26 Fevereiro 2024
"A pessoa de Jesus é a única Tradição, alternativa a todas as tradições", escreve Flávio Lazzarin, em artigo publicado por Settimana News, 24-02-2024.
Segundo ele, "existem setores religiosos, aparentemente moderados e pacíficos, mas que parecem vacinados contra a possibilidade de ver e sentir como bons samaritanos a dor e o sofrimento dos pobres e dos pequenos, talvez também por serem motivados pelos tradicionais privilégios reservados aos eclesiásticos, bem como por convenções sociais secularmente condicionadas por uma interpretação espiritualista e devocional do cristianismo. E que, silenciosamente, podem acabar cúmplices dos delírios 'neofascistas', hoje em moda".
Recentemente, Giorgio Agamben, refletindo sobre o atual protagonismo do Patriarcado de Moscou na política e na guerra da Rússia contra a Ucrânia, relembra a disputa do “Filioque” [i] que, entre muitas divisões de jurisdição e disciplina eclesiástica e tensões estritamente políticas, teria sido o único elemento teológico a caracterizar o Grande Cisma, a divisão entre a Igreja Romana e Ortodoxa, que já dura mil anos.
Foi Miguel Cerulário, patriarca de Constantinopla, quem, em 1043, deu início às hostilidades contra as inovações da Igreja Latina que, para a Igreja do oriente, traíram a fé correta. A controvérsia pode ter surgido na Espanha do século VI, quando os bispos espanhóis, reunidos no Concílio de Toledo (589), que a respeito da heresia ariana - que afirmava que o Pai e o Filho não são coeternos e da mesma natureza - para defender a teologia tradicional, acrescentaram o “Filioque” ao Símbolo de Niceia (325) e Constantinopla (381), assim: “Creio no Espírito Santo, que é Senhor e dá a vida, e procede do Pai e do Filho (em latim: Filioque)”.
Mesmo com o aval dos evangelhos e das teologias dos padres gregos e latinos, poderia ter sido considerado um acréscimo aparentemente insignificante, ou um teologúmeno aceitável. As centenárias batalhas teológicas testemunham que não se tratou apenas de uma questão de legitimidade jurídica na modificação do Credo niceno-constantinopolitano, que, segundo o Concílio de Éfeso (431), pertenceria à decisão exclusiva de um Concílio, mas sim de tensões mais profundas, difíceis de superar, ontem como hoje, apesar das iniciativas ecumênicas inauguradas pelo Concílio Vaticano II.
Agamben, talvez forçando um pouco a inegável centralidade do Filioque na controvérsia, redescobre na atualidade como filioquismo e monopatrismo são os polos de um confronto radical entre o cristianismo ocidental e a ortodoxia da Terceira Roma.
Seria uma polarização que evidenciaria não apenas espiritualidades cristãs opostas e divergentes, mas também, e sobretudo, duas formas alternativas de compreensão da relação com a história por parte de ocidentais e orientais. Não se trataria, portanto, apenas de uma controvérsia trinitária, mas de duas teologias da história que hoje se contrapõem também em termos bélicos, com a invasão da Ucrânia.
No Oriente greco-ortodoxo, a ação do Espírito Santo, marcada pela sua relação com o Pai, traduzir-se-ia numa espiritualidade que não considera necessário conjugar-se com a história e as suas mudanças constitutivas e inevitáveis.
E assim essas Igrejas ortodoxas, marcadas pela fidelidade às tradições, nos parecem imóveis no tempo. Esta imobilidade não parece monopólio do cristianismo greco-ortodoxo, porque mesmo Roma, nos séculos pós-tridentinos, vivenciou a Contrarreforma como a retidão da fé intimamente ligada à retidão da práxis. Portanto, para os tradicionalistas, como o Cardeal Ottaviani ("Semper idem" é o seu lema), as mudanças dos ritos e da práxis tradicional seriam sempre traições à reta fé.
Creio, portanto, que é necessário recordar novamente que o tradicionalismo católico nunca deixou de repropor a fidelidade litúrgica e doutrinal do passado, desde os Lefebvre nos anos 1970, até os Viganò da atualidade.
