05 Julho 2022
"Se a Europa quer ser força política de governo mundial, deveria mostrar-se capaz de compreender também o mundo visto de Washington, no já mencionado sentido de 'intelligere': isso nos permitiria propor não a pax estadunidense, mas a pax europeia", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Formiche, 04-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em importante artigo sobre a guerra na Ucrânia, o diretor de La Civiltà Cattolica indica um método para não cair na lógica dos bons contra os maus, sem alterar a terrível realidade dos fatos. É um método que a Europa poderia adotar politicamente, para propor uma pax culturalmente europeia.
O artigo sobre a guerra em curso na Ucrânia publicado em La Stampa pelo diretor de La Civiltà Cattolica, padre Antonio Spadaro, é muito importante. É importante pelo que diz, muito mais do que pela função de seu autor. Assume imediatamente uma perspectiva diferente daquela que instintivamente percebo dentro de mim e para resistir ao risco de uma leitura superficial, fui imediatamente folhear um dos volumes que guardo com maior cuidado e bem à mão na minha biblioteca. Foi escrito por Giancarlo Bosetti e seu título é "A verdade dos outros". Não quer dizer que a verdade não exista, não é uma obra relativista, mas sim uma pedra angular do pluralismo. Eu precisava reler ao menos a dedicatória, esta: "Dedicado a todos os monistas, que cuidam da árvore da Verdade na cozinha de casa". O monista, ao contrário do pluralista, acredita que apenas um ponto de vista, o seu, esteja certo.
Assim lendo o artigo do padre Antonio Spadaro me lembrei do que escreveu séculos atrás um grande não muito amado nos sagrados palácios: "As ações humanas não devem ser elogiadas, ridicularizadas, detestadas, mas compreendidas". Compreendidas não quer dizer justificadas e o original, em latim, ajuda a entender muito melhor. O verbo latino usado por Baruch Spinoza para essa sua famosa frase é “intelligere”. Entender, entender o que causa uma nossa dor nos permite curá-la, não justifica a dor.
Grande parte do artigo do padre Antonio Spadaro visa ir além da barricada. Compreender a história desta guerra do ponto de vista do Kremlin é importante. Em primeiro lugar para nós, para não absolutizar o mal, para não fazer de Moscou o eterno e imutável urso polar, ou soviético, com o qual nada poderá jamais mudar. Permitam-me um interlúdio jocoso: com as mudanças climáticas, até ao urso caberia mudar, pelo menos um pouco, para sobreviver. Mas isso é outra história. Mas o padre Spadaro sabe ir além desse sarcasmo superficial e com a coragem que o distingue em muitas ocasiões escreve que mesmo "intelligere" coisas nos levou ao nazismo, e é crucial evitar que aquela página escura volte a acontecer.
Pode-se objetar que esta parece ser uma discussão acadêmica hoje; os fatos, a horrenda realidade de hoje, tudo isso nos chama para outra situação. Certamente, mas se queremos considerar o presente como uma soleira e não como um bunker, devemos imaginar como nos mover e por quê. Aquilo do presente vivido como soleira é um ponto decisivo em muitos escritos do padre Spadaro: neste ele não o menciona, mas o horizonte em que se coloca parece-me esse mesmo. Ao combinar esse seu pensamento com o de um filósofo árabe que aprecio muito, Yassin al-Haj Saleh, para quem o presente é a casa do tempo, passo a entender o presente como a soleira cotidiana da minha vida, das nossas vidas. Sempre podemos escolher, indo em direção ao amanhã, um caminho também diferente.
Livrar-se do monismo não significa compartilhar a visão do Kremlin. E de fato Spadaro nos lembra que a guerra de Moscou é uma guerra de invasão, que desrespeita as normas mais elementares, porque até as guerras têm códigos de comportamento. Apesar disso, devemos entender que, vista de Moscou, a história foi uma progressiva tentativa da OTAN de isolá-la, afastá-la, marginalizá-la. É o discurso que também fez Francisco e que Spadaro explica em uma perspectiva de governo mundial, ou seja, uma busca de compatibilidade. Essa busca de compatibilidade existiu? Aqui o autor cita Giuliano Amato e Xavier Solana para nos fazer entender que podia ter existido e não foi suficiente.
Essa reconstrução remove do terreno a arma mais odiosa da propaganda pró-Rússia: não há uma guerra por procuração. Os ucranianos não se tornaram os idiotas úteis do expansionismo a estrelas e faixas. Em vez disso, houve uma incapacidade, ou um desinteresse, de tornar compatíveis seus direitos e as exigências de Moscou - talvez dentro de um processo evolutivo. A justiça também é um processo: e se é certo que a Ucrânia tenha uma sua própria estratégia de defesa nacional, essa justiça se realiza por etapas.
Foi assim que interpretei o sentido do seu artigo e espero ter sido fiel senão à palavra ao seu sentido.
Quando terminei de ler, estava convencido de que concordo com ele. Não sem algumas dificuldades: porque acredito que se esse sistema tivesse sido adotado também nos tempos da Chechênia e da Síria, para entender os pontos de vista desses povos, suas verdades, talvez não tivéssemos chegado a este ponto. Mas a história não se faz com os ‘se’ e hoje concordo com ele; tenho que deixar de lado meu instinto ou desejo de vingança, outros terão outros tipos de desejo semelhante. Existe a cólera, ensinou-me padre Paolo Dall'Oglio, mas depois vem a luz, ou sua busca.
Também por isso concordo com outro aspecto do texto do Padre Spadaro. Não discutir as qualidades ou carências da "democracia ucraniana". Para um país que vive há anos na soleira, mas de um precipício, isso teria sido presunçoso e opinativo. Há uma pretensão, especialmente em certos círculos da esquerda política internacional, de falar em nome dos ucranianos que é realmente insuportável.
Mas nós? O que poderíamos fazer nós, "Europa política"? Também poderíamos estender esse método aos Estados Unidos da América. Somos seus principais aliados. E como olhamos, como entendemos os Estados Unidos? Eles são apenas os eternos xerifes do mundo? Acredito que para nos tornarmos realmente Europa deveríamos nos libertar desse estereótipo.
Se a russofobia existe, desde sempre, com o mito do “urso”, não existe também um estereótipo cultural antiestadunidense? Na minha experiência pessoal, justamente os livros de Antonio Spadaro me fizeram entender como os mitos são realidade. Romances, poesias, canções são parte da realidade, da nossa realidade. E o mito de Kerouac, da rua, é um pedaço da nossa realidade. Em Kerouac, a soleira a atravessar está em cada instante da nossa vida. As músicas de Springsteen não são um pedaço da nossa realidade? Por que tantos de nós se sentem então condenados ao antiamericanismo? O discurso seria longo e doloroso.
Mas se a Europa quer ser força política de governo mundial, deveria mostrar-se capaz de compreender também o mundo visto de Washington, no já mencionado sentido de "intelligere": isso nos permitiria propor não a pax estadunidense, mas a pax europeia. Aliás, hoje temos notícias que na minha opinião confirmam uma sensação. Nesta guerra também está envolvido o ressentimento da democracia estadunidense para com aqueles que tentaram o golpe de 6 de janeiro, uma espécie de epifania das intenções. O asilo político concedido por Moscou ao golpista da "alt right" que depois fugiu para a Rússia confirma essa sensação para mim. Uma Europa inteligente não justifica, mas compreende e procura elaborar uma visão que proteja os interesses legítimos daqueles ilegítimos. E isso é feito hoje reequilibrando a globalização.
Os Estados Unidos são um país em perigo, isso devemos entender. Talvez não seja esse o ponto, a publicação do telefonema entre Macron e Putin poderia me desmentir (embora não necessariamente). Mas se não queremos pensar numa paz baseada apenas na força, a Europa pode encontrar neste método a substância da sua autoridade, para sairmos desta crise melhores e não piores, como nos diz que é sempre possível o Papa Francisco. O método Spadaro, se queremos chama-lo assim, poderia ser assumido pela Europa, aplicando-o como aliada e interlocutora.
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A guerra na Ucrânia e o método Spadaro. A leitura de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU