“Diante da negação da vida, a Páscoa será celebrada em silêncio”
“Como rezar a esperança da ressurreição quando o sofrimento não cessa sobre os mais frágeis?”, retomando a indagação que já cruzou nossas páginas, convidamos a você, em silêncio – assim como fez o papa Francisco –, a mergulhar no tempo de Páscoa.
No Domingo de Ramos, 24-03-2024, fomos surpreendidos por uma homília silenciosa de Jorge Mario Bergoglio em uma Praça São Pedro lotada de fiéis. Um silêncio que percorreu o mundo levantando as mais diferentes indagações. Mas, ao escolher não usar palavras no começo da semana mais importante para os católicos, Francisco nos conclamou a revisitar a história da Paixão e Morte de Cristo, para libertar o mundo da inimizade, do ódio e da violência.
Diante de um contexto onde paira a incerteza, o mal, o sofrimento e os tempos sombrios, mas também na esperança que o Ressuscitado representa – e provocados por esse “silêncio que grita” –, pedimos para algumas pessoas partilharem seus depoimentos. As respostas buscam compreender o significado da Páscoa, da ressurreição e do silêncio de Deus.
Em uma toada de extrema fé e confiança na vitória da vida sobre a morte, “na firme convicção da possibilidade de uma ressurgência vital e transformadora” e de que “a Páscoa é sempre esperança no meio da catástrofe” e “no Senhor, toda vida é salva”, Moema Miranda, Andrea Grillo, Faustino Teixeira, Mercedes de Budalles, Eduardo Hoornaert e Luiz Carlos Susin conversaram com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
No final, também tocados pelo poema enviado pelo padre Flávio Lazzarin, lembramos a importância de estar perto dos pobres e dos pequeninos de Deus, sempre convidados a cativar a esperança que a Páscoa nos traz: “a Páscoa será celebrada em silêncio, em expectativa vigilante e fiel, [...] diante de toda pontual negação da vida, Possa este silêncio ser o útero, em que germinam gritos amorosos de luta, de quem acredita que Jesus venceu a morte”.
A todas e todos, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU deseja uma feliz e abençoada Páscoa!
*A tradução do texto de Andrea Grillo é de Moisés Sbardelotto.
IHU – Momentos dramáticos como vivemos atualmente, com guerras, violências, sofrimento e o mal nos ensejam a reflexão sobre o silêncio de Deus. O que esse silêncio nos convoca a refletir?
Moema Miranda. (Foto: REPAM)
Moema Miranda é antropóloga com mestrado pelo Museu Nacional, PPGAS/UFRJ. É secretária da Rede Igrejas e Mineração, coordenadora do Projeto Diálogo dos Povos AL-África e da Secretaria Nacional do Sinfrajupe, Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia.
Moema Miranda – É uma alegria poder participar desse diálogo e dessa reflexão desses tempos, de fato, tão sombrios, como diz o Papa Francisco. O antropoceno, como dizem os cientistas, o tempo em que a própria Terra começa a dar sinais de esgotamento pela ação violenta de uma parte da humanidade, sem limite. E, que sem limite também, além de violar a Terra, viola outros seres humanos e todos os seres não-humanos que coabitam com a gente no mundo criado. Eu não acho que Deus está em silêncio.
Na Encíclica Laudate Deum o papa Francisco fala da elite do poder. Essa elite do poder pensou, apropriou- se e construiu uma forma de poder e de domínio sobre a natureza e o mundo que, de fato, é destrutiva.
Quando lemos e estudamos o Apocalipse de João, o risco de que essa aliança entre um domínio excessivo com poderes sobre o comércio, os corpos e a natureza façam uma aliança, já indica a longevidade de um poder coimperial que não respeita, não coabita e não se entende parte disso.
Deus continua falando ativamente em cada um dos lugares em que nós resistimos à barbárie; em cada povo indígena que resiste à destruição do seu território; em cada comunidade em que se faz comunhão – Deus se revela em Jesus na partilha do pão. Em cada um dos lugares que dizemos “não quero fazer parte, não quero estar marcado por essa lógica da insaciabilidade, mas quero me fazer um com os outros”, com irmãos e irmãs, e, nesse caso, como franciscana, nesta fraternidade universal, irmã do rio, das borboletas, das mariposas; aí é que Deus se faz presente.
Muitas filósofas contemporâneas têm falado sobre como habitar nas ruínas do capitalismo, nas ruínas em que o capitalismo está deixando nosso planeta.
É bem importante termos essa consciência: existe um sistema, que é um sistema de morte – o papa Francisco já falava sobre isso no Encontro Mundial dos Movimentos Populares: esta economia mata. Mas existe a resistência e, Deus é resistência, porque ele é a criação e a libertação.
A voz de Deus, hoje, está nas mulheres que se organizam, nos jovens que protestam. Está também nas matas e florestas que resistem à destruição; nos rios que lutam para continuar vivos e está em todos nós que fazemos comunhão com a vida.
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Andrea Grillo (Foto: Susana Rocca | Acervo IHU)
Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia, da Itália.
Andrea Grillo – Deus se cala quando os homens se esqueceram dele. Os momentos dramáticos que vivemos atestam esse distanciamento de Deus. O deserto da mentira e da violência zomba de Deus e de sua impotência. As tradições religiosas também contribuem com esse silêncio. Falam de Deus como de um fantoche que acompanha os exércitos, que apoia os confrontos, que excomunga povos e tradições.
O Deus da tradição cristã, o Deus da tradição judaica, o Deus da tradição islâmica olha com desdém para esses jogos humanos por meio dos quais ele é envolvido nos atos de soberba, de inveja e de ira. Infelizmente, apenas algumas vozes, incluindo a do Papa Francisco, sabem olhar com lucidez para este momento. E essas vozes também são ridicularizadas, insultadas, vistas com escândalo e com hostilidade, como se fossem “traições”, por falta de coragem ou por covardia.
O silêncio de Deus é o juízo de condenação para homens que querem apenas a afirmação de si mesmos, de sua própria tradição. Mas Deus condena ainda mais claramente os homens da Igreja, os líderes das religiões, que apoiam essa loucura.
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Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)
Faustino Teixeira é colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Possui graduação em Ciência das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora, graduação em Filosofia pela mesma instituição, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. É professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião.
Faustino Teixeira – Ressurreição como Ressurgência:
“Hoje tomo o céu e a terra
como testemunhas
contra vós: eu te propus a vida e a morte,
a benção ou a maldição.
Escolhe, pois, a vida, para que vivas
tu e a tua descendência...”
(Dt 30, 19)
Na verdade, o que percebo não é o silêncio de Deus, mas o nosso arrogante silêncio diante do Mistério que nos é vizinho, mas que não somos capazes de escutar em razão de nossa prepotência e violência. Lembro-me aqui de um poema de Rilke que sublinha sermos nós com o nosso “rude batimento no meio da noite” que incomodamos a Deus. É Deus quem vive uma carência profunda, uma carência de vida. Está aqui bem perto de nós, e não encontra ninguém capaz de oferecer o gole de água que favoreça o delinear de seu sorriso. Esses momentos dramáticos em que vivemos são, antes, expressão do homem-humano com toda a sua carga de malignidade. O século XXI, infelizmente, dá continuidade ao sombrio século XX com todas as suas intempéries. Agora assistimos impassíveis ao agravamento desse tempo de perturbação, que é o Antropoceno. Por um lado, o novo regime climático anunciando um futuro devastador para a humanidade. Por outro, as tremendas desigualdades e migrações forçadas, além de devastações do mundo natural que são temerárias.
A tendência ao catastrofismo é muito grande nesse tempo difícil, Fala-se no mundo por vir com muito temor, e alguns anunciam mesmo o fim do mundo, pelo menos a reta final para a inserção do ser humano na Terra. Movido pela esperança cristã e de outras cosmovisões que movem as espiritualidades, busco não me deixar vencer por tal visão negativa. Creio que é possível acreditar em “gestos-barreira” contra as ameaças que se firmam com gravidade em nosso tempo. Ao lado de algo nebuloso que se anuncia, é possível visualizar passos de “ressurgência” que também estão em ação, mostrando capacidade de resiliência e reação. Em minha visão, é possível tecer uma “antropologia das ruínas”, visando captar habitabilidades multiespécies, mediante um laço vital que possa reunir as energias criativas de todas as espécies num âmbito novo e auspicioso. É possível, sim, dançar sobre ruínas, encontrando pistas novidadeiras que se firmam entre os saberes originários, que souberam resistir com vitalidade a outros “fins de mundo”. Acredito, em linha de sintonia com Anna Tsing, no advento de “ecologias habitáveis”, ou seja, no “trabalho de muitos organismos que, negociando através de diferenças”, possam gestar novas “habitabilidades multiespécies em meio às perturbações”. Trata-se de uma esperança que se renova em meu peito e de muitos outros.
Gostaria de exemplificar com a reflexão esperançosa de Marcelo Gleiser em seu último livro: O despertar do universo consciente. Um manifesto para o futuro da humanidade (Record, 2024). Com base num pensamento positivo, que aborda a fascinante história dos acidentes cósmicos que favoreceram a afirmação da vida humana na Terra, o astrofísico brasileiro convoca-nos ao exercício de construção de um novo paradigma para a habitualidade humana, em distinto compasso moral, fundado agora em reveladores parâmetros voltados para a preservação de nossa Casa Comum. Trata-se de um toque de esperança que deve marcar nossa luta no tempo atual. Concluo com um lindo trecho da poeta portuguesa Adília Lopes:
“Resta-nos ir chuleando os trapinhos, os papelinhos, para que o mundo não se desfie todo de uma vez”.
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Mercedes de Budallés (Foto: Reprodução | Youtube)
Mercedes de Budallés Diez é religiosa, biblista, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2002) e assessora do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos - CEBI.
Mercedes de Budallés – Obrigada pela pergunta. Realmente temos uma sensação do silêncio de Deus diante das atrocidades que estamos vivendo. Porém, não sei se chamaria de silêncio, porque tem muitos e muitas de nós gritando, gritando no silêncio, dando nosso testemunho da certeza de que Deus não quer, assim como nós não queremos o que está acontecendo.
Sinceramente, o silêncio de Deus grita pela nossa atitude, pela tomada de consciência de muita gente que deveria se preocupar em fazer o contrário.
Outro dia, uma mãe de família pobre, disse: cada vez que vejo uma notícia do que está acontecendo em Gaza, eu abraço meus filhos e digo que este não é o mundo que Deus quer de nós, temos que fazer o contrário.
Para mim, isso é uma fala de Deus. Eu aprendo realmente com os pobres que a vida tem que ser vida na abundância, para todos e todas nós; isso é o que chamo de uma fala de Deus.
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Eduardo Hoornaert (Foto: Lagarto Notícias)
Eduardo Hoornaert nasceu em Bruges, na Bélgica. Cursou dois anos de Línguas Clássicas e História Antiga e, posteriormente, Teologia, na Universidade de Lovaina. Chegou a João Pessoa, no Brasil, em 1958. Foi professor catedrático em História da Igreja, sucessivamente nos Institutos de Teologia de João Pessoa, Recife e Fortaleza. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), entidade autônoma fundada em 1973, em Quito, Equador. Desde 1962 escreve artigos de cunho histórico para a Revista Eclesiástica Brasileira (REB), da Editora Vozes, na área do catolicismo no Brasil e do cristianismo em geral. Atualmente, estuda a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
Eduardo Hoornaert – Eis como são as coisas:
Num primeiro momento, deixamos Deus esperar na porta: Eis que estou à porta e bato (Apocalipse, 3, 20). Não abrimos a porta a Deus.
Num segundo momento, fazemos nossas besteiras.
Num terceiro momento, quando as coisas se complicam e a situação se deteriora, reclamamos do 'silêncio de Deus'.
Não era mais lógico voltar ao primeiro momento e (finalmente) abrir a porta a Deus (com todas as consequências)?
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Luiz Carlos Susin (Foto: Divulgação)
Luiz Carlos Susin é mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Leciona na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul - PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF, em Porto Alegre. Foi membro do Comitê de Redação da Revista Internacional de Teologia Concilium por quinze anos (2000-2015) e atualmente atua em seu comitê científico. Foi presidente da Associação de Teologia e Ciências da Religião (SOTER) no triênio 1998-201, da qual é cofundador. Foi professor convidado na Universidade Antoniana de Roma, no Instituto de Teologia e Pastoral da Confederação Episcopal da América Latina em Bogotá. Dentre suas obras, destacamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).
Luiz Carlos Susin – Na Escritura há silêncios que precedem algo novo. Depois do fogo violento do Monte Carmelo, Deus reconduziu Elias ao Horeb e no silêncio é que se revelou como um Deus compassivo e não um Deus de fogo. Já no silêncio de Nazaré, o anjo escolheu uma Palavra que humanizou Deus, o filho de Maria. Mas foi no silêncio tremendo da cruz que Deus silenciou seu próprio sofrimento para dar regaço a todo sofrimento silenciado pela brutalidade barulhenta da violência. Humanamente o silêncio é insuportável quando não há mais clamor para expressar a dor, sobretudo a dor dos inocentes. Mas ainda é possível associar-se ao silêncio de Deus e o vazio do Santo dos Santos com seu véu rasgado. Permanecer nesse silêncio, depois de todo grito, é a forma de participar do sofrimento inocente.
IHU – Qual o significado da Páscoa diante de um contexto tão brutal?
Moema Miranda – A Páscoa é sempre essa esperança no meio da catástrofe. Tem um teórico que estuda o Apocalipse que sempre diz isso: o Apocalipse é sempre a esperança no meio da catástrofe.
A Páscoa, a ressurreição, a passagem, é justamente essa confiança de que existe uma porta que não estamos vendo, que no meio dessa obscuridade existem luzes e que a nossa tarefa, função ou missão é, talvez, reverberar mais, brilhar essas luzes e fazer as conexões, a união e a comunhão. Efetivamente esse é o sinal da Páscoa, como foi a dois mil anos atrás e como já tinha sido antes, em todos os povos que resistem; como foi na América Latina quando houve a invasão.
Em todos os povos que resistem, a Páscoa é a passagem que nos diz: ainda que esteja escuro, confie!
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Andrea Grillo – A Páscoa cristã brota do contexto brutal da violência cega contra Deus. Ela já contém em si mesma o máximo da brutalidade e, assim, pode conter, na misericórdia, todas as brutalidades. Dizer a Páscoa significa descobrir o rosto de misericórdia de Deus que, no Filho e no dom do Espírito, acompanha os homens a fazerem de sua própria existência um “sacrifício vivo”. A pedagogia da Páscoa é a vida da Igreja. A Igreja se apresenta como abertura à vida, para todos e de todos. Mas a Igreja sabe que seu Senhor foi condenado, justo pelos injustos.
Nestes dias de quaresma, lemos, na segunda-feira passada, duas leituras impressionantes: o processo contra Susana e o processo contra a Adúltera. No primeiro, Susana é acusada de adultério pelos dois juízes anciãos, que a chantagearam. No segundo, a Adúltera está prestes a ser apedrejada, e Jesus é questionado sobre a execução da mulher. Na realidade, os dois processos falam do terceiro processo, o de Jesus: Susana é salva por Daniel; a Adúltera, por Jesus; mas quem salva Jesus? Nenhum homem foi capaz disso. Somente Deus, no Espírito, tornou eterna a vida do Filho. Eis o anúncio da Páscoa: no Senhor, toda vida é salva, e os homens e as mulheres devem permanecer dentro desse anúncio, para serem dignos de sua vida.
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Faustino Teixeira – Vejo como algo cada vez mais atual o grito de Paulo na Primeira Carta aos Coríntios: “Morte, onde está a tua vitória?” (1Cor 55, 55). A Páscoa é nossa razão mais forte de esperança no contexto atual do Antropoceno, desse tempo de perturbação e bagunça provocados pelo ser humano na Terra, a esperança da Páscoa traz em seu bojo a firme convicção da possibilidade de uma ressurgência vital e transformadora, capaz de facultar a todos os seres e espécies companheiras uma esperança de vida contra os vetores de morte. Celebrar a Páscoa hoje é firmar os laços de união, de diálogo, envolvendo todos os seres, na busca de uma “Terra sem males”.
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Mercedes de Budálles – Esses dias, celebrando a festa de São Romero, um dos nossos mártires, um lavrador falou:
Acho que este bispo de que vocês falam tanto foi morto, mas não morreu; ele foi plantado. E nós, quando plantamos, sabemos que a semente morre, mas é para dar mais vida. Eu nunca escutei falar muito de bispos, mas desta vez faz muitos anos que acompanhamos a morte “matada”, mas que é sinal de vida; porque toda semente dá primeiro flor e depois fruto – é isso que esse bispo está falando.
Essa foi uma explicação muito bonita do que deveria ser o significado da Páscoa de Jesus.
Maria, nossa mãe, estava presente na vida de Jesus. Antigamente tinha uma festa muito bonita Stabat Mater, estava na hora da fartura de vinho, depois da atuação dela e de Jesus, estava ao pé da cruz. O que chama a atenção é que essa mãe não estava presente na hora do sepultamento junto com outras mulheres, não aparece na hora da ressurreição, por quê? Penso que Maria, na hora da morte já se encontrou com Jesus Ressuscitado e cheio de vida.
Uma forma diferente e real de entender o que deve ser a Páscoa: semear vida, alegria, delicadeza e escuta. Se aprendêssemos a escutar profundamente uns aos outros, nós mesmos estaríamos agindo de forma mais pascal.
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Eduardo Hoornaert – Páscoa é a inesperada irrupção do evangelho em nosso mundo sem Deus. Nosso contexto atual é 'brutal', mas o poderoso Sopro do Senhor (Isaías, 52) pode vir quando menos esperamos. Precisamos ficar atentos/as e agir.
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Luiz Carlos Susin – A Páscoa é a memória da violência do mundo sobre uma vítima inocente que era Filho de Deus e Cordeiro levado ao matadouro da expiação pela perversidade dos poderes do mundo. Deus mesmo recebeu as pancadas da violência disseminada, contaminadora e em expansão. E por isso o mundo tem ainda esperança de que o algoz não triunfe sobre a vítima, que a última palavra não será da injustiça, mas da vida maior do que a morte.
IHU – Qual o sentido e como devemos compreender a Ressurreição (de Cristo) nos dias de hoje?
Moema Miranda – Eu, como cristã e franciscana, tenho na ressurreição um ponto fundamental de confiança na vida. A ressurreição de Jesus naquele tempo – Jesus viveu sobre uma égide de um Império muito brutal e depois, quando a igreja se torna a igreja do Império, é como se estivéssemos apagado esse passado, mas a brutalidade do Império Romano era monumental. É como se depois, quando fizemos a aliança com o Império, desvalorizássemos o passado de brutalidade daquele Império.
E diante daquele Império, nós franciscanos acreditamos que Jesus se encarna por um ato de amor de Deus, não só para nos livrar dos pecados, não só pelos nossos erros – Deus em Jesus se encara por amor à criação – e a ressurreição é essa confirmação do amor, do amor que transcende a morte e do amor que transcende essa brutalidade. A ressurreição de Jesus hoje é para cada um de nós a confiança de que nosso pequeno gesto de solidariedade, de amor e de resistência à brutalidade, a nossa negação de somar na devastação. Cada um desses gestos são a ressurreição de Jesus, ressuscitam Jesus em nós.
É aí que ele apita e também nos ajuda a encontrar forças e atravessar esse período obscuro da história. Com a confiança de que a morte não terá a última palavra. Muito obrigada. Paz e Bem!
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Andrea Grillo – Um ponto importante da ressurreição é este: o Ressuscitado era irreconhecível. Muitas vezes, os relatos sobre a ressurreição, ou seja, sobre as “aparições” do Ressuscitado concordam em um ponto. Madalena, os dois de Emaús, os discípulos que pescam com Pedro etc., no momento em que encontram o Ressuscitado, não o reconhecem. O reconhecimento não é um ato imediato. Quando Jesus estava suspenso na cruz, sofrendo ou morto, todos podiam vê-lo. Era possível desfigurá-lo, não reconhecê-lo. O Ressuscitado só pode ser visto pelos olhos do amor e da fé. Assim, o Ressuscitado, que sempre se apresenta “sob outra forma”, pode ser reconhecido no pequeno que tem fome e sede. Ressurreição e Juízo Final se correspondem: quando te demos de comer? Quando te demos de beber? Essas perguntas estão no pano de fundo do encontro com o Ressuscitado. Que abre a vida dos homens e das mulheres à obediência à própria natureza. Como “imagem e semelhança de Deus”, cada ser humano, em Cristo, encontra a forma da misericórdia como sua própria verdade. Assim, o pecado por excelência, a soberba e a inveja, que encontram na guerra sua manifestação mais crua, é jogado para trás, repudiado e proscrito pela experiência na vida eterna do Ressuscitado.
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Faustino Teixeira – Minha compreensão de ressurreição está profundamente ligada à ideia de memória, de uma memória que é perigosa e transformadora. A ressurreição não significa revificar um cadáver, mas fazer brotar no fundo do peito a ideia viva de uma presença que convoca ao seguimento teimoso e contumaz. Historicamente, o que aconteceu com os discípulos de Jesus, depois de sua morte brutal e violenta, foi o império do medo. Como diz o evangelho de João, eles estavam com as portas fechadas, temendo tudo o que lhes poderia acontecer, quando então depararam-se com a presença viva de Jesus que lhes anunciou a paz. (Jo 20, 19-20). A presença de Jesus, revivido na memória, fez romper a crise radical em que estavam aprisionados, suscitando um novo ar de vida e ação. É o ressuscitado que os arrancou da covardia e desconcerto, favorecendo uma singular temperatura vital, sintonizada com uma nova ação. Vejo hoje, que a ressurreição de Cristo significa para nós a retomada dessa memória de Jesus em favor da vida e da “ressurreição” de corações e mentes abatidos nesse tempo de ruína e dor. A ressurreição é sobretudo a esperança de uma vida renovada, que nos faz sempre escolher a vida e não a morte.
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Mercedes de Budálles – Para compreender a ressurreição nos dias atuais, deveríamos estar mais perto dos pobres e perceber como que eles enfrentam a vida e desejam, semeiam a vida e vivem na abundância no meio das suas dificuldades.
Para mim dizer agora Feliz Ressurreição, é um compromisso que eu mesmo quero viver todos os dias como um compromisso de vida. Que assim seja!
Esses são meus desejos de Páscoa e ressurreição para o mundo.
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Eduardo Hoornaert – A Ressurreição de Cristo é uma teimosia. Foi assim desde o momento em que Pedro, na festa judaica de Pentecostes (Atos 2), abriu as portas da reclusão e falou sem temor às pessoas que acorriam, desafiando. O cristianismo nasceu nesse momento de destemor. A coragem de crer e de optar por posicionamentos que a atual articulação das sociedades rejeita, como comprova o atual silêncio “estrondoso” dos grandes deste mundo diante dos absurdos que acontecem em Gaza.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Andrea Grillo – A Páscoa é a inauguração daquela comunhão com o Pai, mediante o Filho, no dom do Espírito que torna todos os homens “irmãos e irmãs”. O gesto central, que é suspenso durante o Tríduo Pascal para voltar a ser possível durante a vigília, é o de todos comerem do mesmo pão e de todos beberem do mesmo cálice. Essa “comunhão do pão e do cálice” permite que todos sejam “um só corpo”, tornem-se “corpo de Cristo”. O corpo do Ressuscitado torna-se visível e acessível na Igreja. No rastro de Paulo, falamos com razão de “sermos dignos” de ter acesso à mesa do Senhor. Mas a “indignidade” não diz respeito principalmente a questões ligadas ao pecado da gula ou da luxúria. O escândalo não é a “irregularidade sexual”. O verdadeiro problema é o pecado de soberba, de inveja e de ira. Pensar em ter acesso à eucaristia “fazendo guerra” é verdadeiramente uma contradição em termos. Também tivemos as missas “in tempore belli”, que faziam Deus descer para o lado do “seu” exército. E abençoamos as armas, para que trouxessem a paz... Uma Igreja que verdadeiramente se deixa transformar pela Palavra de Deus sai dessas lógicas humanas demais e situa a eucaristia como crise de todos os comportamentos violentos.
Dizer “Fratelli tutti” significa sair totalmente das lógicas com as quais os poderosos pretendem reduzir as nossas fés à idolatria do poder. A fraternidade não é um ajustamento caritativo da injustiça, mas sim demanda de justiça e profecia de paz. As Igrejas hoje deveriam ter a clarividência de não se deixarem chantagear pela idolatria dos poderosos.
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Faustino Teixeira – Queria terminar, retomando de outra forma a primeira pergunta do IHU, em torno do silêncio de Deus. A jovem mística holandesa, Etty Hillesum, escreveu em página de seu diário, em 12 de julho de 1942, que somos nós que devemos ajudar a Deus, e que assim o fazendo, estamos ajudando a nós mesmos. Com isso, queria dizer da importância fundamental em manter aceso em nosso peito “um pedaço” de Deus em nós”. Sua intenção era através de uma rica vida interior, manter viva e atuante a memória de Deus. Dizia: “Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei de trazer-te todas as flores que encontre pelo caminho”. Por mais estreitos que sejam os caminhos é sempre possível manter a chama da esperança acesa e iluminar o caminho daqueles que, junto conosco, podem acreditar num futuro alternativo. Isso é Páscoa.
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Eduardo Hoornaert – Parabenizo o IHU por sustentar a fé de muitos nos dias que vivenciamos.
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Luiz Carlos Susin – As narrativas evangélicas falam de sinais que antecipam a ressurreição para dentro da vida ainda em luta com as tantas formas de morte. Há festa, há cura, há solidariedade, há comensalidade, há uma porção de sinais que ajudam a celebrar o fim ainda no meio do caminho. Com a ressurreição de Cristo, ele continua caminhando com seus discípulos e com toda a criação, através de sinais humildes, mas verdadeiros e densos de vida que se renova teimosamente.
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Acrescentamos a poesia do Padre Flávio Lazzarin:
Páscoa 2024
Flávio Lazzarin
Como dizer Páscoa
em Gaza e Jerusalém
em Kiev e Moscou
na Líbia, Iêmen, Síria
Azerbaijão e Arménia
Etiópia
Afeganistão
Sudão...
E, perto de nós:
Abya Yala
Pindorama
Maranhão
em que os donos do dinheiro e do poder
roubam as terras
e matam
desde sempre
indígenas, camponeses, quilombolas,
os pobres e os pequeninhos de Deus.
Diante de tanto sangue, dor, morte e medo
só as suas palavras resistem:
"Pai, perdoa-lhes,
porque eles não sabem o que estão fazendo."
Mas, então, que o sagrado Silêncio
nos obrigue a calar-nos:
"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
Assim a Páscoa será celebrada em silêncio, em expectativa vigilante e fiel,
única semente da Esperança
diante de toda pontual negação da vida,
Possa este silêncio ser o útero
em que germinam gritos amorosos de luta
de quem acredita
que Jesus venceu a morte
e que Ressurreição é a última
definitiva Palavra.