20 Fevereiro 2024
"Dado que a guerra atingiu esse ponto terminal, já não basta mais repudiá-la, pedimos à Europa que proponha a todas as nações que ela seja chamada pelo seu nome, que é de genocídio, que proclame que toda guerra, como guerra civil, é um genocídio e que, como tal, não só as guerras injustas, mas também as guerras que outrora eram consideradas justas, équas e saudáveis, não só pelos belicistas, mas até pelas teologias, sejam comparadas ao genocídio e prevenidas e reprimidas sob o termos da Convenção Internacional contra o Crime de Genocídio", propõe Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 16-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre o anúncio da conferência de imprensa e a sua realização aqui hoje, no espaço de dois dias, com o agravamento da situação em Gaza diante dos olhos de todos, atingimos um limiar sem retorno.
A questão não é mais o que a Europa deveria fazer, para reencontrar a si mesma e aos valores de que foi portadora na sua incessante troca com o mundo, como recordou o Papa Francisco: sobre isso o nosso programa é rico de propostas e de empenhos. O tema decisivo hoje, porém, é o do papel que a guerra deve ter no mundo.
Até agora deixamos que fosse a própria guerra a decidir qual deveria ser o seu papel no mundo, e a guerra decidiu bancar a soberana, dominar tudo, como um supremo tribunal que devesse pronunciar a sua sentença e as suas condenações não de acordo com um critério de verdade, mas segundo o primado da violência. E assim a guerra se autoproclamou “pai e rei de todas as coisas”, já segundo o ditado de Heráclito do século VI. Pensava-se que isso fosse de acordo com a natureza e não era verdade.
E eis que agora somos nós que somos chamados a colocar a guerra no trono, somos chamados a tornar-nos seus súditos e a colocar cada coisa nas mãos do seu poder, povos inteiros, a política, a economia, o clima: todo o sistema que construímos, transformamo-lo num sistema de dominação e de guerra. Netanyahu disse que não irá parar nem em Gaza, nem em Rafah nem na Cisjordânia até terminar o trabalho. Mas Gaza é o precipitado e a epítome de toda a crise mundial, tal a apresentar-se diante de nós como o ponto de virada para ir em direção à salvação ou à catástrofe. De fato, estamos no meio de uma guerra que, de um lado e do outro, atingiu o máximo da dramatização e da crueldade.
Netanyahu chamou isso de direito de defesa, e é uma vingança em resposta ao massacre sofrido em 7 de outubro, mas relativamente ao futuro é uma prevenção que leva à eliminação do inimigo desde o berço. O mundo diz que ele tem razão, que está dentro do seu direito, o mundo que importa diz isso, que tem o poder, que escreve nos grandes jornais. Mas o mundo também vê que está se pagando um preço e ousa dizer que deve haver uma proporção, uma espécie de cálculo a ser feito entre custos e receitas: e é isso que as pessoas de bem dizem a Netanyahu, e Tajani (ministro das relações exteriores da Itália, nota do IHU)) disse ontem que esse preço é desproporcional.
Mas pelo menos até agora esse preço foi aceito. Foi aceito e se permitiu que toda a população de Gaza fosse atingida e expulsa, 2.200.000 pessoas em comparação com as mais de 1.400 vítimas mortas e reféns de 7 de outubro, 1.500 por uma; aceitou-se e se fazer paga o custo de 28.000 mortos palestinos em troca dos 105 reféns libertados graças à negociação, 267 palestinos mortos para cada israelense vivo, foram aceitos pelo menos 70 mortos no bombardeio de Rafah em troca da libertação de dois reféns, e se aceita que um milhão de palestinos sejam amontoados e destinados ao extermínio no último pedaço de terra que lhes resta, em contrapartida aos 103 reféns ainda a serem libertados, um por um. Dizem que a culpa é dos palestinos, de todos eles, e o mesmo é dito de todo sacrifício. Mas não é um motivo suficiente.
Quando se chega a essa contabilidade, significa que a alma do mundo está perdida, e se ampliarmos o campo da crise, a ponto de incluir e ver as outras guerras, e toda a crise mundial, descobrimos que toda a realidade humana e física do mundo está hoje a ponto de poder ser perdida.
Ora, porque é que isso abre um problema político para nós, e não só para nós, abre até o problema de participar das eleições? Porque talvez ainda haja algo que possa ser feito, ainda haja políticas que possam ser revertidas para que o pior não aconteça. Porque por maior que possa ser a dureza de coração aqui no Ocidente, não é fácil persuadir as pessoas a aceitar esses cálculos, a desculpar esse cinismo, e talvez seja possível extrair o consenso dos eleitorados a esse horror.
E eis que a guerra de Gaza torna-se, tal como a Guerra do Golfo em 1991, o jogo decisivo jogado pelo poder para a conquista da opinião, para extirpar aquilo que Il Foglio define como a retórica do pacifismo, para constitucionalizar o princípio si vis pacem para bellum, para nos persuadirmos, como nos adverte Paolo Mieli, que Israel não afrouxará a pressão até que tenha recuperado o último refém em mãos alheias, e para finalmente implantar um grande exército europeu, como pede Trump que quer nos transferir os custos e colher os benefícios.
Tal como foi para o Iraque, também para Gaza essa grande operação mediática e de opinião visa derrubar as últimas defesas que ainda impedem que todo o cenário mundial se torne o campo de batalha daquela competição estratégica que é teorizada na doutrina de segurança nacional estadunidense, para o controle, ou seja, a dominação do mundo. E a primeira coisa que está em jogo para esse resultado, a primeira divisão que deve cair para que essa soberania da guerra e dos seus ministros se estabeleça e triunfe, é a de todo o sistema midiático e de opinião, somos nós, são vocês, colegas jornalistas, que estamos sob ataque, porque nós ainda podemos tentar uma extrema desesperada defesa.
Então é por isso a decisão de Santoro, e com ele todos os outros. Foi Carl Schmitt, o grande cientista político alemão que sobreviveu ao nazismo, quem explicou que no seu ponto final de queda a verdadeira natureza da guerra residia na guerra civil. “Infelizmente o que se fala sobre a guerra – escreveu Schmitt no seu arrependimento final devido à sua prisão – só na guerra civil assume o seu final e amargo sentido”.
“Há algo particularmente cruel na guerra civil – escreveu Schmitt – é guerra civil porque é conduzida dentro de uma unidade política comum que também inclui o adversário e dentro do âmbito do mesmo sistema jurídico, e porque as duas partes que lutam ao mesmo tempo afirmam absolutamente e negam absolutamente essa unidade comum. Ambas, absoluta e incondicionalmente, colocam o oponente no não-direito.
“[…] A interferência de argumentações e instituições de tipo jurídico envenena a luta. Ela a leva à extrema dureza, tornando os instrumentos e os métodos de justiça os instrumentos e métodos da aniquilação. Nós nos erigimos como tribunais sem deixar de ser inimigos”. “A dúvida sobre o próprio direito é considerada traição, o interesse pela argumentação do adversário, deslealdade; a tentativa de uma discussão torna-se um entendimento com o inimigo." E muitos de nós sabemos algo sobre isso.
Esse aspecto da guerra atingiu a sua máxima evidência na guerra de Gaza.
A guerra também chega até nós hoje como uma guerra civil, dado que estamos agora numa ordem mundial única e num sistema global em que cada guerra é guerra civil. Guerra civil é a guerra em Gaza, mas também é a guerra ucraniana no coração de uma Europa que queria ser unida, e também as outras guerras da guerra mundial em pedaços que está em curso são guerras civis num mundo onde o Indo-Pacífico banha à Casa Branca e a “área euro-atlântica” chega até à Austrália, à Nova Zelândia e ao Japão.
Portanto, dado que a guerra atingiu esse ponto terminal, já não basta mais repudiá-la, pedimos à Europa que proponha a todas as nações que ela seja chamada pelo seu nome, que é de genocídio, que proclame que toda guerra, como guerra civil, é um genocídio e que, como tal, não só as guerras injustas, mas também as guerras que outrora eram consideradas justas, équas e saudáveis, não só pelos belicistas, mas até pelas teologias, sejam comparadas ao genocídio e prevenidas e reprimidas sob o termos da Convenção Internacional contra o Crime de Genocídio. Juntamente com isso afirmamos que a Europa não é um Super-Estado que atinge a sua perfeição no direito de guerra e que, portanto, é contra a sua natureza que se dote de um exército europeu, e excluímos que os países da Europa e a própria Europa alimentem as guerras alheias, com o envio de armas e outras medidas de cobeligerância, como sanções indiscriminadas que, ao atingirem povos inteiros, são também genocidas, e pedimos que a Europa faça todos os esforços para obter o cessar-fogo e a conclusão das guerras em curso.
É isso que está em jogo hoje. Portanto, não nos perguntem os títulos pelos quais participamos nesta batalha eleitoral. Todos estamos envolvidos na guerra civil. Não há necessidade de explicar isso.
Não somos uma das estrelas da constelação do pacifismo, mesmo que acreditemos que ele teria todas as qualificações para enfrentar essa luta e que muitos de nós sejam conhecidos como pacifistas. Também não somos um episódio na procura daqueles que estão empenhados em criar uma unidade das esquerdas, mesmo que respeitemos e encorajemos essa tentativa. Apresentamo-nos nas eleições europeias porque são um evento do qual é legítimo pensar que, ao dar à Europa uma nova subjetividade no concerto das Nações, possa propiciar o início de uma revolução capaz de mudar o destino do mundo.
Deveríamos também ter a coragem de dizer que a única solução possível para a guerra entre Israel e os palestinos não é uma solução militar, não é uma solução humanitária, não é uma fantasia utópica, mas é uma solução política.
E essa solução política só pode ser uma reconciliação entre os dois povos, porque isso significa falar de dois povos e de dois Estados, ou seja, de dois sujeitos que, qualquer que seja o seu sistema jurídico, convivam em paz. É claro que no clima e no meio dos acontecimentos de hoje essa ideia de reconciliação não possa ser avançada nem como uma hipérbole, sem que nos digam: “deixe para falar sobre isso numa outra ocasião”. Mas Ali Rashid, um intelectual palestino, disse numa entrevista a Servizio Pubblico: “Lamento que tenhamos adotado o terror e o horror que sofremos para afirmar o nosso imperioso direito à vida. Mas será essa cadeia de morte imparável? No entanto, antigamente, éramos irmãos". No entanto, um dia até a Rússia e os Estados Unidos estiveram perto de dizer, entre Gorbachev e Clinton, depois da Guerra Fria, que talvez pudessem ficar juntos na OTAN; então sim, a OTAN teria sido uma coisa boa!
No entanto, é precisamente isso que queremos dizer aos eleitorados dos nossos países e aos chefes das Nações que serão expressados por eles, é isso que gostaríamos de dizer às diplomacias, aos Parlamentos, aos exércitos que detêm o destino do mundo nas suas mãos, isso é o que gostaríamos de dizer a Biden, Netanyahu, a Putin, Scholz, Macron, a Sanchez, à primeira-ministra italiana, nós só pedimos que nos respondam dizendo: então vamos fazer isso ou aquilo, mas que pelo menos ouçam o grito dos povos e nos mostrem tê-lo ouvido.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Gaza é a epítome de toda a crise mundial, tal a apresentar-se diante de nós como o ponto de virada para ir em direção à salvação ou à catástrofe”. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU