Danny Zahreddine, da PUC Minas, avalia que ação da África do Sul, apoiada por Brasil, é uma forma de constranger Israel.
A reportagem é de Rafael Oliveira, publicada por Agência Pública, 23-01-2024.
Passados pouco mais de 100 dias desde que o Hamas realizou ataques terroristas em Israel, em 7 de outubro, a escalada do conflito na região persiste, sem perspectiva de encerramento. A intensidade da resposta israelense — que bombardeou Gaza e invadiu a região por terra —, respaldada especialmente pelos Estados Unidos, tem gerado críticas e reações na comunidade internacional. A mais estridente delas partiu da África do Sul, que nos últimos dias de 2023 protocolou uma denúncia na Corte Internacional de Justiça (CIJ), acusando o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de estar perpetrando um genocídio contra os palestinos da Faixa de Gaza.
A ação, que começou a ser analisada pelo tribunal no último dia 11, recebeu o apoio de dezenas de países, incluindo nações da Liga Árabe e da América Latina. Um dos apoios partiu do Brasil, que em 10 de janeiro publicou uma nota oficial no site do Ministério de Relações Exteriores (MRE), depois de reunião do presidente Lula (PT) com o embaixador da Palestina. O apoio brasileiro ao pleito da África do Sul gerou reações internas, com um grupo de empresários e personalidades criticando a decisão em um abaixo-assinado publicado na semana passada.
Em entrevista à Agência Pública, o professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Danny Zahreddine, afirmou que a ação da África do Sul e o apoio do Brasil são uma tentativa dos países em desenvolvimento de intervirem no conflito. “Como Israel recebeu uma carta branca dos Estados Unidos para fazer o que quiser com os palestinos, o Sul Global tentou se mobilizar. [A ação é] uma forma de constrangimento moral frente ao Direito Internacional”, diz o pesquisador, líder do Grupo de Pesquisa Oriente Médio e Magreb da PUC Minas.
Desde os ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro, mais de 25 mil pessoas foram mortas na Faixa de Gaza, cerca de 65% delas mulheres e crianças, de acordo com informações da Al Jazeera. Além disso, 369 pessoas perderam a vida na Cisjordânia e outras 1.139 foram mortas em Israel. Há ainda oito mil pessoas desaparecidas em Gaza e 136 israelenses mantidos como reféns. De acordo com o Comitê para a Proteção de Jornalistas, pelo menos 83 profissionais da imprensa foram mortos na região, a maior parte deles em Gaza.
A resposta israelense ao ataque do Hamas também provocou o deslocamento forçado de quase dois milhões de palestinos, destruiu mais da metade das residências da Faixa de Gaza. Além disso, deixou inoperantes parcial ou completamente boa parte dos hospitais locais e vem colapsando os sistemas de fornecimento de água, energia e alimentos.
Para Zahreddine, a contra-ofensiva israelense foi “desproporcional” e a manutenção do conflito por Netanyahu é uma estratégia de sobrevivência. “Para esse governo não interessa o cessar-fogo, porque a existência da guerra significa a existência do governo. [Para chegar à paz,] o primeiro passo é que haja lideranças, tanto na Palestina quanto em Israel, que estejam comprometidas com um processo pós-desastre de 7 de outubro e pós-desastre da guerra de Gaza, aponta o pesquisador, que defende a solução de dois Estados como a “única saída”.
A ação da África do Sul se baseia na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. O tratado, adotado por unanimidade pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, tipifica o crime de genocídio no Direito Internacional e foi uma reação ao Holocausto que os próprios judeus haviam sido vítimas.
A CIJ, principal instância jurídica da ONU, fica sediada em Haia, na Holanda, e é composta por 15 juízes de diferentes nacionalidades. Diferentemente da outra corte sediada em Haia, o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Corte Internacional de Justiça não tem a prerrogativa de julgar indivíduos, sendo responsável por analisar casos que envolvam Estados. Um dos atuais juízes do tribunal é o brasileiro Leonardo Nemer Caldeira Brant, professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele substituiu um outro brasileiro, Antônio Cançado Trindade, que faleceu em 2022.
Do que se trata a ação que a África do Sul está movendo na Corte Internacional de Justiça?
Quando a gente pega o que a Convenção [para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948] coloca como genocídio, é muito impressionante como alguns elementos que aconteceram agora em Gaza se enquadram. O artigo 2 fala em assassinato, atentados graves à integridade física e mental, submissão intencional de membros do grupo a condições de existência que levam à sua destruição física total ou parcial, medidas visando a impedir os nascimentos dentro do grupo, transferência forçada de crianças de um grupo para outro.
Quantos hospitais foram atacados? Quantas escolas foram atacadas? Deslocaram as pessoas? Você tem uma política de assassinato em massa. A questão não é a quantidade, mas a ação deliberada de acabar com um povo, uma etnia. Isso é o crime de genocídio.
Ele aparece justamente pós-Segunda Guerra Mundial para poder impedir aquilo que aconteceu com os próprios judeus, porque existiu uma política deliberada dos alemães de exterminar os judeus. E esse é um ponto essencial: tem que ser uma política deliberada. A grande dificuldade [da ação da África do Sul] é comprovar que houve dolo, houve intenção de exterminar.
O dia 7 de outubro foi uma coisa absurda, foi um ataque terrorista contra Israel perpetrado pelo Hamas. Isso aí ninguém discute, é uma coisa horrorosa que tem que ser combatida. Mas o que acontece depois também é absurdo, é desproporcional. É tão absurdo que fez com que a África do Sul buscasse um movimento para pressionar Israel. Eu vejo essa ação nesse sentido. Como Israel recebeu uma carta branca dos Estados Unidos para fazer o que quiser com os palestinos, o Sul Global tentou se mobilizar. E uma forma de constrangimento moral frente ao Direito Internacional é levar Israel a julgamento pelo crime de genocídio, para ver se eles mudam o comportamento frente aos palestinos.
Por que a África do Sul é quem capitaneia essa iniciativa?
A África do Sul tem uma história muito interessante com a Palestina. O país vivenciou um apartheid terrível, e sabe o que esse regime representou para a maior parte da população sul-africana. Segunda coisa, o [Nelson] Mandela, a principal liderança sul-africana que lutou contra o apartheid, depois se tornou um aliado e um amigo próximo da principal liderança palestina, que foi Yasser Arafat. O Mandela sempre mostrou que era muito importante Israel acompanhar o caminho da África do Sul e acabar com a ocupação do território palestino.
Considerando que a ação venha a se desenrolar, quais consequências isso pode gerar, já que a Corte Internacional julga Estados e não indivíduos?
Ela tem um desdobramento muito relativo e limitado, porque você tem um sistema internacional que é regido pelo poder dos seus atores centrais. Não existe uma polícia internacional, um exército internacional, um Estado mundial. Por isso que a gente diz nas relações internacionais que [o mundo] é marcado por um cenário de anarquia sistêmica. Não que não exista ordem, mas não existe hierarquia, no sentido de que não tem um Estado centralizado, não existe uma constituição. A ONU tenta, de alguma forma, organizar isso. Mas, ao fim e ao cabo, o que vai decidir se uma resolução da ONU vai funcionar ou não é o poder que cada um desses Estados possui.
Se Israel for condenado por crime de genocídio, isso vai ter um impacto subjetivo e moral violentíssimo. Mas eu vejo que fica nesse nível. Eu acho muito difícil alguém prender o Netanyahu [o que poderia ocorrer por meio de outros tribunais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional], porque Israel é aliado de primeira ordem dos Estados Unidos.
Mas do ponto de vista moral, se isso vinga, é uma derrota hercúlea para Israel.
E de que forma que Israel está se defendendo dessa acusação?
Israel se defende dizendo que usa o princípio da legítima defesa. Mas é ridículo. O artigo 51 da Carta das Nações Unidas diz que o país tem direito de usar da força se for atacado. Mas existem outros princípios, como o da proporcionalidade. Até mesmo entre os neobabilônicos existia um princípio de proporcionalidade. Você pega o Código de Hamurabi, 3.500 anos antes de Cristo, olho por olho, dente por dente. O que Israel faz é uma ação completamente desproporcional.
Ele tenta se defender dizendo “não, eu aviso as pessoas 20 minutos antes que eu vou destruir as casas delas, para elas saírem de lá”. Olha que ato de humanidade… Eu peço para 2 milhões de pessoas saírem de suas casas, eu bombardeio as rotas seguras, eu bombardeio hospitais, eu bombardeio sedes da ONU, eu bombardeio escolas. Eles batem na tecla da autodefesa, dizem que tentam diminuir o impacto contra os civis, falam que o Hamas usa os civis como escudos humanos. Por isso que eles tentam mostrar a todo momento que existem túneis perto de hospitais.
O que a África do Sul tenta mostrar é que, se eu forço 2 milhões de pessoas a saírem das suas casas, não são 2 milhões afiliados ao Hamas. Isso tem uma disposição clara de gerar dor e sofrimento. Se eu impeço a entrada de comida, remédio, água e eletricidade e crio ali uma punição coletiva para milhões de pessoas, eu tenho a intenção de feri-las, de matá-las. Não é uma tarefa tão simples se defender disso.
E tem uma outra coisa. Quando agentes públicos de Israel falam que os palestinos são animais humanos [dita pelo ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, logo após a eclosão do conflito] que tipo de fala é essa? Se o ente público coloca isso claramente na mídia, eu acho que ele tem a intenção de matar, não tem? Tem dolo na ação.
O peso moral que uma condenação pode gerar, e que imagino que a acusação em si já esteja gerando, vem do fato de que os judeus foram vítimas, eles próprios, de genocídio?
Você imagina uma população que sofreu o horror que foi o Holocausto, agora ser condenada por crime de genocídio. É muito complicado. Mas essa é uma contradição na sociedade israelense. Uma sociedade extremamente militarizada, que cria na população o entendimento que o palestino é uma sub-raça. Não é possível você manter governos em Israel que apoiem esse tipo de política se você não convence a população a ter uma postura racista contra os palestinos. É necessário convencê-los que os palestinos são culpados por tudo.
Historicamente, qual tem sido a postura do Brasil em relação a essa questão Israel-Palestina?
O Brasil sempre tentou manter uma política equidistante de palestinos e israelenses. O Brasil foi muito importante para Israel em vários aspectos e foi muito importante para os palestinos também em vários aspectos. Temos uma comunidade árabe relevante, uma comunidade palestina não tão grande, mas bem importante. E, ao mesmo tempo, tem uma comunidade judaica muito importante. A relação reflete a própria presença dessas diásporas aqui no Brasil.
O Brasil foi muito importante para Israel porque, em 1947, quem presidiu a sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, que autorizou a partilha da Palestina, foi Oswaldo Aranha. Ele, inclusive, tem nome de rua em Israel, é uma personalidade muito importante.
Agora, por outro lado, o Brasil também tem uma relação importante com os árabes e com os palestinos. Principalmente os governos mais progressistas, mais de esquerda, têm uma atenção mais clara à questão palestina. Tanto que, no final do segundo mandato do governo Lula, é que o Brasil reconheceu a Palestina [nas fronteiras pré-1967].
O que nós temos é a busca por essa relação equilibrada entre palestinos e israelenses. Tanto que, no dia 7 de outubro, o presidente Lula foi muito claro na condenação do que aconteceu com os israelenses, condenou veementemente.
Por que o Brasil decide apoiar a ação da África do Sul?
Ao mesmo tempo que o governo usa o termo terrorista para condenar o ataque que Israel sofreu, ele também condena um tipo de terrorismo de Estado que tem acontecido contra os palestinos em Gaza. E aí tenta, por meio da diplomacia, encontrar um cessar-fogo necessário para aliviar o sofrimento da população civil palestina. [Uma tentativa] que não funciona, porque Israel tem salvo-conduto dos Estados Unidos para fazer o que quer.
E aí o que sobrou para o Sul Global fazer? Pressão moral. É coerente com esse governo brasileiro, que tem uma pauta progressista, de direitos humanos, de mediação de conflitos.
E esse apoio é, de alguma forma, uma mudança de paradigma nas relações?
Não, eu não vejo. Eu vejo que é uma postura pragmática, de pensar quais seriam as formas de tentar forçar Israel a mudar o comportamento. Nós não temos armas para isso, nós não somos os Estados Unidos. O Brasil tem um compromisso importante com os direitos humanos.
Agora, gera incômodo. Para Israel é o fim do mundo [a acusação de genocídio]. Mas se não for assim, não muda de comportamento. É importante mostrar que para ter o Brasil ao seu lado, é necessário ter um comportamento de mundo civilizado. Essa é a intenção do governo. E vários governos latino-americanos também apoiaram a iniciativa, vários países do Sul Global apoiaram essa iniciativa, porque veem como a única forma de pressionar de alguma maneira Israel a moderar a sua ação.
E isso já tem gerado algum tipo de resultado, a pressão que os Estados Unidos têm colocado e a pressão também da ação na Corte Internacional de Justiça. Em que sentido? A retirada de divisões de exércitos de dentro de Gaza e o início de uma mudança de fala do próprio Benjamin Netanyahu. Apesar de se manter irredutível com relação à solução de dois Estados, foi só depois disso que ele falou, pela primeira vez claramente, que não existe nenhuma intenção de deslocar os palestinos para fora de Gaza e reocupar a região.
A postura do Brasil pode gerar alguma consequência nas relações políticas e econômicas com Israel?
Com certeza isso vai afetar negativamente. Já estava uma relação difícil em razão da representação israelense no Brasil, que ainda manteve muito contato com o presidente anterior [Jair Bolsonaro]. Essa postura [de apoio à África do Sul] coloca ali claramente uma resposta a esse tipo de relacionamento. A realidade da política doméstica impacta a política externa.
Agora, vamos ver o que vai acontecer, se Israel vai chamar o embaixador brasileiro em Israel para poder se explicar [ou agir de outra forma]. Eu acho que eles vão com cautela, porque estão sofrendo muita pressão, inclusive militar, no Mar Vermelho, no sul do Líbano, no Norte de Israel, na Rússia, com o Hezbollah, em Gaza e internamente, e abrir mais uma frente de embate seria complicado. Mas não tenho dúvida que isso gera impacto negativo nas relações.
E claro, ainda tem três anos de governo Lula, mas no eventual retorno de um governo de direita, não de Bolsonaro, que é inelegível, mas de um governo bolsonarista, todo esse comportamento brasileiro se inverte?
Se volta um governo de extrema-direita, a exemplo do que foi o governo Bolsonaro, aí você muda de novo a postura. Tem muita convergência entre a extrema-direita brasileira e a extrema-direita israelense. A combinação desse elemento religioso dos evangélicos no Brasil com adoração a Israel é uma herança que vem dos Estados Unidos, principalmente dos pentecostais e dos neopentecostais – o que é contraditório, já que os judeus têm uma religião que não reconhece nem a existência de Jesus [como Messias].
A relação com os palestinos [no governo Bolsonaro] foi péssima, a relação com o mundo árabe foi muito específica com alguns países, e a relação com Israel foi maravilhosa, no sentido de que reforçavam-se mutuamente o governo Netanyahu e Bolsonaro.
Passando para o confronto em si, quais são os fatos mais recentes na região que levaram o conflito a essa situação atual, que desencadearam essa nova etapa?
O conflito palestino-israelense é muito antigo, existe para além da independência de Israel, tem mais de 75 anos. A questão de fundo é a não implementação das resoluções da Assembleia Geral da ONU que criaram o Estado palestino, que mandaram Israel sair das áreas ocupadas.
A questão mais recente, própria da conjuntura internacional, é que os Estados Unidos começaram a se preocupar mais com a China, com a Rússia, com a Ucrânia, e isso gerou um certo vazio. De certa forma, o Hamas age no dia 7 de outubro com o objetivo de chamar a atenção de novo para o conflito palestino-israelense, buscando a solidariedade do mundo árabe e do mundo muçulmano, tentando atrapalhar a reaproximação de países árabes com o Israel. Acontece também em razão desse governo de extrema direita em Israel, que atua muito violentamente também lá na Cisjordânia.
O governo de Israel tem insistido que só vai parar de atacar Gaza quando o Hamas for 100% eliminado. Isso é, de alguma forma, factível?
Esse é um recurso retórico do governo israelense. Você pode debilitá-lo, desgastá-lo, mas o Hamas é para além do braço armado, é uma ideia. E a violência contra os palestinos em Gaza retroalimenta a ideia do próprio Hamas.
Do ponto de vista material, eles precisariam de anos para poder destruir a infraestrutura do Hamas por completo. E do ponto de vista imaterial, você não destrói, assim como não é possível destruir o Estado de Israel. Você pode ter transformações dentro do Estado de Israel, pode virar uma coisa diferente do que é hoje, a mesma coisa com o Hamas e Gaza.
Eles tentam demonstrar que são capazes de uma vitória político-militar em razão da derrota e da falha do que foi o dia 7 de outubro. Essa continuidade do conflito tem um lastro que é político, porque o governo Netanyahu quer sobreviver ao máximo, e a única forma de sobreviver é manter a guerra. Quando a guerra acabar, esse governo vai cair, porque tem uma tradição em Israel [de queda de governos após fracassos em guerras].
Mas a continuidade do conflito é um desastre reputacional para Israel, que tem perdido muito apoio internacional. Os Estados Unidos começam a compreender que esse salvo-conduto para Israel fazer tudo já gera problema internamente para o Partido Democrata, para o projeto de reeleição do Biden. Eu vejo que, nas próximas semanas, a guerra vai mudar de tamanho, vai mudar de concepção, por conta dos custos políticos da continuidade dela para os Estados Unidos, para a União Europeia e para o próprio Israel.
E você acredita que essa nova configuração da guerra vai se dar de que maneira?
Eu acho que vai diminuir muito os bombardeios. Vai se iniciar um processo de discussão mais claro com os árabes parceiros e os Estados Unidos para pensar uma forma de transição. Eu acho que continua a ação militar, mas não vão ser esses bombardeios criminosos que têm acontecido. Eu vejo que o primeiro passo é a diminuição e a retirada de boa parte dos batalhões do Exército que estão dentro de Gaza, e bombardeios e ações por terra de maneira mais específica em determinados locais.
E quais são as perspectivas de, primeiro, um cessar-fogo duradouro e, para além disso, de uma solução que represente uma paz efetiva?
Para esse governo não interessa cessar-fogo, porque a existência da guerra significa a existência do governo.
O primeiro passo é que haja lideranças, tanto na Palestina quanto em Israel, que estejam comprometidas com um processo pós-desastre de 7 de outubro e pós-desastre da guerra de Gaza. Eu acho que a grande discussão hoje é qual liderança israelense e qual liderança palestina estão cacifadas para fazer isso.
Ambos os lados ficam dizendo que o outro lado não está comprometido, mas o problema é que você tem lideranças palestinas presas, que são importantes. E, ao mesmo tempo, o fortalecimento da extrema-direita em Israel desde 2010, criou um grupo ali que não está nem um pouco disposto a negociar com os palestinos. Só que chegou-se a um ponto existencial, tanto para Israel quanto para os palestinos.
E é algo que você enxerga acontecendo no curto ou médio prazo?
O governo israelense vai cair no curto prazo, e vejo também que o pré-requisito de negociação com o futuro palestino passa por uma transição do Mahmoud Abbas [presidente da Autoridade Palestina] para outra pessoa. O problema é quem é essa outra pessoa.
Talvez não pareça, mas hoje existe um medo existencial dos israelenses, no sentido de que aquele pacto feito entre o Estado, as suas forças de segurança e a população, foi quebrado. No dia 7 de outubro, pessoas morreram e as forças de segurança não conseguiram chegar em algumas localidades até seis, sete horas depois. Isso foi um divisor de águas. Isso vai gerar uma mudança substancial em Israel a médio e longo prazo, no sentido de que essas fórmulas de pensar a existência em Israel, com um apartheid com os palestinos, não vai funcionar mais.
E, no caso dos palestinos, essa fórmula de bater e tentar segurar a resposta também foi catastrófica. A partir de agora é necessário criar uma coisa nova.
A dificuldade é buscar novas lideranças que possam lidar com essa realidade. Eu vejo que no lado israelense, o próprio Benny Gantz, que está no governo de coalizão, é uma liderança que pode assumir o futuro governo israelense. E, no lado palestino, a liderança mais importante está presa e condenada à prisão perpétua, que é o militante político do Fatah, o Marwan Barghouti. Eu já vi vários analistas políticos e ex-agentes do próprio Shin Bet [serviço de segurança interno] israelense falando que talvez a única saída seria trazer de volta o Barghouti para poder pensar um futuro para os palestinos.
E a única solução possível, na sua visão, é a de dois Estados?
Eu não vejo outra possibilidade. Você pode idealizar, e até tem gente muito competente idealizando. Como é que seria a solução de um único Estado? Nós daríamos para palestinos e para israelenses a cidadania? Isso não vai acontecer. Eu estive em Israel em 2017, a trabalho, e é muito evidente que Israel é um estado de bem-estar social para os judeus. Até os cidadãos israelenses que não são judeus, são cidadãos de uma outra categoria.
Eu vejo que a única saída é uma solução de dois Estados. E aí pode ter criatividade para pensar a segurança para os dois lados. Um Estado palestino desmilitarizado, um Estado palestino com forças internacionais em suas fronteiras… O principal limite para isso acontecer é a parte da elite política israelense que acredita mesmo que tem que retomar a Judeia e a Samaria como fosse a época de Davi. Aí não tem jeito.
Considerando uma hipotética eleição do Trump, você acha que esse cenário pode mudar? Pode haver uma reconfiguração do que vai acontecer, da postura de Israel?
Olha, é muito complicado. O Trump é muito pragmático, está muito ligado aos sionistas, e dependendo de quem estiver no poder em Israel, ele pode tentar forçar um acordo de paz, como tentou quando foi presidente e foi um fracasso total. Minha questão é que vai depender muito de quem estará à frente do governo israelense e da pressão dos aliados árabes.
E você enxerga uma possibilidade do Hamas estar aberto a uma solução de paz?
Com certeza! Tanto que há três anos, o Hamas já sinalizou que aceitaria as fronteiras de [antes da Guerra dos Seis Dias, em] 1967, o que é um avanço notável para um grupo que foi criado em 1988 e dizia “olha, isso aqui é a Palestina Sagrada, Israel não tem que existir”. Não assinou nada, não escreveu nada, mas sinalizou que aceitariam as fronteiras de 67.
Qual é o caminho para, passado do conflito, reconstruir Gaza?
A gente sabe que a guerra cria condições materiais e imateriais muito difíceis de serem reparadas. E no caso de Gaza, nós temos uma situação ainda pior, porque em 100 dias esse conflito se mostrou um dos mais violentos da história recente da humanidade. O deslocamento de mais de 2 milhões de pessoas, a destruição de mais de 50% das casas, a morte de 24 mil pessoas, em sua maioria mulheres, crianças, civis… Isso gera impactos infraestruturais, sociais, políticos e culturais.
Mas tem uma coisa que pode ajudar: dinheiro, muito dinheiro. Gaza é do tamanho aproximado da cidade de Belo Horizonte, não é uma área muito grande, mas é uma área superpovoada. Então, primeiro, é bancar uma reconstrução, e eu acho que existe disposição do mundo árabe, muçulmano e do mundo ocidental para isso.
O segundo ponto é a acomodação política. Desde 2007, Hamas e Fatah, os dois principais partidos políticos dos palestinos, estão rompidos. Existiram várias iniciativas buscando reatar esses laços, criar um governo de coalizão, mas não foi possível. Acho que agora existe uma possibilidade, mas para essa situação funcionar – e vários especialistas têm debatido isso –, o Hamas deve continuar existindo como agente político. E existe muita resistência por parte de Israel e dos seus aliados políticos.
O que dificulta muito é que esse atual governo israelense é completamente reativo, em razão da própria natureza dessa coalizão, que é formada por muitos partidos de extrema direita, religiosos. Eu acho que esse governo não está preparado para isso. Essa discussão pós-guerra, ela vai ter de vir de um outro governo, ligando a centro-direita com a centro-esquerda de Israel.