25 Abril 2014
Em uma rua, moram os sobreviventes de Auschwitz. Em outra, os que sobreviveram a Dachau. E, em outra ainda, os partidários. São todos pequenos palacetes esbranquiçados, de dois andares, com dois quartos e uma salinha, com um pequeno jardim na frente. Os pais são poucos, vulneráveis, fracos. As mães são muitas, determinadas, fortes. E os filhos das diversas famílias crescem juntos, sentindo-se parte de um todo.
A reportagem é de Maurizio Molinari, publicada no jornal La Stampa, 22-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esse é Bitzaron, o bairro ao sul de Tel Aviv, que, coincidentemente com o nascimento do novo Estado, em 1948, se transformou em um lugar onde os sobreviventes do Holocausto se reúnem, vivem juntos, falando em iídiche e não em hebraico, lembram entre si o que passaram, deixando de fora todos os outros.
"É como em um velho gueto", lembra Lizzie Doron (foto), filha de sobreviventes do extermínio e autora de cinco livros frutos justamente da juventude passada em Bitzaron. L’inizio di qualcosa di bello está sendo publicado pela editora Giuntina, e, para compreender a sua gênese, nos sentamos na cozinha da casa de Doron, em um arranha-céu nas proximidades da Universidade de Tel Aviv.
Encontramo-nos ao redor dos "matzabrei", panquecas de pães ázimos, que Lizzie passa no ovo, voltando com a memória para Bitzaron. "Os homens eram poucos e fracos, marcados pelos sofrimentos sofridos e enfraquecidos pela dificuldade de representar o judeu diaspórico que não tinha combatido em uma sociedade israelense totalmente projetada sobre o mito dos combatentes sionistas, heroicos e fortes", lembra, explicando que ela mesma, que nunca conheceu o pai, chegou "a mentir sobre a biografia paterna, dizendo que ele havia morrido na Guerra de Independência", para não ter que admitir que ele tinha morrido de tuberculose depois da chegada dos campos de Chipre.
As mulheres, ao invés, "eram mais fortes, eram elas que educavam os filhos, levavam-nos à escola, para fazer ginástica ou desenho". Alguns tinham perdido seus filhos nos campos de concentração, queriam se sentir responsáveis por alguém e adotavam os filhos de outros.
O resultado é que "nós, crianças de Bitzaron, nos sentíamos todos irmãos e irmãs". No grupo de Lizzie, "éramos em 41. Muitas vezes saíamos juntos, fugíamos da depressão, buscávamos o sonho de um futuro melhor, de ir para o kibutz ou para o exército, para nos tornarmos israelenses", ou seja, exatamente o oposto dos deportados.
Em 1967, com a vitória da Guerra dos Seis Dias, "todos sentimos uma sensação de poder, os nossos parentes eram perdedores, mas nós éramos vencedores. Foram os dias mais felizes de Israel, mesmo que fosse um mito".
De manhã, quando era preciso ir à escola, a mãe de Lizzie preferia confiá-la a um motorista de ônibus ex-deportado, "porque ele sabe o que significa perder uma pessoa". E na escola os alunos chamavam as professoras não pelo nome, mas pelo número tatuado no braço. Durante o recreio ou depois das aulas, as mães traziam de tudo para os filhos: sucos de frutas, doces, comprimidos contra todo tipo de doença. "Sabíamos que éramos muito importante para elas, porque muitos dos nossos pais tinham perdido suas famílias anteriores, outros filhos".
"A sensação era a de ser esmagado pelo afeto dos pais", diz Doron. "Depois, todos fomos para o kibutz ou para o exército, nas unidades de combate". Depois veio a Guerra do Kippur, em 1973, com o ataque surpresa dos exércitos árabes e o pesado balanço de perdas para o Estado judeu.
"Foi um trauma. Perdemos sete dos nossos 41, todos mortos na fase inicial. Até então, eu acreditara que Israel sempre venceria, mas tudo mudou. Eu deixei o kibutz em Golã e voltei para o bairro e para a casa da minha mãe".
Quando Lizzie abriu a porta, a mãe estava imóvel, no escuro, na sala de estar, diante de uma televisão quebrada. "Mãe, o que aconteceu?" A resposta é gélida: "Eu a quebrei. Ouvi o teu líder do governo dizer que derrotamos os árabes, e que sofreram muitas perdas, mas eu conheço a guerra e sei que todos têm perdas na guerra".
Lizzie sabe dos sete mortos, mas se fecha no seu quarto, não fala sobre isso com ninguém. As mães dos outros batem na casa para saber, mas ela nega. A mãe a protege: "Ela está mal, deixem-na em paz". Mas é um raro momento de entendimento na relação mãe-filha.
Quando Lizzie era pequena, a mãe, muitas vezes, a levava a uma igreja de Jaffa, fazia-a se sentar em um banco e, depois de saudar o padre, começava a amaldiçoar Deus em iídiche. "Um dia, eu lhe perguntei se éramos judeus ou cristãos, e ela me explicou que éramos judeus, mas o Deus dos judeus é cego, porque, durante o Holocausto, não viu os judeus que o imploravam das sinagogas, e, portanto, ela tinha escolhido ir a uma igreja para que Ele soubesse o que ela pensava".
Em outra ocasião, Lizzie, já com 20 anos, levou para casa um namorado, que, filho de um alto oficial, se apresentou com uma cartucheira no pescoço. "Ele era muito bonito, e eu estava apaixonada", recorda, com uma emoção ainda viva. Mas a mãe nem sequer o deixou entrar na casa, porque "com todos aqueles projéteis no pescoço, sabe-se lá quantas pessoas ele matou", disse-lhe, batendo a porta na sua cara.
Algum tempo depois, no entanto, a própria mãe acolheria de braços abertos outro soldado-namorado, porque, no exército, ele tinha sido responsável pela coleta de lixo e, portanto, nunca tinha disparado um tiro. Foi com esse homem que Lizzie se casou e com o qual criou três filhos, também eles marcados pelo impacto do Holocausto.
Para explicar do que se trata, Lizzie conta uma história: "Eu ensinei aos meus filhos que, quando vamos de férias para o exterior, é preciso sempre dormir vestidos, para que se possa escapar depressa, de calças e com os documentos. Uma vez, em Londres, no meio da noite, o alarme do hotel disparou. Escapamos, assim como todos, mas éramos os únicos que estávamos vestidos quase perfeitamente: o problema foi quando tentamos voltar aos quartos, porque o porteiro não acreditava que éramos hóspedes, justamente porque estávamos muito vestidos, enquanto os outros estavam todos seminus. Foi então que o meu filho pequeno disse: 'Minha mãe é filha de sobreviventes'".
Em Bitzaron, houve muitos suicídios. Uma mulher se jogou do telhado do cinema recém-construído, na noite da inauguração, porque admitiu que não conseguia viver "em um bairro onde é possível se divertir", enquanto, em outro caso, foi um marido que encontrou a sua esposa morta. Ele se ocupou do enterro e, muitos anos depois, quando ele estava no seu leito de morte, chamou o filho para lhe fazer uma confissão: "A sua mãe não morreu, mas enlouqueceu. Eu a tranquei em uma casa para doentes mentais e fingi o funeral para não te fazer sofrer. O túmulo dela está vazio, use-o para mim". O filho foi se encontrar com a mãe, que ainda estava viva, e, diante da evidente esquizofrenia, compreendeu a escolha do pai e contou o caso para Lizzie, testemunha das vidas dos sobreviventes e dos seus filhos.
"As mulheres falavam do que tinha acontecido com elas apenas para o cabeleireiro, enquanto faziam as unhas e os pés, e só o faziam em iídiche, deixando os outros de fora". Só em 1962, com o julgamento de Adolf Eichmann, o arquiteto da Solução Final, os sobreviventes começaram a se abrir e a contar: "Mas mais aos netos do que aos filhos".
Tendo chegado ao quinto livro ambientado em Bitzaron, Lizzie Doron agora trabalha em um assunto diferente: o bairro árabe de Silwan, em Jerusalém, bem no meio do conflito israelense-palestinos, "porque devemos conhecer os nossos vizinhos". A busca das raízes levou-a muitas vezes a Berlim – onde ela tem a sua segunda casa –, e ela olha para os alemães, assim como para os árabes, com a intenção de construir uma "memória compartilhada".
"A recordação da Shoá não deve ser transmitida apenas pelos judeus e os judeus", afirma, "é preciso envolver os outros, deve ser universal". Para explicar o que ela quer dizer, ela cita uma sobrevivente, internada no asilo "Palace": "Ela me disse que era preciso lembrar o Holocausto dedicando um dia inteiro para soltar fogos de artifício, dançar e se alegrar, para celebrar a derrota do Mal sobre o Planeta, território de todo ser humano".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''Quando minha mãe amaldiçoava Deus em iídiche dentro da igreja'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU