25 Abril 2020
O escritor e pensador sírio Yassin al-Haj Saleh (Raqqa, 1961) conhece bem o significado de palavras agora tão em moda como confinamento, crise e tragédia. Perseguido pelo regime, passou 16 anos na prisão, submetido à clandestinidade, perdeu amigos, companheiros e familiares, inclusive sua companheira, e agora sofre o exílio.
Consciente do que significa viver vigiado e com os direitos violados, Haj Saleh teme que o distanciamento social forçado pela pandemia se consolide como o modelo das relações futuras, pois esgotaria a capacidade compensatória de conceitos como cidadania e democracia e facilitaria o exercício do poder daqueles que estiverem melhor posicionados quando o medo se expandir.
A entrevista é publicada por La Vanguardia, 24-04-2020. A tradução é do Cepat.
A crise sanitária parou o mundo, inclusive alguns protestos populares como no Líbano, Chile e Argélia. Por que não conseguiu parar as guerras, como as do Iêmen, Líbia e Síria?
Porque as potências e autoridades que governam esses países são mais perigosas para nós que o coronavírus. Bashar al-Assad considera que ele e seu regime são mais importantes que a Síria, sua população, suas cidades, sua história, sua cultura, suas crenças... E assassinar meio ou um milhão de sírios e expulsar mais de seis milhões para fora do país não tem a mesma importância que o potencial desaparecimento de sua dinastia. Se pudesse, desenvolveria uma arma coronaviral para utilizar contra os sírios que se rebelaram contra ele, assim como fez com as armas químicas, os barris explosivos, a tortura e a fome.
Seu protetor, (Vladimir) Putin, em um alarde de falta de sensibilidade, chegou a se gabar, há alguns dias, de que as armas russas demonstraram sua eficácia na Síria e de que a Rússia tem vários pactos para vender armas no valor de 15 bilhões de dólares (...).
O papel dos Emirados Árabes Unidos no Iêmen é equivalente ao desempenhado pela Rússia na Síria e nem a saúde dos iemenitas, nem conseguir as soluções mais justas possíveis em seu país estão entre as prioridades do governo mais retrógrado no Oriente Médio. Isto se aplica também ao apoio que prestam ao general [Khalifa] Haftar, na Líbia.
No que diz respeito ao dramático conflito entre o direito das pessoas a protestar no Líbano, Argélia e Chile e seu direito à saúde, os manifestantes colocaram à frente seu direito à saúde, a deles e a de outros. Essa não é a lógica que seguem Putin, seu subordinado Assad, nem tampouco Mohammed bin Zayed.
Quais serão os efeitos sociais e econômicos mais importantes da crise do coronavírus?
Depende dos países. Não parece que os sírios que emigraram para o noroeste do país vejam que sua situação tenha melhorado ou piorado. Também não parece que seja diferente no que diz respeito ao conjunto dos refugiados na Europa, ainda que, sim, parece que a violência infrafamiliar segue aumentando nos contextos de refúgio na Alemanha, segundo os dados que dispomos.
No Líbano, a crise do coronavírus reduziu a pressão sobre um governo oligárquico e corrupto que se manteve em pé em detrimento das economias dos libaneses. No Egito, os donos de projetos industriais estão inquietos diante da paralisação de suas fábricas e seus lucros e querem que a quarentena seja suspendida. A saúde dos trabalhadores não constitui para eles uma prioridade. Em grandes traços, os setores mais frágeis – os pobres, as mulheres e os migrantes – pagam o preço mais alto, quando a situação é ruim (...).
No entanto, nessa crise, chama a atenção que o sofrimento dos países ricos e fortes é maior que o dos países mais frágeis e pobres, assim como a facilidade em que as pessoas sucumbiram ao pânico na Europa, em comparação com outros lugares (...).
A Covid-19 não é a causa da crise, mas o elemento que a manifestou. O mundo se mostrou, especialmente nos países ricos e poderosos, incapaz de lidar com uma crise sanitária que não é o fator mais perigoso enfrentado pelo mundo. Os problemas relacionados ao clima e o racismo são muito mais perigosos e ambos nascem da estrutura econômico-política mundial dos países mais ricos e fortes, que se revelam hoje como os mais conservadores e reacionários à mudança, ainda que isso acarrete mais riscos para a Humanidade e a vida.
Considera que significa o fim do sistema neoliberal como o conhecemos? O capitalismo se reformará para sobreviver?
Não posso prever o que acontecerá, e não consigo ver elementos que convidem ao otimismo. Minha confiança está dirigida, e isso me dá certa esperança, não a como os Estados estão abordando a crise, mas a que as mudanças aconteceram nas ideias, na organização, na ação e na imaginação, derivadas da interação de milhares de milhões de pessoas com esta crise.
O mundo se encontra em uma crise de perda de rumo e ausência de alternativas, como uma prisão em um presente perpétuo que na Síria conhecemos bem, durante meio século de governo Assad. A prisão gera carcereiros do estilo de Trump, Putin, Johnson, Xi Jinping, Al-Sisi, Mohammed bin Salman e Mohammed bin Zayed... Em um mundo saudável, o lugar em que esses senhores deveriam estar seria sendo julgados em uma gaiola de ferro e não liderando países em que vivem milhares de milhões de pessoas.
O surgimento de movimentos e novos ideais provocará um ponto de inflexão político e ético que necessitamos para nos salvar. Junto com muitos observadores e população local, acredito que, se mais da metade do mundo pôde se obrigar a pegar algumas férias, durante dois ou três meses, nada deve impedir a mudança nos sistemas organizativos, trabalhistas, econômicos e epidemiológicos. A crise demonstrou que a condição de falta de alternativas não é inevitável, mas que se trata de uma preferência dos servos dos dogmas de crescimento econômico, seja no modelo chinês ou no capitalista ocidental.
A ONU, a OMS e a União Europeia não foram capazes de dar uma resposta conjunta. Concorda com a opinião de que estamos diante de um declínio do sistema multilateral?
Muito mais, receio que caminhamos para um mundo que é menos mundo... ou para o isolamento e uma maior fragmentação. O que hoje estamos presenciando é o surgimento de entidades políticas fechadas, unidades políticas com muros de proteção que se abrem e fecham, ou o que Wendy Brown denominou como “estados murados”. O muro de Trump com o México, e prévia e simultaneamente o muro do apartheid israelense, constituem os símbolos mais destacados de um mundo com múltiplos muros.
Esse é um exemplo de pluralidade sem mundo e de soberania baseada na exceção, e que talvez crie as exceções que o revestem de legitimidade, algo que na Síria conhecemos bem. Esta trajetória não é inevitável, mas a forma como se está lidando com o coronavírus segue tal modelo nacionalista soberano que não vejo como capaz de se perpetuar. Temo que se prolongue o prazo de vacilação entre esse modelo e o retorno ao curso natural das coisas ou a lógica do “aqui não acontece nada”, por causa da falta de visões mais claras de alternativas viáveis.
A potencial paralisia que procederia disso é mais perigosa que a situação em que nos encontramos atualmente. Tal perigo será mais visível conforme formos nos aproximando do final da crise do coronavírus e nos encontrarmos diante do vazio. A hora da verdade está próxima e pode ser que não haja nada depois dela, exceto o vazio, que é bom apenas para os senhores que governam sociedades sem rumo.
Em crises precedentes, foram os Estados Unidos e os países europeus que lideraram a resposta. Agora, os árabes, mas também os europeus, pediram ajuda à China. Estamos diante do início de uma nova ordem geoestratégica?
Muito mais, penso que muitos, no ambiente árabe e no Ocidente, mas também na própria China, tendem a um modelo chinês de soberania sem política e de desenvolvimento econômico sem direitos sociais, porque não possuem outro. Mas isso é perigoso. (...), se parece com o capitalismo do século XIX, na Grã-Bretanha, conforme o definiu Marx, em O Capital. Compartilho com muitos a visão de um mundo sem privilégios para o Ocidente, mas não de um mundo que aumente o desenvolvimento capitalista pelas mãos de um único patrão que seja o Estado.
A necessidade de controlar a pandemia facilitou a aplicação de novas tecnologias que permitem um maior controle social dos cidadãos. A democracia e os direitos individuais estão em perigo?
Claro. Se levamos em conta que os sistemas de controle e vigilância nos aeroportos, impostos após o 11 de setembro de 2001, seguem vigentes, ainda que parecessem excepcionais em seu momento, os efeitos que as tecnologias de controle sobre a pandemia do coronavírus podem ter, poderão se prolongar. As pessoas tendem a obedecer aos governos em situações de perigo e as sociedades temerosas e fechadas em si mesmas são mais fáceis de governar. Por que os governos não inventariam perigos, uma vez que eles próprios foram, ao longo da história, o maior perigo para a liberdade humana, quando não resistidos de forma consciente?
(...) Talvez, o atual distanciamento social se torne o modelo a ser seguido nas relações das sociedades. (...) (e sua) consolidação (...) será prejudicial para o conceito de cidadania e de democracia, mas facilitará o governo daqueles que estiverem melhor posicionados, quando o medo se expandir.
A luta contra o coronavírus supôs uma redução importante dos recursos econômicos e humanos destinados à ajuda internacional. Como isto afeta a crise dos refugiados?
Já antes, os recursos destinados aos refugiados não eram algo relevante e qualquer aumento dos fundos designados para isso era canalizado pelo regime, sem que nada chegasse aos verdadeiros prejudicados. A ideia dos auxílios, em sua origem, tem como objeto tratar os efeitos das guerras das oligarquias e evitar que o sistema internacional caia, mas de modo algum são para que os prejudicados (...) possam se manter de pé e lutar por seus direitos. Nos contextos de refúgio na Turquia e na Europa, os sentimentos de xenofobia aumentam e se voltam especialmente contra os refugiados.
Até o momento, que eu saiba, não houve fatos a lamentar, mas os espaços compartilhados entre os que chegam e a população local se tornam cada vez mais estreitos, de uma forma que excede à média geral dos espaços compartilhados, em minha opinião.
(...) Em sua maioria, os refugiados se encontram no limite da vulnerabilidade e a falta de direitos, e também no esquecimento, pois o mundo todo está hoje preocupado com sua própria situação. O problema é que esta posição extrema pode acabar abarcando os desempregados, os empobrecidos, os doentes e os anciãos. Além disso, existe o denominado refúgio climático, de ritmo mais lento, mas que não deixa de desafiar radicalmente os modelos de desenvolvimento e “o controle da natureza” atuais. Nada disso é novo, tudo precede à crise do coronavírus. De fato, a crise sanitária mundial parece mascarar com sua feiura um panorama já em si muito desagradável.
Que elementos positivos podem ser extraídos da situação atual?
Como disse anteriormente, o momento mais perigoso não é quando a epidemia está em seu ponto alto, mas quando retroceder e vier o momento de relaxamento, que será quando veremos que não temos nada a fazer, exceto voltar ao anterior ou responder ao chamado chinês que é elogiado por todas as partes, ou então combinar as duas coisas.
O que pode resultar positivo é o vínculo estabelecido por muitos entre o problema de saúde e o climático, e acredito que existe um terceiro problema, que deve ser relacionado com os outros dois, que é o composto racismo-guerra contra o terrorismo, que levou à securitização da política e ao despojamento da economia de seu caráter político. Ambos se complementam, em minha opinião, no sentido de que o que deve depender da política – a segurança – passa a dominá-la, e o que deve ser político – a economia – deixa de ser.
Depois de trabalhar pela inclusão das classes mais baixas, em um momento em que a economia era política, passou-se a excluir os migrantes e refugiados e a vigiá-los em um tempo em que a política se tornou securitária. Isto é acompanhado pela expansão do racismo e o retorno da tortura e o enfraquecimento da democracia em todas as partes, seja mediante a expansão das práticas de censura, controle e detenção arbitrária, ou por meio da degradação da dimensão social da democracia.
A vinculação entre esses três grandes problemas será a base para uma imaginação política diferente e novos movimentos sociais e políticos, que espero que comecem a surgir já. Quando o coronavírus começar sua retirada, será o momento de um começo diferente.
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“Receio que caminhamos para um mundo que é menos mundo”. Entrevista com Yassin al-Haj Saleh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU