A partir de pontos levantados por espectadores de sua palestra no IHU, teólogo reitera que precisamos compreender que o mal não é de Deus e, portanto, é finito e capaz de ser vencido
Num Brasil que chega a 300 mil mortos por um vírus que parece materializar todo mal do mundo, tendemos a ser levados por uma desesperança que questiona: por que, meu Deus? O teólogo Andrés Torres Queiruga defende que é preciso acreditar que Deus não é o mundo, que ele cria o mundo e no mundo o mal se perfaz. “E precisamos acreditar que Deus cria o mundo apesar de todo o mal”, completa, durante sua conferência, realizada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, intitulada “O mistério pascal e a resposta cristã à questão do mal e do sofrimento (uma abordagem na perspectiva da teologia trinitária do sofrimento de Deus)”. A atividade compõe o ciclo de debates da Páscoa IHU 2021 “A questão do mal e do sofrimento no mundo [pós] pandêmico à luz do mistério pascal”.
Durante toda sua reflexão, Queiruga insiste que não podemos cair no maniqueísmo que falseia nossa relação com Deus. “Quando nos vemos diante do mal, do coronavírus, por exemplo, pedimos para que Deus acabe com esse mal. Supomos que pode acabar, mas não pode. Afinal, se Deus é amor e há mal no mundo, isso não pode vir de Deus”, reflete. Para superar esse maniqueísmo, sugere que pensemos que Deus está conosco no mundo apesar do mal. “Vejam, novamente no exemplo do novo coronavírus, se pensarmos que Deus poderia evitar a doença, por que não o faz? Isso nos leva, na verdade, a um falso problema”, observa. Para ele, é preciso que entendamos de onde vem o mal. “O mal é do mundo, é da finitude do mundo. Logo, é um produto inevitável da finitude”, diz.
A conferência do professor, que pode ser conferida na íntegra no vídeo abaixo, provocou inúmeras reações e questionamentos dos espectadores, o que permitiu que ele aprofundasse e exemplificasse de forma prática sua tese. Segundo ele, é compreendendo melhor o Deus humano na figura de Jesus que podemos entender como superar esse mal que é finito, através do amor de Deus, Aba, Pai, que é infinito em seu amor. Por isso, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU selecionou as principais questões e as reproduz aqui em forma de entrevista.
Vale, ainda, destacar que a Páscoa IHU 2021, “A questão do mal e do sofrimento no mundo [pós] pandêmico à luz do mistério pascal”, ainda contou com as conferências do Prof. Dr. Cesar Kuzma, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ, e do Prof. Dr. Carlos Mendonza Álvares, do Boston College, dos Estados Unidos (os vídeos de ambas as conferências estão abaixo da transcrição das respostas do professor Queiruga).
Andrés Torres Queiruga (Foto: Universidade de Santiago)
Andrés Torres Queiruga é teólogo e escritor. Galego, realizou estudos no seminário de Santiago de Compostela e na Universidade de Comillas. Foi professor de Teologia no Instituto Teolóxico compostelá e de Filosofia da Religião na Universidade de Santiago de Compostela e é membro da Real Academia Galega e do Consello da Cultura Galega. Também foi um dos fundadores e diretor da revista Encrucillada. Dos livros mais recentes publicados no Brasil, destacamos Repensar a revelação: a revelação divina na realização humana (São Paulo: Paulinas, 2010), O que queremos dizer quando dizemos inferno? (São Paulo: Paulus, 2008) e Esperança apesar do mal (São Paulo: Paulinas, 2007).
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 01-04-2021.
Qual o lugar, a função que a oração pode ocupar na nossa vida, especialmente a partir desse tempo de confronto com o mal em tempos de pandemia?
Andrés Torres Queiruga – Na oração é onde nós estamos realmente jogando com a nossa imagem de Deus. Se acredito no Deus de Jesus, creio que Deus é Aba, e mesmo antes que peçamos algo, Deus já sabe do que precisamos. Pensemos que esse momento, em que Jesus se dirige a Aba, é o único em que Jesus fala da oração de maneira crítica. Ele falava naturalmente, era um grande orador, mas possivelmente alguma vez pediria, porque isso era o que havia nas orações que ele aprendeu. Afinal, Jesus aprendeu muitas orações de petições.
O interessante é que quando perguntam para ele como orar, diz que não é para que falemos muito como se estivéssemos convencendo a Deus. É preciso ter clareza de que, antes que peçamos, Deus sabe o que queremos. Jesus está convidando a termos uma confiança absoluta no Pai. Estamos envoltos num amor de um Pai que está nos criando por amor, que não faz outra coisa senão amar. Deus não sabe, não quer e não pode fazer mais do que amar porque o seu ser consiste nessa razão. Portanto, se oro a Deus, e a oração é fundamental, pois estamos nos colocando diante de Deus, é importante captar essas coisas, porque a vida nos distrai.
Se me coloco em silêncio e penso que estou com Deus, ele me habitará. Deus está agindo para que meu ser se realize em plenitude, e a oração tem um peso imenso, por isso é imprescindível. É como a terra que está cultivando nossa vida. O que preciso fazer ao orar é dizer coisas que realmente respondam a essa relação. Se estou convencido de que Deus me ama, que está criando e habitando todo meu ser, o que devo dizer é: “Senhor, quero tomar consciência de que está me ajudando e de que, se sinto necessidade, estarás comigo”. Se me preocupo porque há crianças que estão sofrendo de fome ou gente padecendo com coronavírus, e eu sinto compaixão, é preciso dizer: “Senhor, esta compaixão está suscitada no meu coração, portanto, quero acolher essa compaixão, quero colaborar contigo”.
No momento em que convertemos a oração numa petição, estamos transformando totalmente a relação, porque nesse momento sou uma pessoa boa e compreensiva que quer convencer a Deus de que ele também é bom e compreensivo. Quando digo “Senhor, tem compaixão de quem está sofrendo”, no meu inconsciente está a mensagem de que Deus não tem compaixão e que eu preciso convencê-lo disso. Repensemos e percebamos a maravilha que é quando pensamos diferente, que Deus está dentro de nosso coração, está criando todos nós por sentimento.
Tudo de bom que busco para os demais, toda a minha compaixão, todo meu desejo de servir é suscitado por Deus. E tudo que tenho de fazer é acolher a Deus, deixar-me ser por Deus. De fato, Santo Agostinho e São Tomás, e outros teólogos, já captaram isso quando diziam que quando pedimos não queremos convencer a Deus, mas convencer a nós mesmos. Então, assumamos esta postura: se não quero convencer a Deus e sim a mim mesmo, terei de dizer: “Senhor, quero me convencer de que Tu estás me ajudando, quero convencer-me de que Tu estás conosco lutando contra o vírus”. Essa é a grande verdade da oração, porque acredito que a oração é fundamento, mas se nós aprendemos em petição e não acolhendo a vontade de Deus, invertemos esse sentido.
E quando invertemos esse sentido, agimos de forma maniqueísta. Se concebo um Deus que é fruto de maniqueísmo em nosso inconsciente, a maneira de eliminar essa falsa ideia de Deus é justamente mudar a nós mesmos e nossa oração, olhando sempre Deus como aquele que está olhando com amor. O olhar de Deus é criar e dar-me a servir.
Se concebo um Deus que é fruto de maniqueísmo em nosso inconsciente, a maneira de eliminar essa falsa ideia de Deus é justamente mudar a nós mesmos e nossa oração – Andrés Torres Queiruga
Existe uma possibilidade de o mal ser cultural? Ou seja, um mal interpretado, móvel conforme os tempos, povos, culturas que perpassam o tempo? Ou existe um nexo causal universal quanto ao mal?
Andrés Torres Queiruga – Há quem diga que o mal não existe, que é uma interpretação. Mas é evidente que o mal existe de formas aparentes. Penso que em uma operação cirúrgica que vai curar um mal, estou agindo contra ele, embora fosse interessante que não existisse esse mal para não haver a necessidade de cirurgia. Mas fora disso, o mal não é absoluto, porque nós somos finitos e o mal não é infinito, mas vencível. No entanto, ainda assim, o mal é uma realidade tremenda.
Veja que o grande expoente do mal é o sofrimento, justamente aquilo que não queremos. Dizer que sofrimento é uma interpretação cultural, embora os povos possam ter distintas posturas diante dele, não é possível, porque o sofrimento é o mal e por isso queremos evitá-lo. E se uma pessoa tem uma dor, toma um remédio, se está agora com o vírus, queremos imediatamente eliminar esse vírus. Portanto, o mal tem algo de inquestionável e é preciso compreender isso.
Podemos interpretar certas coisas que podem parecer o mal, mas não são. Ainda assim, é preciso ter consciência de que o mal é algo terrível, é justamente o problema de hoje. Por isso é tão importante compreender que se o mal fosse evitável teríamos que ser ateus, não poderíamos acreditar em Deus.
Pensemos, por exemplo, no crescimento humano. Não se pode crescer sem se educar, temos que renunciar a certas coisas e responder a certas regras. Por isso, a educação feita com amor pelos pais também conforta a dor. Para o crescimento, precisamos abandonar a infância, que tem coisas bonitas, mas temos que a deixar ou nos colocar de pé, como gosto de dizer. Ficar de pé foi seguramente o grande passo da evolução da humanidade, pois o cérebro se desenvolveu e tivemos as mãos liberadas, mas todos sofremos de problemas e dores na coluna, porque não há qualquer transformação sem suas consequências. O mal é uma das consequências do humano.
Assim, o mal é realmente um problema humano e por isso inventei uma palavra, ‘ponerologia’, pois quando filosoficamente entendemos que o mal é inevitável, toda pessoa, por ser pessoa e não por ser religiosa, tem de enfrentar o mal. E de tal maneira que precisamos ter respostas ao mal, e a religião é uma resposta ao mal. Quando um cristão pensa que Jesus teve de afrontar o terrível mal da crucificação, teve de ser condenado pela sua autoridade religiosa, pela sua postura política, está aparecendo um mal aí, um mal terrível. No entanto, ele encontrou ali uma solução para que confiasse em Deus, na ideia de que o mal é terrível mas não é absoluto.
Isso porque se está, apesar de tudo, envolto em Deus, que é capaz de nos libertar em definitivo do mal. Por isso, ainda que a morte nos destrua, o mal não nos destrói porque existe a ressurreição e estamos acolhidos e salvos em Deus. Isso é uma resposta. E, provavelmente, um ateu terá uma outra resposta ao problema do mal. Então, o que temos de fazer é comparar e dialogar sobre isso: que resposta é mais verdadeira? Que resposta nos ajuda a dar um sentido à nossa vida, apesar do mal?
Gosto sempre de dizer: temos esperança, apesar do mal. O mal é terrível para todos, para crentes e ateus, o que acontece é que a vida humana, em grande parte, consiste em ver como afrontar o problema do mal. Que resposta vital e prática devemos dar ao mal? No cristianismo, e penso que em todas as religiões, o mal não é o último, porque toda a religião é, de alguma maneira, uma religião de salvação; nenhuma religião, nem o budismo, mesmo que fale do nirvana, o que busca no fundo é a libertação.
É pensar que a morte não acaba conosco, que a morte não é um mal absoluto que aniquila com nossa pessoa. Por isso, as maneiras de conceber a salvação podem ser muito distintas, mas todas pensam que há uma forma de se libertar do mal apoiado em Deus. E essa é uma resposta religiosa para o problema do mal.
Obviamente, o ateu também dá uma resposta e eu respeito a resposta dele, mas gostaria que ele me explicasse como alcança esse sentido em sua vida. Imagine que hoje mesmo, com toda essa questão do coronavírus, ele entende que vai morrer sozinho. Que sentido dá a sua vida diante desse problema? É a grande pergunta que se fazia Walter Benjamin sobre o “sentido da história”. Todas as vítimas, milhões de vítimas que morrem crucificadas na história, assassinadas e sem esperança humana de nenhum tipo, têm um sentido em suas histórias de vida.
Então, a conclusão é que seria necessária uma resposta teológica. Se há alguém que é capaz de recuperar as vítimas e por isso a resposta religiosa vai justamente nesse sentido. Compreendo que isso implica acreditar em Deus, descobrir Deus como amor e não como alguém que condena.
Em uma entrevista sua, publicada pelo IHU, o senhor fala em rupturas da humanidade. Quais dessas rupturas foram fundamentais na reflexão sobre o mal?
Andrés Torres Queiruga – A fundamental ruptura acerca do mal foi a entrada da Modernidade e o fato de se repensar, concebendo que no mundo tudo que acontece está cheio de deuses e isso inclusive para os crentes. Afinal, antes acreditavam que tudo que acontecia era algo que Deus mandava e, agora, tudo isso passa para uma cultura de que o mundo funciona por si mesmo.
O mundo funciona por leis intrínsecas e até mesmo nós que acreditamos na criação sustentamos e acreditamos que Deus cria o que é distinto de si mesmo, e se cria o que é distinto de si mesmo é para que isso realize a sua existência. Veja uma existência livre e pessoal como a nossa. Se Deus nos cria livres, então quer que vivamos a nossa liberdade. Não pode nos fazer livres e depois querer que vivamos sem essa liberdade, pois assim estaria se contradizendo.
E se Deus cria uma realidade física, que tem leis físicas e que regulam o seu funcionamento, Deus acredita nelas e tem que respeitar essas leis. Do contrário, teria de anular a criação. Se cada vez que uma lei física tropeça em outra, Deus tivesse que a eliminar para que não houvesse esses choques, teria de imediatamente desfazer o mundo. Seria um “superman” infinito em que toda vez que tivesse um problema o solucionaria, mas com isso teria que eliminar ou anular o mundo.
Isso foi o que, por um lado, obrigou a levar o problema do mal a sério sob a figura de Deus, porque criou a possibilidade do ateísmo, de dizer que Deus não existe. Mas também é verdade que foi essa autonomia do mundo, a qual o Concílio Vaticano II proclamou, que nos permite enfrentar o mal de uma maneira nova porque, justamente, se o mundo é autônomo e produz o mal – assim como o bem, não estou dizendo que mundo é só o mal – Deus também tem que respeitar isso.
E respeitar no sentido de deixar que a realidade funcione. No entanto, Deus está conosco para que quando a realidade funcione mal, na medida em que podemos solucioná-la e agir sobre ela, possamos estar melhorando o mundo. A parábola do samaritano, que o Papa usa tanto e da qual também gosto muito, é bem clara.
Ali há alguém que está sangrando na beira do caminho. Segundo as leis do mundo, essa pessoa vai morrer, porque são leis humanas, ela está sofrendo na sua biologia, na sua fisiologia. Mesmo que Deus tenha criado isso e esteja dentro de nós, ele precisa respeitar essa possibilidade. E se não passa ninguém por ali, essa pessoa vai mesmo morrer. De repente, aparece uma pessoa e Deus vê que existe alguém que pode ajudar, que pode melhorar o mundo. Deus está trabalhando naquele que vai pelo caminho e através de seu coração está dizendo: “ajuda esse irmão”. E assim está tentando melhorar o mundo, está lutando contra o mal.
Deus não mandou os ladrões que fizeram aquilo ao sofredor, não mandou o sofrimento e a sangria da qual a pessoa está padecendo, mas está com ela e a apoiando. E, além disso, quando aparece alguém, anima esse coração para que colabore com Deus para solucionar o mal no mundo. Se nós não colaborarmos com Deus, o mal segue. A grande sorte é que podemos continuamente estar fazendo milagres, pois os únicos milagres que existem são os da liberdade, quando acolhendo a Deus, transformamos as leis do mundo para que este mundo funcione de forma melhor.
Isso foi uma intuição que tive justamente num momento em que falava a enfermeiros e enfermeiras. Dizia a eles que cada vez que nós, seguindo o impulso de nosso coração, ajudamos um enfermo, estamos literalmente fazendo um milagre. Isso porque estamos transformando as leis físicas do mundo em nossa pessoa que, apoiados no amor de Deus, realizamos o milagre de melhorar o mundo.
Isso é imensamente consolador e ao mesmo tempo também de enorme responsabilidade, pois temos a sorte de estar melhorando o mundo, convertendo nossa vida num verdadeiro milagre. Cada vez que pedimos conforme o amor e estamos ajudando os outros, estamos realizando milagres. Também é verdade que toda a vez que rompemos a dinâmica posta por Deus dentro de nós para o bem e a convertemos em expropriação do outro, em não querer ajudar, estamos expropriando o mundo.
Por isso a aventura de Deus no mundo – voltando ao problema do mal – foi criar o mundo e se o criava tinha que ser finito e, portanto, tendo que conter nele o bem e o mal. Mas é preciso que se compreenda que Deus estará sempre conosco contra o mal.
Quanto à oração de confiança de Jesus no Horto das Oliveiras, apresentada em Marcos 14:36, em que reza “Aba, tu sabes tudo”, essa pode ser uma oração de um ser finito na plenitude da consciência de quem pode ser Aba?
Andrés Torres Queiruga – Esse é um tema muito importante, que está no último livro que publiquei. Eu analiso essa oração porque é uma oração extraordinária na qual Jesus dá a sua medida. Mas precisamos levar em conta que é uma oração teológica, posta pelos evangelistas na boca de Jesus. Para entender isso, temos de ler o Evangelho. Jesus está só, não tem mais ninguém que o acompanhe naquele momento, está longe dos demais. Ele estava orando sozinho e os que o acompanhavam estavam dormindo, portanto ninguém escutou a oração de Jesus.
É uma oração teológica, mas muito profunda porque é escrita por gente que amava Jesus, por gente que conhecia a imagem de Deus que morreu Jesus, que esteve sempre na volta dele e isso é que a faz uma oração maravilhosa. No entanto, essa oração é expressa em palavras de seu tempo. A primeira parte, por exemplo, “Pai, tu podes tudo”, é verdade, claro que Deus pode tudo. Mas se digo que Deus pode fazer um círculo quadrado, isso é possível? Não, pois não estou dizendo nada. Deus pode fazer tudo que tem um sentido. Não podemos pensar que Deus pode construir o mundo e logo o desfazer, não pode fazer o mundo e toda vez que apareça uma doença, a curar, cada vez que ocorra um acidente, livrar as pessoas do perigo.
Portanto, está claro que Deus pode tudo, está claro que Jesus diga “tudo que é possível”, mas tudo que é realmente possível. E assim se coloca ao lado toda a disponibilidade. Se fosse possível, claro que não existiria o coronavírus no mundo, se fosse possível não haveria nenhuma criança chorando, porque Deus está só ajudando. Agora, quando não é possível é o momento em que Jesus nos dá a solução: é a ideia de “eu confio em ti”. “Aconteça o que acontecer, sei que o mal não vem de ti, mas sei que me apoia e que minha vida, apesar de tudo, tem um sentido”. É por isso que a Oração do Horto é algo que sempre comove a todos, porque realmente impressiona como, diante da angústia, de algo terrível, apesar de tudo, Jesus confia no Pai.
Por isso recupero São Paulo, no final da Epístola aos Romanos: “passe o que passar, nada pode nos separar do amor que Deus nos tem”. Nós podemos falhar, haverá até algum teólogo que diga que Jesus poderia ter morrido desesperado. Eu creio que isso vai contra tudo aquilo que conhecemos de Jesus. Acho que Jesus morre confiando e podendo amar a Deus. Ele pensa: “eu confio no Pai e sei que isso, de alguma maneira, tem solução”.
Poderá haver algum outro momento em que pela fé a pessoa se comova, mas se olharmos para Jesus e pensarmos que foi capaz de confiar Nele, apesar de tudo, e morreu nos braços de Deus, então, também eu posso confiar em Deus. E por isso eu repito que quando se teologiza excessivamente a morte de Jesus, com visões estranhas, como se fosse uma morte especial e que estava pela ponta de seu espírito vendo Deus e por isso não sofria, considero que são más teologias.
Jesus sofreu horrivelmente na cruz e graças a isso teve de conquistar a confiança e aprender essa lição do Pai. Graças a ele temos a lição fácil porque nos ensinou e agora sabemos que a morte, por mais terrível que seja, não é nunca uma maldição de Deus, e sim a segurança de que Deus está conosco contra essa morte, esse mal, e contra esse sofrimento.
O sofrimento e a dor vividos pela população negra ao longo da história e até hoje são atribuídos a causas históricas, materiais e políticas. Não seria melhor historicizar o mal considerando essa realidade?
Andrés Torres Queiruga – Isso nos leva ao tema da liberdade e a liberdade também é finita. O mal é um produto da finitude, Deus não tem mal porque Deus é infinito. Nós o esperamos na comunhão e transcendendo com ele e a finitude histórica também estaremos livres do mal, porque estaremos identificados com Deus. Mas na história há finitude, essa finitude é física. A cosmogênese em movimento no mundo não se pode fazer sem catástrofes. A biologia, que também é distinta, é também finita, portanto uma pessoa não pode crescer sem sofrimento, não pode pensar que sua saúde será sempre perfeita, pois é sabido que vai morrer. Por tudo isso a vida também é finita e pode sofrer desse mal.
A nossa liberdade humana, que é uma maravilha de liberdade, por ser finita no momento em que segue todo impulso de Deus, está criando o bem, melhorando o mundo. Quando a liberdade finita cede ao instinto, cede ao egoísmo e não é capaz de seguir o bem, produz o mal. E nesse sentido há um mal histórico. O mal histórico é produzido por liberdades finitas que não seguem realmente o impulso divino.
Quando a liberdade finita cede ao instinto, cede ao egoísmo e não é capaz de seguir o bem, produz o mal – Andrés Torres Queiruga.
Isso fica bem claro na Bíblia, um livro que no fundo está construído em grande parte numa lógica que se coloca contra o mal histórico. Possivelmente a raiz literária de construção da Bíblia, e também a construção teológica, é compreender que Deus não quer a opressão de umas pessoas pelas outras, que está ao lado das vítimas e, portanto, está nos dizendo “se querem ser meus filhos, se querem acolher todo meu impulso, têm que procurar fazer o bem e não prejudicar ninguém, não fazer injustiça”. E toda a Bíblia é um grito de Deus em favor da Justiça contra o mal histórico desde o começo. Jesus também dedica toda a sua vida a lutar contra a doença e, sobretudo, lutar contra a discriminação, a marginalização.
Tudo isso é realmente o aspecto histórico do mal, mas a raiz não é um Deus mau e sim o contrário. Deus está sempre lutando e ajudando o nosso ser na direção do bem, mas a liberdade humana produz o mal. E o mal histórico é produto da liberdade humana que tem consequências terríveis, mas as liberdades humanas postas a fazer o bem constroem hospitais, produzem ajuda e grandes libertações.
E, depois, não podemos tampouco desprezar o mal físico, pois a doença é um mal físico, é a existência de vírus no mundo, de cancros e tudo mais que causa sofrimento terrível.
O sofrimento de Jesus pode ser entendido como resposta necessária para expurgar o mal?
Andrés Torres Queiruga – Foi necessário o sofrimento de Jesus, porque ele não sofreu nada que não fosse humano. Foi necessário como é necessário para nós. Se Jesus era um ser humano, que nasce dentro de nossa história e é humano como nós e seu mistério se revela também como o nosso mistério, é evidente que não seria humano se não sofresse. O sofrimento de Jesus é produto de sua humanidade como o meu sofrimento e o de qualquer outro. Portanto, se Jesus não sofresse, não seria revelador, não seria o nosso salvador.
Se interpretamos de outra maneira, como se Deus realmente pudesse enfrentar esse sofrimento, mas que ainda assim quisesse que Jesus sofresse, seria um disparate. O sofrimento foi um produto também da maldade e dos equívocos humanos. “Perdão, porque eles não sabem o que fazem”, disse Jesus. A liberdade é transformada em mal às vezes por malícia, mas também por ignorância.
Portanto, é preciso ter clareza: o sofrimento de Jesus foi produto de um mau uso da liberdade humana. Graças a seu padecimento, também nós podemos viver esse grande problema do sofrimento divino na confiança em Deus.
Há toda uma retórica em torno da Teologia da Cruz com uma contradição de fundo, mas que alimenta muitas espiritualidades e quase toda a vivência cristã em nossas comunidades. O que dizer sobre isso?
Andrés Torres Queiruga – Diria que toda essa retórica que se faz em torno da Cruz, da ressurreição como um grande drama entre Jesus e nós, é muito perigosa. E justamente porque parece que engrandece, mas na verdade apequena Jesus. A sua grandeza está justamente em ser de nossa carne e de nosso sangue e ter enfrentado um problema terrível, pois é questionado pelos sacerdotes, os seus próprios discípulos não o compreendiam, um apóstolo o trai, as autoridades o condenam, e ele morre abandonado por todos, e está ali com seu ser, sua liberdade finita. Com sua confiança no Pai é que foi capaz de enfrentar isso e nos ensinar que se pode afrontar tudo isso na confiança de Deus, sabendo que apesar de todas as aparências Deus está conosco e se pode manter sua mensagem de entrega e, portanto, está dizendo que nós também podemos fazer isso.
Veja como está aí a autêntica grandeza. Do contrário, se Jesus tivesse sido capaz de enfrentar toda pressão porque sabia o que viria, que já estava vendo o Pai amenizando sua dor, seria como muitos dizem: “ah, assim qualquer um pode sofrer”. Jesus sofreu justamente como nós e isso é sua grandeza, que ao romper seus últimos limites e as últimas dúvidas, ainda confia em Deus plenamente. E aí está também a divindade de Jesus, pois na medida que a humanidade vai vivendo as revelações divinas, Jesus vai aprendendo com tudo isso, porque ele aprendeu com os pais, com os salmos, na comunidade, e culminou em conceber que Deus, Aba, é amor infinito e que perdoa incondicionalmente. Cada vez que se quer falar de Jesus como uma humanidade distinta da nossa, estamos apequenando Jesus.
Podemos pensar que Jesus não teve uma visão teórica de tudo, porque não teve tempo e morreu com cerca de 30 anos. Assim, uma visão do todo da religião teve mais tarde São Paulo, que foi percebendo que o mistério da salvação é para todos. Sim, São Paulo formulou isso, mas em Jesus e na sua experiência é que se pode apreender essa universalidade. Por isso não há o que fazer se não se compreender um pouco melhor Jesus, que creio é o que estamos fazendo aqui.
Nesse sentido, Jesus introduziu na história humana que, do ponto vista religioso, ele é insuperável dentro da história. Porque nós sabemos mais teologia do que Agostinho e Tomás de Aquino, sem dúvida, pois somos todos modernos, mas não temos melhor fé em Jesus. Podemos até ter melhor teologia, mas não melhor fé. O que ele nos revela pode ser melhorado no que diz respeito à compreensão teológica, adaptando ao nosso tempo, mas no fundo estaremos repetindo o que Jesus nos disse: que Deus é Aba, Deus é amor e se traduz em perdão incondicional, que se traduz em amor aos demais, que passe o que passem, Deus não os abandona. Creio que nesse momento, estou professando minha fé na dignidade de Jesus. Isso é a divindade de Jesus.
Em Jesus, tratamos de descobrir o que Deus tentava nos dizer desde sempre através da religião, da consciência humana. Creio que mesmo daqui a milhões de anos não teremos uma fé em Deus, uma visão tão íntima em Deus, melhor que a de Jesus.
Como, nesse contexto de sua reflexão, podemos compreender a oração de intercessão, sobre a qual o Papa Francisco insiste muito neste tempo?
Andrés Torres Queiruga – A intenção da oração de intercessão é boa, porque realmente ela reconhece que há gente passando mal e não sou indiferente, porque são meus irmãos e irmãs. A tradução é que é má, porque seria meter a política na relação com Deus. Se tento interceder ante Deus por alguém, quer dizer que quero bem a essa pessoa mais do que Deus, ou estou supondo que Deus não se preocupa com essa pessoa a tal ponto que preciso pedir que se preocupe com ela.
Apesar disso, digo que a intenção é boa porque o Papa Francisco, que é um pastor extraordinário, quer realmente dizer que não podemos ser indiferentes ao sofrimento dos demais, nem pensar que Deus não se preocupa com os demais. A oração de intercessão pode servir para alguém entender que Deus é bom, quer ajudar e se preocupa com as pessoas, mas é preciso repensar a formulação, porque é incorreta. Quando julgo as posições teológicas, não julgo as intenções, porque se for assim considero a oração de petição como uma blasfêmia.
Por isso, considero que quem ora “Deus, ajude essa criança que está com fome” é uma pessoa de coração bom, se solidariza com o outro e confia em Deus. O problema é mesmo a formulação. No momento que percebemos que essa linguagem é uma armadilha, temos a obrigação de mudá-la e não seguir ferindo a intimidade de Deus com palavras.