24 Janeiro 2019
Entre o aplauso feminista e o boicote dos ultradireitistas, o anúncio da Gillette continua protagonizando um debate necessário. Se em 2018 o termo “masculinidade tóxica” já deixou um sentimento de preocupação e interesse que se traduziu em buscas – o dicionário de Oxford o cogitou como primeira opção de “palavra do ano”, mas acabou optando por simplificá-lo como tóxico –, 2019 começou propondo imagens de como deve ser o homem numa sociedade igualitária.
A reportagem é de María López Villodres, publicada por El País, 22-01-2019.
Intenções comerciais à parte, o gesto tem seu valor: “É fundamental que alteremos o imaginário que temos sobre a masculinidade. Há toda uma construção simbólica do que é ser homem e que precisa mudar também do ponto de vista cultural: o que você lê, o que assiste…”, disse ao El País Octavio Salazar, professor de Direito Constitucional na Universidade de Córdoba (Espanha), pesquisador de gênero, masculinidades e direitos LGTBI e autor do livro El Hombre que No Deberíamos Ser (inédito no Brasil). É um modelo de masculinidade hegemônica que tradicionalmente defendeu valores como a agressividade e a invulnerabilidade, e que se posicionou como detentor do poder e da palavra acima das mulheres. Eis alguns exemplos destas convenções que impregnaram a sociedade e atrapalham o caminho para torná-la mais justa.
Estava na música do The Cure na década de oitenta e de Miguel Bosé na de noventa. Ouvimos a frase no pátio da escola enquanto algum colega rapidamente secava as lágrimas depois de cair, e talvez tenha inclusive saído das nossas bocas ao tentar consolar uma criança. Numa sociedade que ensinou os homens a reprimirem suas emoções (relegando o emocional às mulheres, tachadas ao mesmo tempo de fracas por causa disso), artistas como James Blake saíram em defesa da ruptura desse estigma de homem triste imposto a qualquer homem que demonstre suas emoções. Foi o que o britânico fez no ano passado ao lançar sua faixa Don't Miss It, em que mostra abertamente seus sentimentos (e muitas reportagens zombaram disso). “Sempre considerei que esta expressão, usada para descrever os homens que falam abertamente de seus sentimentos, é insana e problemática”, escreveu ele num tuíte que viralizou. Lembrando também que esse veto cultural à demonstração de sentimentos e vulnerabilidades por parte dos homens contribui para engrossar a lista de suicídios masculinos e de homens que não foram ao médico em busca de ajuda a tempo porque, como se sabe, é preciso que sejam fortes, homens de verdade.
Como pretende o anúncio da Gillette e como recorda ao El País Ritxar Bacete, antropólogo especializado em gênero e autor de Nuevos Hombres Buenos: La Masculinidad en la Era del Feminismo, “cabe destacar que o modelo de homem hegemônico pode ser sensível, bom e razoável.”
Continua a frase da música de Bosé. A agressividade como forma de resolução de conflitos entre garotos e homens, esquecendo completamente a conversa. Esse é outro dos exemplos evidenciados pelo comercial de lâminas de barbear. Algo que os reacionários chegaram a defender dessa forma: “Se não fosse por essa masculinidade tóxica que vocês tanto criticam não existiriam corajosos que evitaram a ocupação nazista usando sua força no Desembarque da Normandia!’, chegamos a ler por aí”, disse Guillermo Alonso em seu artigo na Icon ‘Se o anúncio da Gillette te ofende como homem, você tem um problema’.
E não somente entre eles, a força física e bruta e a legitimação do poder masculino também como forma de calar mulheres em uma reunião (novamente, mostrado na propaganda) e de consegui-las (cultura do estupro). Em um vídeo em El Tornillo, Irantzu Varela explicou dessa forma: “Vocês se convenceram de que a masculinidade nesse sistema heteropatriarcal consiste em conseguir tudo o que desejam, que as mulheres são coisas que podem conquistar a serviço de seu prazer, mas não, nós somos sujeitas com desejos e pretender transar com a gente sem nosso consentimento é tentar nos estuprar”.
“A questão do futebol durante minha infância e adolescência se transformou em um pesadelo”, disse Octavio Salazar. “Muitas vezes participava dos jogos para não me sentir deslocado. Era o que os meninos brincavam no recreio, ao sair da escola, na rua e nos finais de semana com competições. Senti a opressão como dissidente do modelo dominante. Especialmente difícil durante a adolescência, que é um momento em que o sentimento de fraternidade é tão importante e as identidades são forjadas”. Algo parecido também aconteceu a Ritxar Bacete. “Tinha 10 ou 11 anos quando fizeram em minha vila uma oficina de cerâmica nas férias de final de ano. Meus amigos da minha turma não deixavam que eu me inscrevesse, mas o fiz. Dos 1.500 habitantes da vila, somente três meninos foram. Quando saí com minhas esculturas, eles estavam me esperando, as pegaram e quebraram. Enfrentei os garotos e fiquei sozinho na vila”. E os dois dizem que veem como esses modelos e essas pressões continuam existindo, “mas não com as mesmas características, e sim essa pressão por não destoar do grupo e isso dá margem para que comportamentos machistas continuem sendo reproduzidos”, diz Octavio.
Entre as novas gerações de famosos vão surgindo novos modelos como Jaden Smith, que frequentemente usa saia, e Timothée Chalamet com suas roupas estampadíssimas e coloridas, que além de abordar a conversa sobre novas masculinidades, servem como exemplo para romper também com o padrão estético do jovem jogador de futebol.
“Caras, se meu filho chega em casa e tenta brincar com a casinha de bonecas de minha filha, quebro ela na cabeça dele e digo ‘para, isso é coisa de gays”, o tuíte homofóbico do ano 2000 que custou a Kevin Harst a apresentação do Oscar coloca várias realidades. A primeira: a violência como resolução de conflitos que já assinalávamos. A segunda, mencionada logo acima, o fato de um menino não falar essas ‘coisas de meninos” é considerado ofensivo. A terceira: é também suscetível de se transformar em ofensa. Usar o feminino e o gay como forma de desprestígio é misógino e homofóbico. Demonstra a convicção patriarcal de que há uma única forma de ser homem e que, se alguém sai do padrão (por exemplo: se você é homem, homossexual) não é considerado homem-homem, e sim homem de segunda. Uma interessante reflexão sobre a relação entre masculinidade tóxica e afeminofobia foi feita por Alfredo Murillo em seu artigo no Buzzfeed Dar bandeira é sexy.
A ideia do homem máquina sexual que está sempre querendo relações sexuais e que, também - e aqui há uma questão mais difusa -, se sente legitimado a tê-lo. Isso causa problemas aos homens que sentem que têm que cumprir expectativas (dessa pressão surgem muitos problemas de impotência de acordo com os sexólogos) e cria um modelo de homem sedutor masculino que identifica a virilidade e a hombridade com o maior número de conquistas e parceiras sexuais. Um personagem comum nos filmes que também se identifica com o amor que deseja conseguir (John Travolta em Grease - Nos Tempos da Brilhantina, por exemplo). Dessa convicção e como reafirmação dessa hipersexualidade vem em parte a confusão de muitos homens do galanteio com assédio que tantos justificam e que é denunciado no comercial da Gillette e em uma campanha argentina lançada pela Avon (#Cambiáeltrato - Mude o tratamento) para que nenhum continue sendo cúmplice. Onde estão os homens que impedem outros homens que assediam mulheres pelas ruas?
As declarações que o cantor espanhol El Fary deu na TVE explicando sua ideia sobre o que é um homem molenga são insuperáveis. “Detesto o homem molenga. Esse homem da sacola de compra, do carrinho de bebê... a mulher abusa muito da fraqueza do homem”, disse reivindicando a masculinidade mais tradicional e antiquada (e culpando a mulher, para completar). Por molenga, El Fary identificava o homem responsável que contribui 50% nas tarefas domésticas e de cuidados com sua companheira. Um homem que tradicionalmente foi taxado ofensivamente como ‘dominado’ e que ainda é a exceção (as mulheres dedicam a esses trabalhos não remunerados 26,5 horas semanais contra 14 deles).
O ‘boys will be boys’ e ‘not all men’ estão no topo da lista das respostas mais conhecidas e reacionárias da Internet a qualquer tipo de denúncia machista e debate feminista, também quando se fala de masculinidade tóxica. “Os homens tendem a ver isso como uma espécie de ataque individual, não coletivo. O contexto em que cada um tem diferentes níveis de responsabilidade não é identificado e também há muita resistência alimentada justamente pelas redes sociais com discursos muito estereotipados que circulam por elas e significam um perigoso caldo de cultura de masculinidades muito tóxicas”, diz Octavio Salazar. E Ritxar Bacete reflete: “Temos que reivindicar isso nas vidas pessoais dos homens, é senso comum. A igualdade não é possível sem a incorporação dos homens e nós homens precisamos nos desintoxicar”.
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Sete exemplos de masculinidade tóxica que você reconhecerá no seu dia a dia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU