25 Março 2024
"Quem conhece Scorsese sabe quão irresistível é o conhecimento entusiástico e enciclopédico que tem do cinema, mas, nesse caso, prevalecem as referências a escritores que têm papel fundamental dentro de seu percurso artístico e existencial: Flannery O'Connor, Shūsaku Endō, Fiodor Dostoievski e Marilynne Robinson", escreve Antonio Monda, escritor, diretor artístico e apresentador de televisão italiano, em artigo publicado por Repubblica, 20-03-2024.
Nos últimos oito anos, Martin Scorsese e Antonio Spadaro mantiveram um diálogo próximo, denso e de extraordinária intensidade, que tocou vários temas e, em particular, a fé. As conversas, ainda em curso, ocorreram nos lugares mais díspares: a casa do diretor em Nova York, o escritório de sua produtora, o hotel onde reside em Roma, a sede da Civiltà Cattolica que Spadaro dirigiu durante doze anos e também o Vaticano, onde Scorsese se encontrou repetidamente com o Papa Francisco. A transcrição dessa conversa ininterrupta gerou Diálogos sobre a fé, que se conclui com o primeiro rascunho de um roteiro sobre Jesus escrito a partir da sugestão do prefácio do pontífice a um texto anterior de Spadaro, Uma trama divina: “O prefácio me deu muito a pensar", escreveu-lhe logo no começo "tanto que resolvi dar-lhe uma resposta, acrescentar alguma coisa, só que eu sou um diretor, não um filósofo".
Scorsese está atualmente concluindo o roteiro com o projeto de transformá-lo em um filme. Com o tempo, nasceu uma amizade sincera e profunda entre os dois, e o diálogo se desenvolveu por meio de referências iconográficas, cinematográficas, mas sobretudo literárias. Quem conhece Scorsese sabe quão irresistível é o conhecimento entusiástico e enciclopédico que tem do cinema, mas nesse caso, prevalecem as referências a escritores que têm papel fundamental dentro de seu percurso artístico e existencial: Flannery O'Connor, Shūsaku Endō, Fiodor Dostoievski e Marilynne Robinson.
O cinema parece mais ser o resultado de um itinerário cujo ponto de partida está numa dimensão puramente espiritual e os pontos cardeais transcendem a escolha expressiva: apesar da paixão febril e o fulgurante talento de direção que exalta a linguagem da sétima arte, o cinema para Scorsese é um meio e não um fim. Nesse sentido esta passagem é esclarecedora: “Procurei por muitos anos entender como Jesus vive no mundo ao meu redor e como sua presença possa viver em mim e ser expressada por mim. Durante muito tempo cometi o erro de pensar que estava expressando Jesus, quando na verdade eu estava fazendo uma grande confusão: o orgulho, o ego, ser o ‘grande diretor’”.
O itinerário foi uma verdadeira Via Sacra para Scorsese, onde, no entanto, para citar Flannery O'Connor, a graça consegue brilhar no território do diabo, e quando o diretor fala de sua experiência como coroinha, Spadaro observa: “Resulta uma mistura de laços de sangue, violência e sagrado. Para Martin, os ritos da igreja eram dramáticos, as liturgias, belíssimas. As lembranças na igreja se fundem com aquelas de um menino que, inconscientemente, faz da rua o seu primeiro cenário cinematográfico: aquele da sua imaginação, dos seus sonhos e dos seus pesadelos, onde entre os personagens havia gângsteres e padres”. É o período em que Scorsese tem o encontro fundamental com um padre chamado Francis Principe, graças ao qual percebe que sua vocação religiosa também poderia se expressar através do cinema. Mas desde então começou a se perguntar no final de toda função litúrgica: “Por que o mundo não é abalado pelo sangue e pelo corpo de Cristo?”
Esse tormento representa a força motriz de um cinema em que o elemento espiritual, presente desde os primeiros filmes, veio à tona hoje e o vê identificar a graça mesmo quando fala de personagens culpados de crimes horríveis, como o protagonista de O Irlandês, que pede para “deixe a porta aberta” ao padre com quem não teve a força de se confessar. Em sua jornada, Scorsese precisa de companheiros e pontos de referência: define Taxi Driver como suas Memórias do Subsolo, o livro preferido do Papa Francisco, com quem discutiu o respectivo amor por Dostoievski.
Já o Silêncio, baseado em Shūsaku Endō, foi vivido como uma passagem imprescindível, na qual o personagem aparentemente mais distante de Cristo é na realidade o mais próximo. Ao longo da sua Via Sacra Scorsese esteve repetidamente no limite da autodestruição, e quando cita “somos brilhantemente criativos e igualmente brilhantemente destrutivos”, de Absence of Mind de Marilynne Robinson, Spadaro reflete: “Isso torna o homem inexplicável, ou seja, irredutível a explicações: é ‘o grande e surpreendente mistério do nosso mero existir, do viver e do morrer’. Para Martin parece-me que existe uma diferença radical entre um problema e um mistério: no mistério a resposta não esgota a pergunta. E os mistérios não devem ser transformados em problemas”. O diálogo encontra o seu momento de epifania na decisão de escrever o roteiro sobre Cristo, depois de ter revelado que abandonou o projeto na juventude ao ver O Evangelho Segundo Mateus:
“Procurava a imediatez de Jesus aqui, agora, não como uma figura bela e perfeita, portanto capaz de inspirar a construção de uma bela igreja, de uma basílica ou de uma pequena capela. Jesus não existe apenas ali. Jesus está conosco, sempre (…) Se você olhar para o Cristo de Pasolini, não é alguém que entra na sala e a ilumina. E às vezes está justamente ali, no canto da cena, é alguém em quem você não presta imediata atenção: o primeiro é o último, o último é o primeiro”.
A dor está sempre presente nessa viagem atormentada, mas Scorsese sabe que no fim da Via Sacra há a ressurreição, e o diálogo deixa uma luz catártica no leitor, que acaba iluminando todas as suas obras-primas, realizadas tendo em mente o texto evangélico segundo o qual é a verdade que nos liberta. Esse magnífico livro obriga-nos a reler toda a sua cinematografia à luz do que confidencia ao amigo padre: “A mudança será sempre guiada pelas palavras, pelas ações e pela presença de Jesus”, e é impossível não pensar na citação de o Evangelho de São João que quis acrescentar no final de Touro Indomável: “Se é pecador, não sei; só sei uma coisa: antes eu era cego e agora posso ver”.
Martin Scorsese e Papa Francisco. (Foto: Vatican Media)
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O Evangelho segundo Scorsese. Artigo de Antonio Monda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU