19 Janeiro 2018
A produção que traz como protagonista um casal homossexual com uma grande diferença de idade, vem motivando ataques contra a "dupla moral" de Hollywood.
A reportagem é de Beatriz Martínez, publicada por El País, 17-01-2018.
Ano passado, a Academia surpreendeu ao entregar o prêmio máximo do Oscar a um filme independente, de um autor praticamente desconhecido e protagonizado por afro-americanos com uma temática gay. Depois da polêmica provocada pelo lema #OscarSoWhite e em plena turbulência pela vitória de Donald Trump e sua bateria de ataques xenófobos, a premiação mais importante da indústria do cinema decidiu apostar em Moonlight – Sob a Luz do Luar, uma história de personagens que lutavam para se integrar no seio de uma sociedade que parecia lhes dar as costas por esse acúmulo de rótulos que o filme se encarregava de ressaltar: negro, pequeno, pobre e gay.
No entanto, o filme de Barry Jenkins tratava a homossexualidade de uma maneira um tanto ingênua, como se tivesse medo de ferir sensibilidades, como se disfarçasse seu discurso de uma poesia tão estilizada quanto vazia. Não se aprofundava nos desejos e frustrações dos personagens, nem mostrava suas pulsões sexuais de uma forma contundente. Um ano antes, Todd Haynes não ganhou o Oscar apesar de ter rodado um dos relatos mais belos e delicados do cinema recente, a adaptação do romance Carol, de Patricia Highsmith. O amor lésbico e as cenas explícitas entre mulheres mostraram que isso ainda é um tabu dentro de Hollywood. E isso que o filme era finíssimo. Nesta temporada, os acadêmicos mais conservadores vão reagir indignados novamente ao verem Me Chame Pelo Seu Nome, o filme de Luca Guadagnino que narra a história de amor entre um adolescente de 17 anos e um jovem de 28, durante um verão, numa pequena cidade indeterminada do norte da Itália.
Sabemos que já houve alguns indignados lançando ataques furiosos contra o longa em nome da moral norte-americana. Concretamente, o ator James Woods, que criticou o filme com um tuíte em que fazia referência à perda dos valores e da decência na sociedade, utilizando a hashtag de uma organização defensora da pedofilia. Armie Hammer, um dos protagonistas de Me Chame Pelo Seu Nome, respondeu com um contundente: “Você não saiu com uma menina de 19 quando tinha 60?” E atrizes como Amber Tamblyn reconheceram, na mesma rede social, que era uma prática habitual de Wood paquerar menores de idade.
Enquanto existir essa hipocrisia em Hollywood na hora de julgar os filmes através da intransigência e dos valores mais obtusos e retrógrados, Me Chame Pelo Seu Nome pouco poderá fazer em sua corrida rumo ao Oscar. Certamente receberá alguma indicação tipo prêmio consolo, ou uma palmadinha nas costas valorizando seus esforços. Mas quase podemos prever que não ganhará muito mais do que isso. Por outro lado, poderá arrasar nos Independent Spirit Awards, que são mais mente aberta e onde já ele começa como favorito, com seis indicações, entre incluindo melhor filme, melhor diretor, melhor ator (Timothée Chalamet) e melhor ator coadjuvante (Armie Hammer).
É que a fama e o prestígio do filme forjaram-se pouco a pouco, em fogo baixo e com passo firme. O longa foi apresentado no Sundance, na seção Panorama da Berlinale no início de 2017, e mais tarde em Toronto e no Festival de San Sebastián — chega ao Brasil nesta semana. Em todos esses âmbitos, as críticas foram unânimes. Para se ter uma ideia, atingiu um índice de 98% no site de avaliações de filmes Rotten Tomatoes. Afinal, o que Me Chame Pelo Seu Nome tem para despertar tanto beneplácito (exceto de James Woods, claro)? Luca Guadagnino sempre foi um diretor especial. Muitos de nós descobriram isso graças a Um Sonho de Amor (2009), filme que trazia a semente da extravagância, o aroma da imprevisibilidade. Nele, Guadagnino demonstrou sua capacidade de quebrar as regras da ortodoxia e deslumbrar através de uma suntuosidade com um toque vintage à beira do delírio, que certificava sua natureza hedonista, uma característica que permeia toda sua obra, incluindo Me Chame Pelo Seu Nome.
Seus filmes são puro gozo estético e sensitivo. Exaltam a sensualidade do corpo, do prazer, do desejo carnal contido. E, após essas pulsões primitivas, descobrimos um punhado de personagens presos em suas debilidades e suas mais profundas misérias. Não surpreende que esse universo tão particular, que ele havia criado em seus filmes anteriores, agora se encaixe à perfeição na história de amor entre Elio e Oliver, descrita com intensidade mas também com tormento, por André Aciman em seu romance Me Chame Pelo Seu Nome (Intrínseca, 2017).
Os direitos da obra literária haviam sido adquiridos por James Ivory, que aos 89 anos escreveu o roteiro do filme e trabalhou em sua adaptação ao lado de Luca Guadagnino. Este também deu um toque pessoal, situando a ação em 1983, ao que parece, para que os personagens mantivessem a inocência prévia à onda conservadora desencadeada por Reagan nos Estados Unidos e Thatcher no Reino Unido. E antes também do advento da aids como uma doença que acabaria se transformando numa arma política de medo para estigmatizar as relações homossexuais.
O resultado é uma delicadíssima adaptação da prosa de Aciman. Guadagnino, como provou em Mergulho No Passado (2015), é um grande criador de atmosferas sugestivas. Em Me Chame Pelo Seu Nome, ele é capaz de suspender o tempo, de submergir o espectador num clima cálido e úmido, letárgico e hipnótico, onde até o som das cigarras e o suco de um damasco se transformam numa fonte de magnetismo erótico. Em meio a essa paisagem de volúpia campestre, nos encontramos com o desespero e a confusão hormonal de Elio ante a chegada do novo hóspede, que passará o verão com seus pais, professores universitários de História que todo ano recebem alunos que realizam uma tese acadêmica. Seu nome é Oliver, e seu corpo parece tirado de uma dessas esculturas greco-latinas de proporções dionisíacas que seu progenitor estuda.
Desde o primeiro instante, tudo o que virmos no filme passará através dos olhos de Elio. Assim, vamos mergulhar em seu tormento, em suas contradições perpétuas, no processo de assimilação de sua identidade sexual, na negação, na tomada de decisões, nesse turbilhão, enfim, que o primeiro amor desperta. Esse amor que parece proibido, que te desafia e avassala por dentro, que desmoraliza e, no minuto seguinte, traz um diminuto sinal — e encoraja.
O portentoso ator Thimothée Chamalet é capaz de transmitir toda essa profusão de sensações contraditórias, arrebatadoras e ansiosas diante da câmera de Guadagnino. Sua interpretação é dessas que te pegam de surpresa, que você talvez não valoriza na medida justa até o plano final, que se encarrega de concentrar, através de seu olhar e seu rosto, todo o percurso vital, todo o aprendizado emocional que o personagem sentiu ao longo desse verão e que mudará sua vida para sempre.
A história de amor entre Elio e Oliver vai despontar pouco a pouco. No ritmo de longas sestas, de leituras na beira da piscina, passeios de bicicleta e aulas de arte que nos conectam com o passado, com a história da Itália, com o tempo que avança sobre nós. E, como costuma acontecer, a paixão tão longamente desejada será tão intensa quanto breve. Deixará uma marca perene e ficará para sempre incrustrada, provocando primeiro dor, depois uma nostalgia difusa.
Guadagnino se mostra muito menos propenso à ostentação estilística que nos filmes anteriores. Em certo momento, repousa a câmera à altura da fragilidade de seus personagens. Parece se importar mais com eles, com seus medos e inseguranças, do que em compor planos de uma elaboração sofisticada. Ao contrário: cada imagem vem impregnada de uma enorme elegância e sutileza. Nada se explica, tudo se intui, e isso deixa ao espectador espaço suficiente para compartilhar de forma íntima e experiencial aquilo que está vendo. Talvez por isso o filme provoque um impacto emocional tão forte. Ninguém está imune. E termina de forma um tanto estranha, adquirindo suma importância.
No princípio, o filme te prende com um ronronar desse verão plácido, nos enternece com composições de piano belíssimas de André Laplante e Ryuichi Sakamoto, depois se dedica a brincar, a inserir o elemento do desejo insatisfeito (a cena de masturbação com um damasco, tão teenager), introduz algumas sequências de dança numa festa ao ritmo de Love My Way, da banda The Psycodelic Furs, que se transformam em icônicas de maneira imediata (mais tarde, essa mesma música se repetirá durante a última noite deles juntos) e se torna melancólico ao som de Sufjan Stevens, para finalmente fechar com uma das conversas pai-filho mais emocionantes do cinema recente, dessas que, pela sabedoria, a moderação e a sinceridade que contêm, te emocionam completamente. Ah, e esse plano final do qual já falamos, que se funde com os créditos e que consegue que o filme fique em nossa cabeça durante tanto tempo...
Talvez por todos esses motivos, a história de amor entre Elio e Oscar não é apenas mais uma entre tantas. Não importa a diferença de idade, esses oito anos que para James Wood parecem uma perversão da natureza e que muitos acadêmicos considerarão uma ofensa. O filme não brinca com coisas que poderiam parecer desagradáveis, e sim com os sentimentos em estado puro. Tem algo de milagre. Consegue mostrar de forma muito nítida, ao mesmo tempo dolorosa e reconfortante, o que significa primeiro desejar, depois amar e finalmente perder. É um filme de aprendizagem, mas sua lição, por sorte, nunca acaba de ser totalmente aprendida.
Assim, talvez venham filmes melhores este ano, mas nenhum será tão especial e tão emocionante, tão sensível e significativo quanto Me Chame Pelo Seu Nome.
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‘Me Chame Pelo Seu Nome', o filme para o qual o Oscar não está preparado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU