Confira os destaques de 23 a 27 de março
Na Semana Santa de 2024, em meio às guerras, à fome e a crimes que são revelados com requintes de dissimulação e perversidade, o IHU convida, nos Destaques da Semana, a um mergulho na reflexão que cruza o sofrimento de Jesus com o sofrimento do mundo, no qual, apesar do sacrífico do Filho de Deus, ainda vive aturdido pelas brumas do mal.
Estamos no tempo da Páscoa de Jesus, o ponto alto da narrativa sobre um Deus que se faz humano, deixando um pouco de lado a ideia de Senhor todo poderoso, para viver as dores da humanidade. É assim que o teólogo Leonardo Boff, em videoconferência promovida pelo IHU nesta semana, convida-nos a olhar para a história do Cristo. Mas, se Jesus, o filho de Deus, foi entregue em sacrifício para que mais nenhum ser vivo seja imolado, como compreender o mundo de hoje, em que a guerra, a fome, a destruição ambiental e as disputas viscerais põem tantos em sacrífico? “Temos vivido agora, nestes tempos, a verdadeira Sexta-feira Santa”, diz Leonardo.
A conferência surgiu das provocações de Boff no texto Para onde estamos indo? e integra a programação de Páscoa do IHU. Durante cerca de uma hora e meia, o teólogo mergulhou na mística pascal cristã e a aproximou com fatos da realidade concreta. Ele falou de fome, de guerra, de desunião, de degradação ambiental e de morte. Mas, olhando para essa realidade dura e concreta, repete algo já dito tantas vezes por ele aqui no IHU: “a vida plena sempre vence a morte”, algo também presente no texto Deus e o sofrimento humano: questão nunca resolvida.
E é neste olhar na realidade concreta atravessada pela narrativa da Paixão de Cristo que Leonardo Boff traz mais uma luz para estes tempos perigosos que vivemos. Para ele, é preciso não só ter em mente que Jesus venceu a morte como também sempre esteve ao lado dos pequeninos e nunca aceitou a ordem imposta, uma ordem de fome, de morte, de guerra, de disputas e destruições e que faz sofrer. Por isso, crê na vitória da luz, como no Sábado Santo. Afinal, depois das trevas que fecham o céu na Sexta-feira Santa, vem como uma Ressurreição que vence a ordem imposta. Assim, se vivemos nestes tempos a densa e perigosa Sexta da Paixão, a narrativa do Cristo nos inspira a esperançar na luz que raiará no Sábado do Fogo Novo.
Leonardo Boff destaca também que nenhum sofrimento é em vão. É claro que diante da dor nos prostramos e, como o grito de Jesus na Cruz, nos questionamos por que existe tanta dor e por que Deus parece silenciar. Para o teólogo, são tempos de espera, mas também de ação. Estar ao lado de quem sofre é uma delas, algo que o próprio Cristo faz até o fim. E podemos ainda aliar a perspectiva de Dom Pedro Casaldáliga, que vê em cada martírio o sofrimento de Cristo e o chamado a pensar que nenhum sofrimento há de ser em vão.
Tradicionalmente, a Páscoa IHU se faz como uma proposta do Instituto Humanitas Unisinos – IHU de, a cada ano, colocar em foco os tempos que temos vivido à luz do mistério pascal. Neste ano, além da conferência de Leonardo Boff, também foi realizada a palestra intitulada “A cruz de Jesus e sua extrema compaixão para com as vítimas”, com o Prof. MS Antônio Ronaldo Vieira Nogueira, da Faculdade Católica de Fortaleza – FCF.
Mas essas são algumas entre as propostas trazidas pelo IHU em seu site. Tensionar a pensarmos a Paixão de Cristo como a Paixão do Mundo através de uma teologia da cruz encarnada é algo presente, o que em 2022 ainda rendeu uma página especial preparada por Wagner Azevedo. Neste repositório, acessível aqui, estão reunidas as temáticas pelas quais podemos, na cruz e na esperança, viver no tempo presente.
Arte: IHU
Pela arte, também somos levados a compreensões que por vezes não conseguimos na aspereza da vida. É por isso que o IHU insiste em ciclos que têm como base filmes que, numa mística muito própria, nos levam a descobrir um sagrado. São muitos longa-metragens que vêm sendo trabalhados pelo parceiro Faustino Teixeira no círculo Filmes em Perspectiva. Neste tempo de Páscoa, lembremos que a Paixão de Cristo no cinema vem sendo tema no IHU. Entre as reconstituições mais emblemáticas desta narrativa está O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini.
A obra de Pasolini foi muito trabalhada pelo IHU, chegando a ser tema de capa de uma das edições da Revista IHU On-Line:
Sua obra vai no sentido de capturar a narrativa sobre a experiência do Cristo na concretude da vida cotidiana, como também indica Vladimir Lacerda Santafé, em artigo publicado no Cadernos IHU ideias:
E aguarde, o cineasta Martin Scorsese também tem se dedicada a narrativa de Cristo e, pelas conversas com membros da Santa Sé, logo teremos a sua releitura nos cinemas.
Tanto Leonardo Boff quanto Antônio Ronaldo Vieira Nogueira lembraram de algo recorrente, aqui no IHU, quando falamos na teologia da cruz: o grito de Jesus na cruz “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34-39). Francine Bigaouette, Alexander Nava e Carlos Arthur Dreher, em 2014, mergulham nesta temática no artigo O grito de Jesus na cruz e o silêncio de Deus. Reflexões teológicas a partir de Marcos 15,33-39, publicado no Cadernos IHU ideias. A frase, escrita pelos autores na apresentação do texto, é válida para a atualidade: “a reflexão sobre o significado e as ressonâncias teológicas do grito de Jesus na cruz é um desafio sempre atual para a fé e a teologia cristã em função das muitas manifestações do mal, do sofrimento, da injustiça e da violência no mundo”.
Já em artigo mais recente, de 2022, Junior Vasconcelos do Amaral traz outros ares para a reflexão a partir do texto “O grito de abandono de Jesus na cruz e o silêncio de Deus: reflexões à luz do Evangelho de Marcos”, também publicado no Cadernos IHU ideias. Além da narrativa acerca do grito em si, o autor reconstitui os instantes antes da crucificação como forma de lastrear sua análise que traz, “em primeiro plano, antropológico-existencial, a experiência de desamparo experimentada e vivida por Jesus; em seguida, sua experiência no Getsêmani até o grito na cruz, como clímax da narrativa de Marcos; por fim, a teologia do servo sofredor e o silêncio de Deus, como a resposta acolhedora de Deus à vida de Jesus, seu Filho”.
Voltando à conferência de Leonardo Boff desta semana, percebemos que ele entende que o mal não pode ser extirpado, que está entre nós. No entanto, aponta que precisamos ser vigilantes e desviarmos das ciladas deste mal. Andrés Torres Queiruga, em entrevista concedida ao IHU em 2021, em tempos de pandemia, aponta que “o grande expoente do mal é o sofrimento, que é justamente aquilo que não queremos”.
Boff complementa esta ideia ao recomendar que, ao nos colocarmos ao lado de quem sofre, também é uma forma de abrandar essa dor e desnutrir o mal. Mas, o que dizer? Para Boff, apenas a presença basta.
Muitas vezes, nos questionamos sobre o silêncio de Deus no sofrimento. Mas o que este emudecimento pode estar a nos apontar? Na missa de Domingo de Ramos, o Papa Francisco renunciou ao direito da homilia e silenciou-se. Houve até que dissesse que problemas de saúde o impediam de proferir seu sermão, outros que foi cansaço de tanto erguer a voz e não ser escutado. Nada disso, foi opção.
Mais tarde, Francisco só volta a falar na oração do Angelus. Mas o Papa teria nos provocado a pensar sobre o silêncio de Deus? Para Riccardo Cristiano, jornalista italiano, “o Papa quis significar ao mundo, deliberadamente, que a Igreja espera, com fé, com confiança, a luz, mesmo nas trevas, mas pediu a todos nós, individualmente, um profundo exame de consciência, crentes e não crentes. E ele não encontrou melhor maneira de dizer isso do que com o silêncio”. Quem sabe, um silêncio na presença, como também nos incitou a pensar Leonardo Boff.
Nesta edição dos Destaques da Semana, nos dedicamos a refletir a partir da Páscoa de Cristo e também falamos do mal no mundo. Na semana em que a angústia e o alívio da solução do caso do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, não podemos deixar de citar o quanto o mal se revela neste caso. Um mal que se perfila com o crime, com o ódio e com a ganância, que faz os perversos dissimularem ombros amigos para chorar as vítimas enquanto trabalham pela impunidade. Que neste tempo de Páscoa, quando se configura um momento chave e ponto importante de inflexão na relação entre o crime organizado e o Estado brasileiro, possamos olhar além e, com justiça, construir tempos melhores. Raúl Zibechi, no artigo Narcotráfico e forças armadas, que também pode ser lido em perspectiva com o caso Marielle, nos provoca pensar: “está na hora de deixarmos de acreditar que o poder político pode fazer algo contra o crime organizado. O narcotráfico está no núcleo do sistema. O capitalismo e o seu Estado são o crime organizado, por isso não podem ser combatidos separadamente”.
Na próxima segunda, às 10h, o IHU discute o Caso Marielle e a questão da Segurança Pública no país.
Como dizer Páscoa
em Gaza e Jerusalém
em Kiev e Moscou
na Líbia, Iêmen, Síria
Azerbaijão e Arménia
Etiópia
Afeganistão
Sudão...
E, perto de nós:
Abya Yala
Pindorama
Maranhão
em que os donos do dinheiro e do poder
roubam as terras
e matam
desde sempre
indígenas, camponeses, quilombolas,
os pobres e os pequeninhos de Deus.
Diante de tanto sangue, dor, morte e medo
só as suas palavras resistem:
"Pai, perdoa-lhes,
porque eles não sabem o que estão fazendo."
Mas, então, que o sagrado Silêncio
nos obrigue a calar-nos:
"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
Assim a Páscoa será celebrada em silêncio, em expectativa vigilante e fiel,
única semente da Esperança
diante de toda pontual negação da vida,
Possa este silêncio ser o útero
em que germinam gritos amorosos de luta
de quem acredita
que Jesus venceu a morte
e que Ressurreição é a última
definitiva Palavra.