No cristianismo protestante, porém, o Filioque teria tido uma influência teológica determinante, que no mundo católico só foi plenamente revelada com o Concílio Ecumênico Vaticano II. A relação do Espírito com o Filho nos convidaria a colocar em primeiro plano a historicidade, a carnalidade, de Jesus de Nazaré e, consequentemente, a prioridade do seguimento, que se dá nos caminhos concretos da história, que - queiramos ou não - está sujeita a contínuas mudanças.
É inegável, como afirma o Eclesiastes, que não há nada de novo sob o sol, mas é igualmente verdade que os poderes políticos e religiosos se apresentam com novas faces, que nos desafiam ao discernimento e à responsabilidade histórica, sem medos e sem fugas. Agamben nos lembra, com um exemplo que parece indiscutível, como o comunismo leninista, um produto maduro do Ocidente, falhou também porque era absolutamente inaceitável devido à religiosidade generalizada do povo russo.
“A inversão que é produzida com a Revolução Russa é ainda mais repleta de consequências, quando o modelo ocidental da primazia da economia histórica é enxertado à força num mundo espiritualmente e completamente despreparado para recebê-lo. Mais uma vez, nessa perspectiva, o fracasso do modelo soviético e a evidente reproposta de motivos teológicos na Rússia pós-soviética podem ser explicados como o retorno da removida independência do Espírito Santo, que encontra aquela posição central que o regime comunista não havia conseguido cancelar”. [ii]
Deve-se acrescentar e ressaltar que o antimodernismo da ideologia pan-russa ou da teocracia islâmica apresenta-se, em termos hegemônicos e aparentemente vitoriosos, como alternativa à constantemente denunciada decadência moral da modernidade ocidental e revela-se aliado de amplos setores cristãos em todo o Ocidente, desde o protestantismo neopentecostal até os ambientes católicos, não tão minoritários, que rejeitam o Concílio Vaticano II e enfrentam com hostilidade e ódio a pessoa e a profecia do Papa Francisco.
Mesmo deixando de lado o Filioque, encontramos religiosidades tradicionalistas que se aliam – e muitas vezes dão fundamento – a posições políticas de extrema-direita, que acabam por trair o Evangelho ao comprometerem-se com a violência e as guerras dos poderes deste mundo: traição da Páscoa de Jesus e dos mártires da ágape e da justiça; negação da Cruz vitoriosa de Jesus, que é a única fidelidade repetidamente exigida de quem quer segui-lo nos caminhos de todas as épocas da história. A pessoa de Jesus é a única Tradição, alternativa a todas as tradições.
No entanto, não devemos ignorar a difusão, nestas décadas pós-conciliares, de movimentos católicos que enfatizam o protagonismo do Espírito Santo, mas que se esquecem de combiná-lo com a pessoa de Jesus de Nazaré, excluindo das suas vidas o impacto da sua palavra, do seu pensamento, da sua práxis, e ignorando que o Espírito é o dom de Jesus, para orientar a leitura e o discernimento dos sinais dos tempos e animar o seguimento e a imitação do Mestre.
Existem setores religiosos, aparentemente moderados e pacíficos, mas que parecem vacinados contra a possibilidade de ver e sentir como bons samaritanos a dor e o sofrimento dos pobres e dos pequenos, talvez também por serem motivados pelos tradicionais privilégios reservados aos eclesiásticos, bem como por convenções sociais secularmente condicionadas por uma interpretação espiritualista e devocional do cristianismo. E que, silenciosamente, podem acabar cúmplices dos delírios “neofascistas”, hoje em moda.
Acontece quando renunciamos a viver o apelo de Paulo: “Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens. Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração” (2 Cor 3,2-3).
O Espírito do Deus vivo desde sempre fala de forma atualizada, marcada pela liberdade de escrever na nossa história o que Jesus diria hoje à humanidade: sem arqueologias e arcaísmos, mas com atenção permanente aos mutáveis contextos históricos; a serviço da profecia, sem apelos inúteis a dogmas fossilizados.
[i] G. Agamben, “Oriente e Occidente”, coluna online “Una voce” 20/12/2023.
[ii] Ibidem.
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O “Filioque” e a história. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU