“A partir de Jesus, Deus não pode ser considerado ‘impotente’ ou ‘apático’ diante da realidade do mal, antes sofre junto na caminhada da vida”, diz o pastor batista
“Quando olhamos para a quantidade enorme de brasileiros que perderam suas vidas para a Covid-19, e os inúmeros males que o mundo e o nosso país estão enfrentando, nós, que temos fé em Deus e Jesus Cristo como Senhor, nos perguntamos: Deus, onde estás? Será que está ausente e não enxerga o nosso drama? Seria Deus indiferente ao nosso sofrimento? A resposta é não!”, assegura Alonso Gonçalves, pastor na Igreja Batista Central em Pariquera-Açu, São Paulo, porque “diante da dor e do sofrimento, Jesus nos convida a confiar nele”.
Neste final de semana, em que os cristãos relembram o calvário e o sofrimento de Jesus, depois que o Brasil superou a marca de 300 mil mortos pela pandemia de Covid-19, Alonso Gonçalves reflete sobre a experiência humana, feita pelo próprio Cristo, de entrega ao completo abandono de Deus na cruz. “A trajetória de Jesus começa quando ele quer ficar sozinho. Quando ele entende o que estaria por vir. Ele reúne seus amigos e vai para um lugar afastado para ficar somente ele e Deus, esse lugar chamava-se Getsêmani. A angústia e a dor tomam o coração de Jesus e a sua oração é contundente (Lc 22,44). Jesus sentiu o ‘abandono’ de Deus, o cálice não passou. O silêncio de Deus foi difícil de suportar. É aquele momento que sente a alma escura e a distância de Deus corrói por dentro. Os amigos de Jesus foram poupados de ver tamanho sofrimento. É por essa razão que algumas coisas acontecem e é só entre você e Deus e ninguém mais. Eles dormiram”, afirma.
Nesta entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Alonso Gonçalves também comenta a instrumentalização da fé e o flerte de padres e pastores com o poder e o fundamentalismo religioso, que afastam as igrejas de uma de suas missões: antecipar o reino de Deus “com uma postura que venha sempre favorecer a condição humana”. “A fé já está sendo instrumentalizada por pastores midiáticos que fazem o jogo do poder político. Pastores adeptos da teologia da prosperidade e da teologia do domínio fazem lobby a partir dos ‘votos dos evangélicos’ com o propósito de conquistar espaço e poder. Geralmente são pastores que movimentam quantias exorbitantes de dinheiro e possuem seus jatinhos particulares”. E acrescenta: “Sigamos com o Papa Francisco, ele tem sido um pastor em tempos de desesperança e um profeta diante do caos social e político que nos encontramos”.
Alonso Gonçalves (Foto: Arquivo pessoal)
Alonso Gonçalves é doutor e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, autor da tese “Por uma teologia protestante das religiões: uma proposta teológica latino-americana em diálogo com a visão trinitária de Jürgen Moltmann”, e graduado em Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais e Humanas do Centro de Ensino Superior do Brasil - ICSH/CESB e em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de Campinas - FTBC/FAETESP.
Pastor na Igreja Batista Central em Pariquera-Açu, SP, Gonçalves desenvolve assessoria bíblica e teológica em comunidades religiosas e encontros ecumênicos. Também atua como docente em Seminários e Faculdades de Teologia e integra os Grupos de Pesquisa “Espiritualidades Contemporâneas, Pluralidade Religiosa e Diálogo” - ANPTECRE/SOTER, “Religião e vida cotidiana: interpretações historiográficas e teológico-literárias” - UMESP e “Paul Tillich de Teologia e Cultura” - UMESP.
IHU On-Line - A humanidade vive um momento particular em função da pandemia de Covid-19, que tem não só evidenciado a fragilidade humana, mas também suscitado discussões sobre a presença do mal no mundo. Qual é, na sua interpretação, a melhor resposta cristã à questão do mal?
Alonso Gonçalves - O mal sempre foi (e é) um grande problema tanto para a filosofia quanto para a teologia. Epicuro já alertava para o grande dilema: “Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não quer tirá-lo; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom, e, além do mais, é impotente; se pode e quer – e esta é a única alternativa que, como Deus, lhe diz respeito – de onde vem, então, o mal real e por que não o elimina de uma vez por todas?”. Eis o dilema da teodiceia.
Com uma teologia comprometida com os paradigmas da modernidade (subjetividade, autonomia, racionalismo), lembro aqui de Andrés Torres Queiruga, que me ajuda muito a entender o mal a partir da teologia. Ele traça uma trilha teológica que passa por uma nova imagem de Deus, desvencilhando aquela velha maneira de ver um Deus rival do ser humano, daí a sua tese de que Deus se revela na realização humana e a verdadeira imagem de Deus é aquela que Jesus de Nazaré apresenta como o Abbá; uma profunda compreensão da criação, onde Deus não tem que vir ao mundo, porque já está desde sempre em sua raiz mais profunda e originária; não tem de intervir, pois é sua própria ação que está sustentando e promovendo tudo; não acode e intervém quando é chamado, porque é ele quem, desde sempre, está convocando e solicitando nossa colaboração.
Colocar o problema em Deus, alegando sua onipotência em contraste com sua bondade, trabalho que a teodiceia intentou, não é mais possível em um mundo secularizado. O mal nos afeta desde o nascimento, como dor física, opressão social, tragédias, guerras, catástrofes e desgraças. Portanto, Deus é absolvido disso. Para Torres Queiruga, o mal encontra sua origem não numa realidade exterior ao mundo, mas na limitação e na finitude do mundo. Devido a sua limitação, o mundo se apresenta como condição de possibilidade que torna inevitável a existência do mal. A finitude implica em imperfeição, e o que sofre de imperfeição é passível do mal, pois está em processo de construção. O mundo é em si bom, mas como não é perfeito e acabado, acaba sendo afetado pelo mal. O mal aparece então como uma realidade inevitável. Se existe mundo, a presença do mal é possível, pois em qualquer realidade finita e limitada o mal é uma possibilidade. Somente no ser que é Infinito e sem limitação, no caso Deus, é pensável a total ausência de mal.
Em pormenores, Deus está conosco contra o mal. Essa verdade é revelada em Jesus de Nazaré, que passou pelas consequências do mal na cruz. Em Jesus, Deus nos ajuda a suportar e superar o peso inevitável da existência. Em Jesus, Deus está do nosso lado, sofrendo conosco. Por ser amor infinito, se compadece, não abandona, mas coloca-se ao lado do humano dando esperança e alento em meio à dor. Em Jesus, Deus se coloca ao nosso lado contra o mal, sofre o mal e vence o mal. Daí que a partir de Jesus, Deus não pode ser considerado “impotente” ou “apático” diante da realidade do mal, antes sofre junto na caminhada da vida.
IHU On-Line - Na Semana Santa, os cristãos celebram e revivem a Paixão de Cristo e sua ressurreição. O que este momento da vida de Cristo nos ensina, especialmente em situações como esta que estamos vivendo, em meio à pandemia de Covid-19?
Alonso Gonçalves - A base da nossa fé, o sentido da nossa esperança, está na morte-ressurreição de Jesus. Mas antes desse dado fundamental da fé, é importante salientar o que levou Jesus para a cruz. Jesus foi alguém que viveu a sua vida para amar e amou os seus até o fim, foi pendurado num pedaço de madeira. Não queria, tentou evitar, mas não teve jeito. Vitimado por sua própria mensagem, o Reino de Deus.
Ele só queria que Deus fosse mais acessível e presente para o seu povo que aprendeu que Deus estava longe e não tão perto. Deus para Jesus não era um conceito, uma doutrina. A sua relação com Deus foi de profundidade, ao ponto de chamá-lo de Abbá, paizinho. Para quem ouvia isso era um absurdo, mas Jesus encurtou a distância que havia entre Deus e as pessoas.
Ele queria colocar vida naquele sistema religioso que oprimia o pobre e acentuava a condição social daqueles que se entendiam como “favorecidos de Deus”, principalmente os participantes do poder religioso. Em Jesus houve uma nova postura, uma nova maneira de ver Deus e experimentá-lo no cotidiano. Isso o levou para cruz.
Ainda na cruz, Jesus não irá pedir por vingança e muito menos solicitar que seus discípulos peguem em armas para tirá-lo da cruz. Isso porque quem está na cruz não é um miliciano, um governante ou um poderoso empresário. Está na cruz o Filho de Deus que amou e por amor se doou. Por essa razão, o ódio não está na cruz; a falta de amor não está na cruz; a falta de perdão não está na cruz. Está na cruz a compaixão, o amor, o perdão aos assassinos. Está na cruz um homem que viveu para a sua mensagem, o Reino de Deus, e morreu por ela.
É por isso que nesse tempo em que nos aproximamos das celebrações em torno da morte-ressurreição de Jesus, nos apeguemos naquele que sabe muito bem o que é sofrer. Mas o sofrimento trouxe a glória da ressurreição.
Com a força da ressurreição de Jesus, a base da nossa fé, o sentido da nossa esperança, podemos ter forças para enfrentar os opositores do Reino, assim como ele enfrentou. Aqui é o poder econômico que marginaliza todos os dias centenas de pessoas, principalmente em tempos de crise como esta que estamos presenciando estarrecidos com um número alarmante de mortes por Covid-19. Diante disso, a ressurreição de Jesus é uma saída, uma luz no fim do túnel. A ressurreição é Deus ressuscitando um torturado, um crucificado. Com isso Deus não somente expressa seu poder sobre a morte, mas também sobre a injustiça, a marginalidade. Diante da dor e do sofrimento, Jesus nos convida a confiar nele porque ele venceu a morte.
IHU On-Line - Na última entrevista que nos concedeu, o senhor disse que Deus, ao presenciar e participar do sofrimento, “é mais páthos que logos”. Pode desenvolver esta ideia?
Alonso Gonçalves - Dietrich Bonhoeffer tem uma frase que já me causou muito impacto. Ele disse: “Somente o Deus sofredor pode ajudar”. Essa frase foi dita quando ele estava preso, esperando a sua execução pelo regime de Hitler. É nesse sentido que concebo um Deus mais páthos que logos, ou seja, um Deus que participa da dor e do sofrimento e não está, necessariamente, pronto para dar respostas prontas para o drama humano. Esse Deus não é impassibilis, sem coração e sem compaixão. Antes, é um Deus essencialmente páthos, que sofre junto. A demonstração disso está em Jesus. O nazareno não deu explicação para uma série de questionamentos que temos. Ele não procurou saber a causa do sofrimento humano, apenas participou dele; ele não procurou entender a morte, apenas chorou pelo amigo que se foi, Lázaro; ele não fez nenhum tratado sobre o mal, apenas certificou-se de que ele está aí e aflige a nossa vida.
Moltmann irá dizer que “a dor de Deus revela-se na paixão e na morte de Jesus. É a dor do amor humano de Deus, que se revela na doação de Jesus”. Isso é mais páthos que logos.
IHU On-Line - Os evangelhos de Mateus e Marcos narram o grito de Jesus na cruz do seguinte modo: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. O evangelho de Lucas, de outro lado, destaca as seguintes palavras: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Como o senhor interpreta as palavras finais de Jesus? O que a entrega ao abandono completo de Deus significa e como essa entrega total ao abandono de Deus pode dar sentido à nossa vida, especialmente diante do sofrimento e da falta de esperança?
Alonso Gonçalves - Quando olhamos para a quantidade enorme de brasileiros que perderam suas vidas para a Covid-19, e os inúmeros males que o mundo e o nosso país estão enfrentando, nós, que temos fé em Deus e Jesus Cristo como Senhor, nos perguntamos: Deus, onde estás? Será que está ausente e não enxerga o nosso drama? Seria Deus indiferente ao nosso sofrimento? A resposta é não!
As nossas dores tocam o coração de Deus. Depois da Paixão de Jesus, Deus nunca mais ficou indiferente à nossa dor.
A trajetória de Jesus começa quando ele quer ficar sozinho. Quando ele entende o que estaria por vir. Ele reúne seus amigos e vai para um lugar afastado para ficar somente ele e Deus, esse lugar chamava-se Getsêmani. A angústia e a dor tomam o coração de Jesus e a sua oração é contundente (Lc 22,44).
Jesus sentiu o “abandono” de Deus, o cálice não passou. O silêncio de Deus foi difícil de suportar. É aquele momento que sente a alma escura e a distância de Deus corrói por dentro. Os amigos de Jesus foram poupados de ver tamanho sofrimento. É por essa razão que algumas coisas acontecem e é só entre você e Deus e ninguém mais. Eles dormiram.
O sofrimento no Getsêmani foi uma luta de Jesus com a experiência que ele tinha de Deus. A sua agonia foi entender como Deus age diante da dor. Com ele, aprendemos que o sofrimento não precisa nos afastar de Deus, ao contrário, percebemos que Deus está perto, sendo cúmplice da nossa dor. Com Jesus, aprendemos que Deus, ainda que no silêncio, acompanha a dor de uma gente que chora a perda de seus familiares e promete que um dia esse sofrimento todo irá acabar, que não haverá tristeza, dor e lágrimas (Ap 21,4).
IHU On-Line - Como a esperança da ressurreição se atualiza hoje?
Alonso Gonçalves - Em sua principal obra, Teologia da esperança, Jürgen Moltmann parte da ressurreição de Jesus Cristo, que se inicia a promessa e a abertura para o futuro. Ele entende que o futuro não se esgota com a ressurreição, mas antes confirma, antecipadamente, a promessa da glória e do senhorio do futuro reino de Deus.
A igreja, portanto, é chamada para mediar a presença de Cristo, que por sua vez medeia o futuro de Deus. Cabe à igreja ser construtora da realidade futura, e não apenas intérprete da história (como é visto nas concepções milenaristas). À igreja é dada a tarefa de esforçar-se para trazer o futuro para o presente. Para ela ser isso, fermento de vida, ela deve assimilar conscientemente de que é a antecipação, o sinal do reino de Deus. Jesus, com sua missão e ressurreição, trouxe o reino de Deus para a história, a igreja é a sua antecipação; portanto, é o povo do reino de Deus. A esperança do futuro reino de Deus é tarefa da igreja quando assume concretamente a sociedade em que está inserida dando um horizonte de esperança, justiça, vida e humanidade.
Para um povo em que a “esperança é a última que morre”, a igreja necessita vivenciar a antecipação do reino de Deus com uma postura que venha sempre favorecer a condição humana. Isso será possível com uma maior participação no processo político do país, onde, de fato, a igreja possa transmitir os fundamentos do reino de Deus: justiça para todos, amor como base dos relacionamentos, fraternidade para com o desvalido e compaixão com quem sofre para comer o fruto da terra. A este povo festeiro que consegue passar do soluço à gargalhada em minutos, a igreja da esperança traz uma mensagem de que um país melhor é possível. Onde a violência possa perder seu espaço para a solidariedade; onde a discriminação e o preconceito para com o índio e o negro possam dar lugar ao acolhimento e à igualdade. Aqui reside a atualização da ressurreição para hoje.
O desafio é urgente. Levar a igreja a ter uma consciência ética e responsável pelo seu contexto social; contar com o comprometimento de todos na missão ao mundo, tornando patente o seu plano de amor pelo mundo; incentivar o uso das vocações para a transformação da sociedade por meio dos valores do reino de Deus; procurar ser a sinalização da graça de Deus, pois ela é a consciência mais profunda do manifestar de Deus; tornar realidade, nela mesma, a presença amorosa de Deus por meio do cuidado fraterno; alimentar a fé de um mundo melhor por meio da esperança; celebrar a chave do futuro, a ressurreição de Cristo; ser uma igreja que consiga fazer uma leitura do seu contexto com o coração aberto. Dessa maneira, ela atualiza a ressurreição de Jesus para este tempo com suas mazelas.
IHU On-Line - Na cena política, temos visto muitos políticos ligados a instituições religiosas aderindo a discursos proselitistas. Quais são os riscos da instrumentalização da fé?
Alonso Gonçalves - A fé já está sendo instrumentalizada por pastores midiáticos que fazem o jogo do poder político. Pastores adeptos da teologia da prosperidade e da teologia do domínio fazem lobby a partir dos “votos dos evangélicos” com o propósito de conquistar espaço e poder. Geralmente são pastores que movimentam quantias exorbitantes de dinheiro e possuem seus jatinhos particulares. A força midiática ajuda na disseminação de suas ideias e reforça a percepção de que “falam por todos os evangélicos”. Recentemente, pastores midiáticos convocaram um “jejum pelo Brasil”, em um momento crucial da pandemia no país. Pessoas morrendo por falta de leito nos hospitais; gente que não consegue mais fazer ao menos duas refeições por dia; a carestia dos produtos básicos da cesta básica; a gasolina nas alturas; o gás de cozinha com um preço impraticável. Mas quanto a isso não há qualquer “jejum”. Eles estão em pleno alinhamento com o presidente da República e a política neoliberal do ministro da Economia.
IHU On-Line - A que o senhor atribui o fundamentalismo religioso que se manifesta nos dias de hoje no país? Ele está presente em todas as instituições religiosas?
Alonso Gonçalves - O caro leitor/a deve saber que o conceito “fundamentalismo” é um termo que surgiu no contexto religioso protestante nos EUA, mas que já ultrapassou o âmbito protestante estadunidense há muito tempo, principalmente depois dos ataques de 11 de setembro de 2001. O termo ficou popularizado e hoje pode ser visto sendo empregado não apenas no contexto religioso, mas também político.
Regra geral, o movimento fundamentalista funcionou como uma reação, num primeiro momento, à modernidade e às mudanças que esta provocou em diversas áreas do comportamento humano, mas principalmente no campo teológico. No aspecto teológico, o fundamentalismo foi uma reação ao que ficou conhecido como “liberalismo teológico”, causando enormes conflitos em denominações, seminários teológicos e universidades lideradas por respectivas alas, fundamentalista e/ou liberal.
O fundamentalismo tem uma característica evidente, de acordo com Lloyd Geering: “A convicção de que possuem o conhecimento absoluto da verdade, da qual se tornaram guardiões divinamente ordenados”. Por se entenderem como guardiões absolutos da verdade, julgam que essa verdade está na Bíblia – não necessariamente em Deus, uma vez que entendem ser a Bíblia a única forma que Deus falou, daí toda a discussão quanto à inerrância do texto bíblico.
O fundamentalismo está em praticamente todas as instituições religiosas no país. Na Igreja Católica, há grupos organizados que agem para sabotar o Papa Francisco e isso se dá com o apoio, em alguns casos velado, de bispos. Recentemente, vimos os embates em torno da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. Eu participei de uma celebração em uma Igreja Católica na promoção da Campanha e tive a oportunidade de falar na ocasião. Logo após o término da missa, um senhor me abordou para deixar muito claro que não concordava com a Campanha e começou a atacar pastores e pastoras envolvidos na preparação do texto-base da Campanha. O que estamos presenciando é um aumento da intolerância e a falta de amor cristão para com aquele que pensa diferente ou tem um posicionamento político que diverge do indivíduo que entende como sendo sua opinião a correta e verdadeira. Isso ocorre na Igreja Católica, mas também nas Igrejas Evangélicas, que está somando, cada vez mais, cenas lamentáveis de impropérios e calúnias pessoais com o objetivo de “cancelar” o outro porque está no campo progressista.
Essa onda fundamentalista, a meu ver, é um fenômeno que varreu boa parte da Europa (eleição do líder de extrema direita Matteo Salvini, na Itália; a disputa acirrada na França entre Macron e a ultradireitista Marine Le Pen). Nos EUA a vitória de Donald Trump foi o maior impulso para essa onda intolerante. Lá, as igrejas evangélicas contribuíram significativamente para a vitória do republicano. No Brasil, a visibilidade que o atual presidente dá aos pastores midiáticos está tornando o comportamento fundamentalista um sinal de autenticidade e demarcação de território em relação às minorias e ideias do campo político à esquerda. Esperamos que a tampa da caixa de Pandora possa ser fechada no país, do contrário iremos conviver com cenas lamentáveis de intolerância e discriminação.
IHU On-Line - Há muita literatura sobre a crise da Igreja e do cristianismo, e o próprio Papa Francisco já declarou que “hoje já não somos mais os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos”. Qual é o sentido do cristianismo hoje? Ele continua a ser sal da terra e luz do mundo? Por quê?
Alonso Gonçalves - A sociedade de hoje é global e a religião teima em estar dentro desse processo. A pluralidade religiosa na sociedade tida como pós-moderna é um fato. A tecnologia e a ciência não conseguiram extirpar do ser humano o sentimento religioso. Mais do que nunca se faz necessário o diálogo, entender o outro, procurar no outro pontos em comum que aproximam e não pontos que distanciam. O fundamentalismo religioso ou político já provou que não leva a lugar nenhum! Um George Bush passou pela história norte-americana como se não tivesse existido, o seu fundamentalismo político-religioso só fez aumentar mais ainda o ódio. Trump, do mesmo modo. Até agora os EUA estão tentando lidar com a política do ódio.
O fundamentalismo islâmico, católico ou protestante não promoverá a paz entre as religiões. O diálogo é uma ferramenta imprescindível para um mundo. Hans Küng trabalha muito bem essa temática. Ele advoga o lugar das religiões, e principalmente do cristianismo, na construção da paz, da justiça e da ética responsável pelo meio ambiente.
Nesse sentido, entendo que o Papa Francisco, ainda que sofra inúmeros reveses patrocinados pela ala ultraconservadora, tem feito um trabalho que renova nossas forças. A ida de Francisco ao Iraque com todos os riscos inerentes ao ato, demonstrou mais uma vez que o Papa é um catalisador do diálogo na promoção da paz e da justiça. Sigamos com o Papa Francisco, ele tem sido um pastor em tempos de desesperança e um profeta diante do caos social e político que nos encontramos.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Alonso Gonçalves - Em meio a tanta dor e luto, a minha solidariedade para com as pessoas que perderam e estão perdendo gente querida. Minha oração é que olhemos para Jesus de Nazaré, homem de dores e por essa razão entende muito bem o nosso sofrimento.
Fico com o poeta Gilberto Gil: “Andá com fé eu vou | Que a fé não costuma faiá”.