16 Fevereiro 2024
Todas as noites é preciso encontrar uma cama para dormir e todas as noites, conta Aisha, 24 anos, mãe de três filhos, “sou obrigada a colocar os meus filhos numa cama suja, contaminada, com medo de que eles pegam uma infecção, uma doença que não saberei como curar, porque não há remédios”.
A reportagem é de Majid Ramdan Al-Assar, publicada por La Stampa, 14-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O filho mais novo, Ahmed, sofre de uma malformação do sistema genital, teve que ser operado várias vezes antes da guerra. Agora ele precisaria de outra operação, mas não é sequer possível pensar nisso. Temos que sobreviver. Aisha perdeu o contato com o marido, que ficou preso no Norte, durante o primeiro êxodo da Cidade de Gaza. Ela espera que esteja vivo, ela atravessou a Faixa sozinha, de abrigo em abrigo, até aquele de Rafah, dentro de uma escola da UNRWA que ela pensava seguro, sob a égide da ONU. Não foi assim.
“Eu estava lá dentro com as crianças – conta – quando os tanques começaram a disparar, os projeteis explodiram, mesmo de longe nos atordoaram, peguei meus filhos pela mão e arrastei-os embora, para nos salvarmos a certa altura tivemos que passar por cima dos corpos dos mortos, caminhamos por cima deles. Foi um choque terrível. Desde então meu segundo filho acorda de repente todas as noites e chora, treme, pelo horror daquele dia”.
Aisha dorme numa mesma cama, uma cama improvisada, com os filhos Ahmed e Ali, que tremem e choram, sem possibilidade de trocá-los e sem poder trocar ou esterilizar lençóis ou o colchão. Eles dormem no meio da sujeira, com medo de adoecer. Conseguir comida e água e não ficar doente: é a luta diária das mulheres e das crianças em Rafah. Essa cidade de 150 mil habitantes é o terminal de um êxodo infinito do Norte, da Cidade de Gaza e finalmente de Khan Yunis. Um milhão e meio de pessoas que formaram filas e se moveram entre bombardeios contínuos, batalhas urbanas. Famílias que muitas vezes ficam sem os homens. Mortos, feridos ou presos. “A higiene é um problema enorme – confirma Noura al-Barawi –. Não temos fraldas para trocar as crianças, as poucas que se encontram têm preços exorbitantes, não temos condições de comprá-las, tive que usar bandagens para enfaixar os feridos, que chegaram com as ajudas humanitárias, cortei-as em pedaços e as usei assim”.
Noura também precisaria delas. Ela sofre de uma infecção urinária e precisa se trocar frequentemente para não piorar. “Tive que tomar comprimidos para interromper a menstruação, porque eu não sabia como me trocar”. Ao lado dela está Iman, de 30 anos, sozinha, com uma filha de dois anos. Queixa-se pela falta de fraldas e explica que usou “pedaços de pano e um saco plástico” para confeccioná-las ela mesma. Sofre, não está bem. Nos abrigos de Rafah espalham-se alergias e infecções devido à falta de água limpos, as mães lavam os filhos com espumas que irritam a sua pele delicada. Para as pessoas com deficiência é um inferno ainda pior. A guerra não poupou ninguém. Há crianças de todas as idades, feridas nas pernas ou nos braços, que sobreviveram, mas têm dificuldade para se locomover. Outras têm problemas mentais, muito comuns na Faixa de Gaza, devido aos traumas das guerras anteriores, o bloqueio de dez anos. Mas o conflito não tem piedade de ninguém, nem da sua infância nem das suas deficiências. Ahmed é uma dessas crianças, também encontrou refúgio em Rafah.
“Ele não come a comida que preparamos aqui – conta a mãe –. Não é adequado para ele, todos alimentos enlatados fazem mal para ele”. Ahmed tem problemas cardíacos, deveria comer alimentos frescos, frutas, verduras. E precisa de remédios, tratamentos específicos para evitar o agravamento da doença, tem problemas renais e auditivos também. Mas esses cuidados são um luxo para os deslocados. Vivem dia a dia, sem saber se conseguirão sobreviver à máquina de opressão e de bombas que os esmaga. Desde o início das operações terrestres tem havido um êxodo contínuo, de cidade em cidade, de refúgio em refúgio, rumo ao Sul, rumo a uma salvação que nunca chega. Não são simples deslocamentos, são viagens cheias de desgaste, sofrimento, perdas e amarguras. São viagens que fizeram vivenciar a todos os habitantes de Gaza a brutalidade da guerra, esgotaram as energias dos seus corpos e corações, murcharam as suas vidas.
Eles perderam entes queridos, casas e até dinheiro. Tudo o que haviam construído durante uma vida, as economias.
A guerra continuou a matar, depois veio a fome e até a sede. Nos abrigos se veem homens, muitas mulheres e crianças, exaustos pelas doenças que contraíram pela água contaminada, a única pouca água ainda disponível na Faixa, ou pela superlotação dos próprios abrigos. Rafah tornou-se um imenso campo de refugiados. A população aumentou dez vezes e o que é pior, vive no terror de ter que se mudar novamente, porque o ataque à cidade se aproxima.
A OMS lançou o alarme sobre uma possível propagação rápida das infecções, pois o sistema de saúde já não existe mais, quase todos os hospitais não têm mais condições de funcionar.
A organização reiterou os seus apelos para que cheguem mais ajudas, alimentos, medicamentos e combustível. E acima de tudo, é preciso água limpa, para lavar-se, para beber. Para poder trocar os próprios filhos que choram, sofrem e não entendem o porquê.
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O inferno de Rafah - Instituto Humanitas Unisinos - IHU