20 Junho 2023
"Martin Scorsese está trabalhando em um filme sobre Jesus, disse isso na minha casa desta vez, na Civiltà Cattolica. E ele terá que lidar com a liberdade de Jesus. Em seu A Última Tentação de Cristo, o filho de Deus é tentado não pelo poder ou por algo terrivelmente diabólico, mas pela "normalidade" da vida. Sua liberdade está em jogo ali. E talvez até a nossa, na realidade. Veremos o que acontecerá no novo filme", escreve o jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Catollica, em artigo publicado por Il Foglio, 17-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu estava jantando na casa do Scorsese alguns meses atrás. E conversávamos sobre romances, o que acontece em uma história e a perspectiva cristã sobre as histórias. Concordávamos sobre uma coisa fundamental: é possível que a graça toque uma experiência humana. E isso significa admitir que uma mudança radical seja possível como reação ao toque – seja carícia ou tapa – dessa graça.
Em suma, concordávamos que é realmente possível mudar: mudar de vida, não apenas de ideias.
Estávamos conversando sobre os grandes escritores: sobre Flannery O'Connor e Dostoievski, mas também sobre Bruce Springsteen e Patti Smith. E depois a conversa passou para Marilynne Robinson, uma das maiores escritoras vivas. Como fervorosa calvinista, acredita na "predestinação". Eu bati pesado, bastante pesado, inutilmente, admito. E eu disse: “Seu gênio poético a salva, isto é, salva as histórias que ela escreve a partir de sua fé na predestinação. Quem acredita que você esteja predestinado à salvação ou à condenação não pode escrever histórias interessantes porque falta uma peça fundamental para que a história funcione: a liberdade”.
Prometi a Scorsese que tentaria entender melhor o pensamento de Robinson (não a amar as suas páginas, porque já faço isso). Empenhei-me a fazer isso. Mas de uma coisa tenho certeza absoluta: uma história interessante não pode estar “já” escrita. Um personagem vive sozinho enquanto seu autor escreve sobre ele. Qualquer coisa pode estar à espreita ao virar da esquina. Ele deve poder ser um santo que de repente despenca no inferno. E deve ser um danado que improvisa e imprevisivelmente salva a si mesmo (e talvez algum outro). E isso porque acontece algo que coloca em movimento a sua liberdade, sem acorrentá-lo a um destino já escrito em algum lugar: seja a mente do Todo-Poderoso ou de um escritor, não importa.
Martin Scorsese está trabalhando em um filme sobre Jesus, disse isso na minha casa desta vez, na Civiltà Cattolica. E ele terá que lidar com a liberdade de Jesus. Em seu A Última Tentação de Cristo, o filho de Deus é tentado não pelo poder ou por algo terrivelmente diabólico, mas pela "normalidade" da vida. Sua liberdade está em jogo ali. E talvez até a nossa, na realidade. Veremos o que acontecerá no novo filme.
Mas esse é o ponto. A liberdade está em jogo no Evangelho. Quem escreveu os quatro Evangelhos - e eu entre os quatro escritores tenho um favorito, que é Marcos – lidou com a liberdade de Jesus. O Filho de Deus, o Mestre não é um replicante divino que caiu de paraquedas na terra para ser o porta-voz do Eterno para os ouvidos humanos. Ele é Deus e homem. E sua história é um enredo que não teria sentido sem a liberdade. Não basta a carne para ser humano. É preciso a liberdade. Mateus, Marcos, Lucas e João não são apenas grandes escritores (e o são), mas são heróis que souberam não "pensar", mas "ver" e mostrar a liberdade de Deus que levanta a poeira das estradas de um canto da Terra. E o faz sem gerar furacões ou erupções vulcânicas a cada passo. Simplesmente levantando poeira. Quem tiver dificuldade em entender isso, basta olhar o Evangelho segundo Mateus de Pasolini. Ali tem de tudo, tem o "imediatismo" de Jesus, para usar um termo que entendi ser muito caro para Scorsese: o imediatismo.
Também eu admito o fascínio por esse imediatismo de Jesus que ainda procuro, mesmo sendo jesuíta há trinta e cinco anos. “Quem dizeis que eu sou?”: apenas um homem livre – ou um louco, tudo bem – pode fazer tal pergunta. Entendo alguém que acredita não apenas em sua própria liberdade, mas também naquela de quem está ao seu lado, que deve ser livre para acreditar nele ou não.
É por isso que escrevi Una trama divina. Gesù in controcampo (Uma trama divina. Jesus em contracampo, em tradução livre, Marsilio) porque eu precisava seguir com minha pena a ação livre de Deus, e fazê-lo como míope que sou, com meus olhos grudados no meu personagem favorito. O Papa Francisco leu e comentou em seu prefácio: "Para seus contemporâneos, Jesus poderia ter reentrado no paradigma do inadaptado, da pessoa que não se encaixa, desajustada, que não se conforma com o óbvio." E assim me deixou feliz. Mas, acima de tudo, proclamou a liberdade de Jesus.
Livro "Una trama divina. Gesù in controcampo" | Foto: divulgação
Cristo é um "personagem em busca de um autor", Jesus é "um, ninguém, cem mil" muito mais que Vitangelo Moscarda, que certamente não era Deus. O personagem Jesus escapa porque está livre em uma trama divina. E com ele se entende melhor porque na realidade o protagonista de cada história possa parar de repente, romper a "quarta parede", virar-se para o nosso lado e perguntar: "Quem dizeis que eu sou?".
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Não basta a carne para ser humano, é necessária a liberdade. Uma conversa com Martin Scorsese. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU