04 Dezembro 2014
"Patricia Lee Smith, hoje com 68 anos, é uma das artistas mais respeitadas do mundo, não apenas por suas sempre inovadoras músicas, mas por seu posicionamento político, pacifista e humanitário. Por isso, se alguém estranhou o convite do Papa Francisco, é porque não conhece bem o Papa ou porque nunca ouviu Patti Smith", escreve Renato Ferreira Machado, doutor em Teologia.
Eis o artigo.
Correu o mundo a notícia de que o Papa Francisco havia convidado Patti Smith para tocar no concerto de Natal que acontecerá no próximo dia 13 de dezembro, no Auditório da Conciliação, em Roma. Ela não será a única atração, mas, certamente é a que mais tem chamado atenção: Patti Smith é, para o Movimento Punk, o que Bob Dylan foi para o Movimento Hippie, pois suas letras e arranjos acabaram se tornando uma crônica da vida e dos desejos dos jovens que buscavam sua afirmação na virada dos anos 70 para os 80. Não espere de Patti Smith, porém, nenhum estereótipo: a cantora nunca precisou se “fantasiar” de Punk para ser ouvida e respeitada. É sua própria vida que pode ser considerada uma síntese daquilo que este movimento representava.
Patricia Lee Smith nasceu em 1946, na cidade de Chicago, mas passou a maior parte de sua infância e adolescência em New Jersey. Filha de uma família pobre, sendo o pai ateu e a mãe Testemunha de Jeová, Patti precisou abandonar a escola para trabalhar. Aos dezenove anos engravidou e teve seu primeiro filho, que entregou para adoção. Mudando-se para Nova York em 1967, começou uma relação com Robert Mapplethorpe, fotógrafo que despontava no contexto da Pop Art com seus registros da cena gay sadomasoquista nova-iorquina. De certa forma, foi no caldeirão cultural da metrópole que Patti foi encontrando seu caminho no mundo artístico, passando pela pintura, poesia e resenhas de lançamentos musicais da cena Glam e Protopunk nova-iorquina, além, obviamente, da realização de performances musicais com diversos músicos. Assim, entre muitas idas e vindas, Patti Smith lança, em 1975, seu primeiro álbum, intitulado Horses.
Uma temporada no Inferno
Em um momento no qual as expressões artísticas que supostamente representavam os jovens tornavam-se complicadas demais para seu público e grandiloquentes demais para convencerem como rebeldia, o álbum de Patti Smith surpreende pela absoluta simplicidade. Esta simplicidade, porém, longe de ser simplória ou superficial, escondia em seu interior um complexo de referências e verdades forjadas na própria experiência de vida da cantora, em diálogo com os referenciais culturais através dos quais ela foi construindo sua síntese artística. A própria capa do álbum já sinaliza para isso: uma foto em preto e banco de Patti, vestida com calças pretas, suspensórios e uma camisa branca, segurando um casaco em seu ombro. A referência ali era Arthur Rimbaud, personificado na cantora: Mapplethorpe, que a fotografou, quis demonstrar que a cultura não precisava de porta-vozes acadêmicos ou do mainstream artístico, mas que poderia ser encontrada na rua, encarnada em pessoas como Patti Smith, uma jovem que havia mergulhado no inferno nova-iorquino e estava ali para contar o que havia visto. Ou seja: Horses era o “A Season in Hell” de Patti Smith, com uma narrativa crua, em alto e bom som, para todos ouvirem.
O primeiro verso que se ouve Patti Smith cantar em seu álbum de estreia é “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus”, em sua versão para a clássica “Gloria” do irlandês Van Morrison. Antes de ser uma declaração de ódio ou desprezo religioso, a composição expressa a autonomia que ela conquistara a duras penas em Nova York, bem como sua batalha cotidiana para sustentar-se com sua arte. Mais do que tudo, porém, o álbum resgatava o caráter revolucionário do Rock, com melodias simples e agressivas possíveis de serem tocadas por qualquer jovem que quisesse experimentar a música sem as complicações que as bandas “progressivas” colocavam em suas produções. E aí se encontra parte da importância de Patti Smith: de certa forma, ela adiantou a cena Punk que explodiria em Nova York (com os Ramones, naquele mesmo ano) e Londres (com os Sex Pistols, em 1977), ao mesmo tempo em que se colocava muito adiante das bandas que aderiam a esta estética. Patti, aliás, sempre recusou rótulos e nunca se nomeou como Punk. Sua compreensão de arte sempre foi multifacetada e dinâmica, sem nunca perder a crueza e o senso de realidade. E este realismo, em suas letras, toma a forma de metáforas teológicas profundamente embasadas.
Teologia Punk
Em “People have the Power”, uma de suas músicas mais populares, por exemplo, ela canta sobre um sonho que tivera a respeito de um tempo de justiça e paz, no qual as pessoas, empoderadas, poderiam “consertar o trabalho que os tolos fizeram”. Ela segue falando que a “bondade se mostrará sobre os mansos”, utilizando uma expressão diretamente retirada de Mt 5, 5. Na sequência refere-se a “exércitos que pararam de avançar”, a “pastores e soldados” que “deitam-se sob as estrelas, compartilhando suas visões e colocando suas armas no chão”, cantando, na estrofe seguinte, que “o leopardo e o cordeiro criam laços verdadeiros um com o outro”, em uma clara referência a Isaías, em sua profecia sobre “Novo Céu e Nova Terra” (Is 65) e ao Apocalise, no capítulo 21. Junto a isso está o próprio fato da canção se colocar como a descrição de um sonho, recurso narrativo bíblico amplamente utilizado nas escrituras como lugar onde Deus se manifesta para revelar a vocação e enviar em missão. Este não é um caso isolado em sua obra, pois seguidamente ela apresenta composições que bebem de referenciais cristãos. Assim é com Radio Baghdad, Peaceble Kingdom, Gandhi, Abyssinia, Ask the Angels, Rock’n Roll Nigger, Easter e na recente Constantine’s Dream. E, não, isso não faz de Patti Smith uma “cantora gospel”. Ela está muito além disso.
Patricia Lee Smith, hoje com 68 anos, é uma das artistas mais respeitadas do mundo, não apenas por suas sempre inovadoras músicas, mas por seu posicionamento político, pacifista e humanitário. Por isso, se alguém estranhou o convite do Papa Francisco, é porque não conhece bem o Papa ou porque nunca ouviu Patti Smith.
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Patti Smith e a Teologia Punk - Instituto Humanitas Unisinos - IHU