24 Janeiro 2020
Não se deve ceder a palavra “conservador” à direita para poder nos salvar da catástrofe, defende o filósofo espanhol Santiago Alba Rico (1960), que como ninguém pensa a política e a filosofia com uma ternura pouco habitual nos pensadores e, por certo, na cultura neoliberal. Seu imaginário conceitual utiliza categorias como “mães” (que podem ser homens que nem sequer têm filhos, mas cujas ações buscam perpetuar a vida); os “solteiros”, ou seja, sujeitos destituídos de qualquer responsabilidade com o outro; “divorciados” e “órfãos”.
Em Cómo leer con niños (e questionar o capitalismo), Alba Rico aprofundou esses conceitos contra esse mundo entediante e terrível da “utopia única”, diante do qual imagina a resistência ao capitalismo. “A esquerda deve ser um ‘freio’ e isso significa levar os Direitos Humanos a sério e não entregar o discurso conservador à ultradireita”, afirma. A coisa mais otimista que pode afirmar, sustenta, “é que felizmente o mundo não está em nossas mãos; e que ninguém sabe do que um corpo é capaz; e que continua existindo muitas ‘mães’ portadoras de um projeto civilizador”.
A entrevista é de Constance Michelson, publicada por The Clinic, 22-01-2020. A tradução é do Cepat.
É possível ser de esquerda hoje? Você escreveu que era algo como um desfibrilador ou um extintor de incêndios.
Em 2013, publiquei um livro chamado justamente assim Podemos seguir siendo de izquierdas? Panfleto en sí menor, no qual insistia na ideia de W. Benjamin do “freio de emergência”. A única revolução que realmente existe hoje é a do capitalismo neoliberal altamente tecnológico, uma revolução permanente que funciona como um ininterrupto processo destituinte de coisas, costumes e corpos. A esquerda não pode querer ser mais revolucionária do que o capitalismo, que possui os milênios contados, e que talvez possa ser desativado, mas não derrubado, e cuja crise antecipa, em todo caso, um feudalismo mafioso de sobrevivências darwinianas. A esquerda deve ser um “freio” e isso significa levar os Direitos Humanos a sério e não entregar o discurso “conservador” à ultradireita.
Para o progressismo de esquerda, a palavra “conservador” é impronunciável. É sempre algo do inimigo, dos fascistas ricos e também dos lamentáveis “fascistas pobres”.
No meu livro, recordava uma proposta que fazia há alguns anos. Dizia que qualquer projeto emancipatório deve ser transformador no econômico, reformista no institucional e conservador no antropológico. A esquerda sempre concentrou seus esforços na transformação econômica, condição sem dúvida para todas as outras, mas se descuidou da democracia institucional, sequestrada pelo liberalismo, e também se descuidou dos “costumes em comum” (para citar Thompson), cedidos com um pouco de desprezo às igrejas e aos partidos reacionários. Em um contexto de desdemocratização global e crescente desigualdade - em que a revolução, em termos clássicos, se tornou “inimaginável” -, a ideia de desfibrilador ou de extintor de incêndios, muito modesta em relação à catástrofe, pressupõe confiar em que a defesa da democracia e dos vínculos pode atuar como um “freio” contra a revolução neoliberal e a contrarrevolução neofascista.
O que a esquerda aspira conservar?
É necessário conservar as conquistas históricas, sempre frágeis, e os direitos civis e sociais que agora estão nos tirando. É preciso conservar a Natureza, condição de todos os direitos e “fonte de toda a riqueza”, como dizia Marx. E é necessário conservar os vínculos próximos (os “costumes em comum”) despojados das relações de poder desiguais que os paralisam há séculos. É necessário conservar, como uma defesa frente ao capitalismo e frente à ultradireita, todas as irracionalidades coletivas compatíveis com o Direito, desde os ritos funerários à ‘paella’ dominical, dos Reis Magos ao Orgulho Gay. E criar outras novas. Isso inclui uma nova maneira de se relacionar “irracionalmente” com as bandeiras.
No Chile, onde começou o projeto neoliberal, hoje, estamos enfrentando uma explosão social. Não sabemos se é o fim de algo ou o início de outra coisa. Como faz a leitura das insurgências que estão surgindo pelo mundo?
Como a convergência de uma crise global no econômico e de uma nova desordem mundial no geopolítico, e isso em um contexto pós-soviético que torna difícil a estabilização de alianças ou blocos que consolidem uma ordem, mesmo que trágica, inteligível para os povos e gerenciável para os poderes políticos e econômicos. A crise global segue acompanhada pela consciência de novos perigos (os ecológicos, por exemplo) e pela desordem geopolítica de uma desdemocratização rampante que se choca com as esperanças democráticas surgidas na América Latina, no final dos anos 1990, e no mundo árabe, a partir de 2011.
A recaída que estamos vivendo hoje (no Chile, no Líbano, no Iraque, na Argélia) revela um fracasso que pode ser aproveitado também, como temos visto, pelos populismos de direita mais perigosos (como no Brasil, nos Estados Unidos, na Bolívia, recentemente, e, é claro, no Egito e na Turquia). Vivemos uma insurgência endêmica na qual a incerteza ideológica, a perplexidade tecnológica e a insegurança moral tornam cada vez mais difícil distinguir entre insurgências “de esquerda” e “de direita”. Pensemos no Maidan ucraniano, nos coletes amarelos ou nas próprias Venezuela e Bolívia, onde as direitas e as esquerdas, às vezes indiscerníveis, disputam os mesmos lugares e as mesmas pessoas.
Em relação aos movimentos sociais, tem-se na ruptura geracional. É verdade que a aceleração do tempo e o desmoronamento do lugar de autoridade modificam os laços intergeracionais. Você escreveu que uma revolução não pode ser de jovem para jovem.
Na antiguidade, os anciãos atuavam como garantia de imobilidade. Na modernidade, os jovens como “regra” de mudança. Cada geração introduziu, se preferir, uma mudança fulminante ou revolucionária que era transmitida à geração seguinte. Hoje, a renovação das mercadorias e a aceleração dos suportes tecnológicos, ao tornar a mudança a própria estrutura social, impedem a cristalização geracional e, portanto, a transmissão de saberes e experiências entre gerações. É necessário admirar primeiro e depois “matar” o mestre, como condição de toda tradição e inovação. Sendo assim, em um contexto de mudança estrutural, não só não temos tradição, como também não temos inovação. Não há nenhuma “autoridade” a qual se opor e superar e, portanto, a mudança social já não é mais política ou cultural, é quase biológica. Sem tradição, não há acumulação, nem transformação. Apenas “vida”.
Como imagina a política no século XXI?
Como uma urgente aliança - escrevi isso alguns meses atrás - entre um marxismo democrático, um feminismo humanista, um ecologismo populista, um capitalismo pragmático e a igreja do Papa Francisco, com o objetivo de “frear” a destruição do planeta e impedir a Weimar global em florescimento. Agora, não se trata de interpretar ou transformar o mundo, mas de conservá-lo e consertá-lo, como é feito com um pneu furado.
Niilismo, organizar o pessimismo, um otimismo lúcido? Temos um futuro? Como se posiciona?
Penso que existem pessoas que começam a deixar de me ler – inclusive amigos meus – porque sempre me mostro muito pessimista. Não tenho motivos pessoais para isso. Contudo, todos nós somos mais ou menos conscientes de estar vivendo em um limiar ou em uma curva para além da qual o mundo em que me formei e no qual desfrutei de muitas vantagens comparativas - das quais ainda desfruto - deixará de existir. Nesse “para além”, a única coisa em que acredito é que estarão meus filhos e seus amigos, que desejo que conservem um pouco de sol, um pouco de democracia, um pouco de arte e um pouco de amor. A coisa mais otimista que posso dizer é que felizmente o mundo não está em nossas mãos; e que ninguém sabe do que um corpo é capaz; e que continua existindo muitas “mães” portadoras de um projeto civilizador.
Na minha opinião, uma de suas ideias mais preciosas é a da divisão do mundo em “solteiros” e “mães” (independentemente de sua condição civil, Goebbles e Trump têm filhos, mas são brutalmente “solteiros”). Cita você mesmo como “mãe”. Cada vez mais, existem mais solteiros?
Os solteiros - aqueles que estão “soltos”, sem vínculos - já são maioria em nossas cidades capitalistas, embora eu acredite que o número de “mães” também tenha aumentado muito, ao menos na Espanha. O perigo agora são os solteiros que, ameaçados pela crise, se deixam dominar pela “nostalgia de vínculos”. Os consumidores falidos, para utilizar a definição de Bauman, não se tornam “mães”, mas “pais” e votam no Brexit, na Frente Nacional ou no Vox. Nós, “mães”, vamos ficando um pouco sozinhas entre os “solteiros” neoliberais e os “pais” medievais.
Contudo, essa é uma avaliação muito pessimista, após alguns anos em que ocorreram grandes avanços, agora rapidamente questionados a partir de dois ângulos: a revolução permanente do capitalismo e a reação excludente do neofascismo. Eu acrescentaria que as esquerdas, que desprezaram tanto o terreno institucional como o dos “costumes”, são em parte responsáveis por esse retrocesso.
Por quê?
É muito provável que as revoluções, como as guerras, sejam “coisas de solteiros, e é por isso que, em uma situação em que toda a transformação possível passa melhor por “frear”, o papel central deve ser talvez o das “mães”, que sempre foram o sustento da civilização - entendida como o trabalho de atar e desatar nós frente à tentação, como Alexandre Magno, em Górdio, de cortá-los com a espada. Os solteiros neoliberais são espadachins que cortam ao seu redor todos os laços com o outro para se entrincheirar no “ego industrial consumidor”, o mesmo resultado de uma revolução. Digamos que onde o socialismo fracassou, o capitalismo conseguiu fabricar um “homem novo”, que agora é necessário frear, ao mesmo tempo em que tomamos precauções contra a nostalgia do “homem velho”.
Fala-se muito da existência de uma crise moral. Penso na frase que é repetida no último filme do Coringa: “Por que todo o mundo é tão brutal?”. Como pensa a ética no século XXI?
Como uma aporia ou, se preferir, como um frontão no qual é preciso estar disputando a todo tempo uma bola – que rebate na parede - em um espaço fechado. Cruzaram materialmente as fronteiras nas quais é muito difícil retroceder e que tornam complicado tomar posições contundentes. A maior parte das questões éticas apresentadas, hoje, ocorre em torno das possibilidades abertas pela ciência e a tecnologia: da dissolução da fronteira público/privado nas redes à gestação sub-rogada. A liberação feminina, por exemplo, é inseparável da pílula anticoncepcional, que permitiu separar o amor do sexo. Mas a gestação sub-rogada também é o resultado de um avanço científico que agora permite que a maternidade seja separada do sexo.
Quanto às polêmicas na Espanha sobre transexualidade e transfobia, esquece-se também da intervenção da ciência, que torna possível uma traumática e confusa “mudança de sexo”. Como se orientar onde podemos materialmente – tecnologicamente – fazer coisas sem precedentes? Como conciliar a liberdade individual, atravessada pelo mercado e seus “caprichos”, com a ética e seus princípios?
Você define o capitalismo como um projeto histórico, precisamente em rebelião permanente contra limites. Tudo, até o impensável pode se converter em mercadoria.
Como distinguir entre o que podemos materialmente fazer e o que podemos eticamente nos permitir? Se perdemos a razão, conservemos a esperança - conforme escreve Luis Alegre Zahonero - de ainda não termos perdido o juízo. A razão nós já a perdemos e não apenas por culpa de Nietzsche: a ciência, a tecnologia e o capitalismo ultrapassaram limites que não podem ser restaurados. Sendo assim, é preciso sermos criteriosos, uma faculdade que requer condições políticas apropriadas para a deliberação coletiva. O contrário, ou seja, de “uma política para solteiros”, e o contrário também de uma “política para pais”. Sendo assim, a luta pela ética é inseparável da luta por suas condições políticas, hoje muito erodidas.
Qual a sua opinião sobre as ‘funas’ [manifestação de denúncia e repúdio público contra uma pessoa ou grupo que cometeu uma má ação]? São um caminho de justiça ou abrem as portas à crueldade?
Não existe e não pode haver justiça na ‘funa’. A funa é justiceira, não justa, e por isso mesmo, até mesmo quando é compreensível, sempre nos deixa insatisfeitos, e a insatisfação, não vamos esquecer, exige repetidas vezes novas ações justiceiras. Tenho muito medo da ideia que vai se impondo, a partir de uma denúncia justa e necessária, de que é necessário ser vítima para ter o direito à fala e à intervenção.
Existem aqueles que defendem que a figura da vítima é o herói ou heroína de nosso tempo.
Por um lado, insiste-se cada vez mais na ideia de que os que não foram vítimas de um estupro não podem compreender essa dor ou essa humilhação. Esse raciocínio (cujo solipsismo nega a existência, por exemplo, da literatura como meio para “viver outras vidas”) tem três consequências perigosas: a primeira, que encerra as vítimas em um mundo hermético que só pode ser compartilhado com outras vítimas; a segunda, que transforma todos os que não foram vítimas, inclusive o juiz ou a juíza que julga o crime, e, claro, outros companheiros de luta, em supostos culpados, ao menos na qualidade de cúmplices ou colaboracionistas.
Finalmente, ao associar os novos sujeitos políticos e a própria solidariedade ao âmbito das vítimas, torna desejável essa condição como a única maneira de participação em um “mundo comum” combativo e compassivo. Isso no que diz respeito à “empatia”. Por outro lado, essa ontologização negativa dá razão às vítimas, como depositárias de uma verdade superior ou incontestável, o que é contrário à lógica do Direito ilustrado, que não permite que as vítimas façam os códigos penais, e por isso abre um campo muito fértil e muito perigoso ao “populismo penal” das direitas.
Pensa em algum caminho para os homens em um século que parece que será das mulheres?
Acreditar na desconstrução é acreditar ingênua e perigosamente em um “zero” a partir do qual seria possível construir algo novo, bom e verdadeiro. Os que não são desconstruídos costumam passar a ser demolidos. Prefiro acreditar no caráter melhorativo e perfectível do ser humano. E isso implica aceitar certos materiais de construção e, se preferir, certas ruínas (somos um pouco isso: ruínas), com a convicção de que é possível combater os fantasmas que as habitam. Não se trata de desconstruir o homem que sou, mas de decidir que tipo de homem quero ser (ou que tipo de eu ou que tipo de espanhol).
E do mesmo modo que a “mulher histórica” foi elaborada entre homens e mulheres, esse “homem feminista” também precisará ser elaborado entre homens e mulheres. Por isso, é tão importante, como insiste Clara Serra, um feminismo direcionado aos homens. E por isso é tão importante, como insiste Yayo Herrero, uma masculinidade cuidadora (ou “mãe”). O feminismo não deve ser uma batalha contra a masculinidade, e isso pela mesma razão que não é uma defesa da feminilidade. Os homens não devem deixar de ser homens. Devem ser, além disso, feministas.
Costumamos falar do ódio ao outro, ao diferente. Contudo, é ideia minha ou hoje há um ódio também (talvez especialmente) ao que se assemelha demais comigo?
É que o diferente se assemelha muito conosco e está muito próximo.
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“A esquerda não pode querer ser mais revolucionária que o capitalismo”. Entrevista com Santiago Alba Rico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU