar: o medo de morrer, esse que havíamos esquecido radicalmente. Através dos psicofármacos, das drogas e da indústria do entretenimento, passamos muitos anos vivendo à margem do medo da morte. Havíamos aceitado o direito à imortalidade como um direito inalienável de nossa condição de brancos europeus. Acredito que, a partir dessa forma de medo, sim, é possível construir uma alternativa progressista.
O que não era em absoluto progressista era a negação da mortalidade, a ilusão da invulnerabilidade, o imperativo da felicidade. Ou seja, os eixos em torno dos quais estávamos construindo vidas que, por baixo, eram constantemente erodidas pela precariedade do trabalho, pelas dificuldades de chegar ao fim do mês, por esse estresse do falso acontecimento permanente. Sendo assim, acredito que não é ruim entrar radicalmente em contado com algo que tem a ver com nossa condição humana. E isto é muito político. Como civilização, o que o capitalismo vem fazendo é ocultar, e inclusive negar, às vezes, nossa condição humana. Que reapareça é uma primeira plataforma de resistência.
Esta redescoberta, no Ocidente, de nossa corporeidade, nossa vulnerabilidade, poderia nos conduzir à empatia em relação a esses outros que até agora só considerávamos corpos? Ou, ao contrário, legitimar a defesa de nossos corpos, custe o que custar, por exemplo, o assassinato desses outros em nossas fronteiras?
Podem acontecer as duas coisas e simultaneamente. O que existia antes era um combate entre imagens e corpos e estes sempre estavam fora, em outros países, na Síria, sob as bombas, na Líbia, tentando pegar um barco, tentando entrar na fronteira turca, no México, buscando ultrapassar um muro. Lá, existiam corpos que ficavam presos nas cercas. E, além disso, apareciam como corpos ameaçadores. Víamos com alívio que não conseguiam entrar. E quando conseguiam, nós os enxergávamos claramente como ameaças. A mais extrema, a ameaça terrorista, com o corpo que se faz explodir em uma praça pública.
Portanto, antes éramos imagens ameaçadas por corpos. Rapidamente, o coronavírus assimila a todos. Todos já somos corpos. E, além disso, de uma maneira muito paradoxal, porque nós mesmos, como potenciais portadores do vírus, somos também corpos ameaçadores. Para dizer de uma maneira um pouco demagógica e provocativa, descobrimos que nós também carregamos um terrorista dentro. A descoberta de que somos ameaçadores é a verdadeira descoberta da corporeidade. E isso confere fragilidade, o que pode se traduzir em criminalização do outro: ‘sou frágil porque o outro me ameaça’. Mas, neste caso, a fragilidade está associada à descoberta de si mesmo como fonte de ameaça para o outro.
Dessa conjunção poderia e deveria sair uma verdadeira revolução em termos de relação com os outros. Não sairá, receio, porque vínhamos de um mundo em que havíamos sido convencidos de que estávamos protegidos de qualquer ameaça e haverá, existe, uma reivindicação muito forte de segurança total, de um setor da população. E, sobretudo, há grupos políticos orientados a gerar a ilusão de que eles, sim, podem nos devolver essa segurança. É muito fácil que neste momento de medo, acabemos negando essa parte ameaçadora que há em nós, pela qual somos realmente corpo. E que, reivindicando uma segurança total, criminalizemos ainda mais o outro.
Como dizia, o coronavírus tornou todos nós suspeitos, nossos corpos agentes contaminadores. Que impacto isto pode ter em nossa vivência da amizade, família, em nossa relação com os outros, conhecidos ou desconhecidos?
É difícil avaliar porque nós, seres humanos, somos capazes de tornar qualquer coisa habitual. Não sei o que me dá mais medo neste momento. Que volte a se tornar habitual o estresse social que estava acompanhado obviamente de muita irresponsabilidade corporal ou que, ao final, acabemos interiorizando de tal maneira a necessidade de defender os outros de nossos próprios corpos que acabemos nos negando o toque. Essa ameaça está muito presente. Éramos muito sociáveis e nos tocávamos muito, mas, ao mesmo tempo, já vivíamos em um confinamento tecnológico que era compatível com essa hipersocialibidade corporal.
A imagem que pode resumir a conjunção destes vetores é a de um espaço de um bar em que você vê muitos amigos juntos, cada um absorvido em seu telefone. O corpo está aí, mas está descorporalizado. As duas coisas têm a ver com o que Stiegler chama de a proletarização do ócio. Nosso ócio tinha sido proletarizado pelo capitalismo por duas vias: a do turismo, a hotelaria, o contato solúvel, intenso e fugaz entre os corpos; e a do confinamento tecnológico. Esta última saiu muito reforçada. Diante disto, o que deveríamos fazer? Alimentar a outra via? Não, mas, acredito que é necessário reivindicar o risco corporal frente ao confinamento tecnológico. E isso significa o distinguir da cessão de seu corpo ao vetor de exploração econômica do turismo ou da hipersociabilidade solúvel.
E como se distingue?
Seria necessário fazer um verdadeiro discurso sobre o corpo. Primeiro para defini-lo bem, para se perguntar realmente o que quer dizer se tocar. Minha tese, que esbocei em “Ser o no ser (un cuerpo)”, tem a ver com o fato de que quase já não éramos corpo, podíamos estar todos juntos e nos abraçar e inclusive manter relações sexuais muito promíscuas, sem que o corpo desempenhasse qualquer coisa em tudo isso.
Diante da combinação do confinamento tecnológico e a turistização das vidas, é preciso reivindicar uma corporeidade na qual quando você toca, realmente está tocando um corpo, quando abraça, está realmente abraçando um corpo e, portanto, corre riscos conscientemente. E quando dois corpos estão envolvidos, o risco não é tanto o de se contagiar, mas o de se compadecer, o de amar, o de se entender ou, ao menos, o de se escutar e, às vezes, o de discutir. Só entre corpos ocorrem essas coisas.
Alguns de nós sentimos muito medo quando nossos pais passaram a poder sair para passear. Nesse momento, nós os teríamos confinado permanentemente...
Compreendo perfeitamente. A questão é se não tratamos os anciãos, durante a gestão do coronavírus, como se fossem crianças. Se não tratamos os anciãos como se não fossem sujeitos de direito que tinham que assumir sua própria responsabilidade. Em uma situação como a que estamos vivendo agora, são eles que precisam medir os riscos que querem correr e quais não, porque imagino que há muitas pessoas idosas que durante o confinamento envelheceram muito, perderam meses de vida para a tristeza, por não poder ver seus filhos, seus netos. Tudo isto tem a ver com uma questão muito difícil de solucionar, sobre quais riscos corremos, como conciliamos a responsabilidade com a liberdade, com a segurança, com a proteção.
E, ao mesmo tempo, há uma reflexão mais profunda que tem a ver com um capitalismo tecnologizado que nos prometeu a imortalidade, mas o que nos deu foi velhices mais longas. E essa longevidade está inteiramente dominada pelo corpo que revela toda a sua fragilidade e, às vezes, também a necessidade de cuidados e dependências. Precisamos ver como o gerimos e o que o coronavírus revelou é que estávamos agindo mal. Tínhamos ilusoriamente suprimido os corpos, fechando-os em residências. E nos deparamos com esta atrocidade de anciãos que morreram sem que ninguém se ocupasse deles e sem que pudessem decidir como queriam morrer. Pela simples razão de que previamente foram impedidos de decidir como queriam viver essa velhice e o tempo que gostariam que durasse.
Para além do uso perverso e interessado de uma suposta demanda por liberdade que vimos na direita e na ultradireita, nas últimas semanas, enquanto não existir uma vacina, o coronavírus nos coloca em um cenário que torna necessário refletir sobre o conceito de liberdade e sobre as contradições entre salvar vidas e as tentações de controle e autoritarismo.
Em um artigo recente, defendi o direito a sofrer, mas este não concede o direito a fazer sofrer. Existe o direito a sofrer e a obrigação de não fazer sofrer. A combinação dessas duas coisas se chama senso de responsabilidade. E este precisa necessariamente ter alguma acomodação com a defesa dos direitos civis e da democracia. Estamos vendo como há interesses partidaristas, espúrios, muito agressivos, que estão querendo minar o solo sobre o qual se assentam esses direitos civis e a própria democracia.
A estratégia da ultradireita em todo o mundo, e na Espanha, não tem a ver com a liberdade de correr riscos, que é preciso reivindicar, mas, ao contrário, com o negacionismo: não estamos colocando em risco ninguém. O caso da Espanha é diferente dos casos da Hungria, dos Estados Unidos e do Brasil, porque aqui, digamos, a esquerda está governando e, portanto, é preciso acusar o governo de querer estabelecer uma ditadura comunista e liberticida. Mas isso é compatível com o horizonte do discurso da ultradireita mundial: utilizar o coronavírus para reduzir as liberdades e erodir democracias que já estavam muito minadas.
Se há um regime que é indissociável do risco é a democracia. Em todos os sentidos. A liberdade de expressão consiste basicamente em correr o risco de que a opinião do outro o convença ou derrote a sua. As garantias jurídicas, o Estado de direito, é o risco de que uma pessoa detida por um crime, e submetida a um julgamento justo e com todas as garantias, reincida. Temos que defender o risco das liberdades civis, do Estado de direito, da democracia. Não deveríamos de forma alguma, sob pretexto de que há um risco sanitário, e menos ainda reivindicando uma impossível segurança total, ceder mais espaço do que já cedemos nos últimos anos.
Nesse sentido, em uma entrevista em ‘La Marea’, fazia uma distinção entre responsabilidade e culpabilidade. Dizia também que na Espanha tínhamos dificuldades em entender o primeiro conceito e que isso está relacionado a um déficit democrático. O que distingue um conceito de outro?
A culpa é sempre individual. E um exemplo é como o neoliberalismo funciona neste momento. Este que, mediante medidas austericidas, desmantelou o Estado de bem-estar, precarizou o mercado de trabalho, a moradia, etc., ao mesmo tempo, tornou culpado cada uma das vítimas desses processos. Interessa muitíssimo a um sistema de controle coletivo das vidas, como é o capitalismo, tornar sua responsabilidade sistêmica culpabilidade individual, pecado. E isto tem efeitos políticos que todos podemos detectar cotidianamente.
Se eu sou o culpado, é óbvio que a solução será individual. A responsabilidade é, no entanto, uma forma de incorporar o destino coletivo no próprio corpo. Tem que ser individual, pessoal, sou eu quem decido ver ou não meus netos, sou eu que decido se saio ou não com máscara, mas precisamente porque atuo com responsabilidade, ou irresponsabilidade, o que estou fazendo é introduzir o comum como um fator de decisão fundamental. Neste momento, é preciso reivindicar a responsabilidade e não a culpa, que tem mais a ver com a vitimização, com o vitimismo. E isso sempre nos despolitiza.
E por que relaciona isto a um déficit democrático na Espanha?
Se a responsabilidade é a conjunção do individual e o coletivo, acredito que nada define melhor o conceito de cidadania. Ou seja, o conceito de responsabilidade é indissociável do conceito de cidadania e não é fácil um exercício de cidadania onde há um déficit democrático. E na Espanha, infelizmente, este existe há séculos.
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“O capitalismo oculta nossa vulnerabilidade. Descobri-la é uma primeira plataforma de resistência”. Entrevista com Santiago Alba Rico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU