11 Março 2024
"Em outras palavras, revolução – em seu núcleo gerador – tem a ver com espiritualidade. Sem paciente e perseverante trabalho ‘espiritual’, a revolução carece de consistência e está condenada a esvaecer, a curto ou longo prazo", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Neste momento de mudanças em muitos modos de se pensar, é como se todos e todas estivéssemos entrando na antiga cidade grega de Tebas e nos defrontássemos com uma Esfinge que nos desafia e diz: decifra-me ou devoro-te. A Esfinge lança, por exemplo, a seguinte pergunta: você é exclusivista, inclusivista (ecumênico) ou pluralista?
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Você é exclusivista? Essa pergunta nos leva de imediato à antiquíssima teoria da guerra, que nos vem desde Heráclito, (entre os séculos VI e V a.C.), expoente da primeira escola filosófica grega, antes de Sócrates e Platão, que escreve: a guerra é a origem de tudo (em grego: ‘polemos patèr pantôn’). Para ele, a guerra é justa quando defende o princípio do particularismo da família, da propriedade, da pátria, da religião, da classe social, ou seja, do exclusivismo. Para ele, o exclusivismo é uma ‘lei cósmica’.
Eis a narrativa de Heráclito: Prometeu roubou o fogo do Olimpo para fundir ferro, fazer armas e com isso deslanchar o progresso humano. Pois, tudo tem sua origem no ferro e no fogo: as cidades, os países, as famílias, as propriedades, os ‘negócios’, as corporações, a vida social, enfim. É verdade, diz Heráclito, que as pessoas sofrem sob a lei da guerra, mas elas têm de se se conformar com a lei cósmica, que está além de nossa observação e visa criar a harmonia no universo. Isso, inevitavelmente, acarreta a necessidade da guerra.
O ferro governa o mundo, a guerra é um mal necessário. Como somos todos eventualmente ‘terroristas’, contrários ao ‘progresso’, por cedermos à tirania de nossas emoções, trata-se de fazer a guerra boa, a guerra justa, tanto fora como dentro de si. O ser humano tem que se guerrear a si mesmo, educar suas emoções (chamadas ‘paixões’) para ajustá-las à lei cósmica, como quem faz um treinamento militar. A pessoa pode chorar, mas tem que continuar o treinamento. É preciso desconfiar dos sentimentos e, sobretudo de suas raízes, as emoções. As emoções nos colocam fora de nós, fora do eixo normal da vida, num estado de menor controle racional. A emoção é capaz de aumentar o batimento do coração, provocar suor, rubor no rosto, diarreia, vômito, ela faz com que de repente fiquemos loucamente enamorados(as) ou resolvamos nos transformar em bombas vivas. É bom se premunir e até modificar certos hábitos para evitar emoções indesejadas e reações espontâneas. E, sobretudo, temos de cultivar verdades sólidas.
Ora, a verdade mais sólida é a verdade da guerra. Nada mais racional, nada mais verificável historicamente. Não tem jeito, a vida é assim. Quem conserva dentro de si a verdade sólida, tem o futuro na mão, pois está absolutamente convicto de que sua maneira de pensar é a única verdadeira e que todas as demais são falsas. Não têm direito de existir e devem ser combatidas. Eis o ‘pensamento único’ de Heráclito, o pensamento fundamentalista, o imperialismo ancorado na mente.
Essa filosofia sombria e estranha repercute na cultura ocidental até hoje. E, paradoxalmente, entra nela por meio do cristianismo. Já no fim do século II d.C., lideranças cristãs adotam a filosofia estoica com suas ideias de lei cósmica inalterável e incompreensível e com sua rejeição das ‘paixões’ ou, pelo menos, com sua fundamental desconfiança diante delas. O sentimento é algo perigoso. O estoicismo passa definitivamente para a ideologia ocidental por meio de autores famosos como Tomás de Aquino (século XIII), que ensina que existe uma ‘lei eterna’, uma lei que não estaria sujeita a nenhuma mudança, muito menos às ‘veleidades’ das emoções.
Mais tarde, nos tempos modernos, a ideia de Heráclito se seculariza com Hugo Grotius da Holanda, que ensina que não é preciso tomar em conta o que as pessoas sentem, querem, sofrem e desejam, mas o que a ‘lei eterna da guerra e da paz’ dita (De Iure Belli et Pacis, 1625). Através de Tomás Hobbes e John Locke, essas ideias desembocam finalmente nas terríveis ideologias do século XX, como o nazismo, o estalinismo, o franquismo, o salazarismo.
A China não passa ilesa. Num texto de 1936, intitulado Problemas estratégicos da guerra revolucionária na China, o líder chinês Mao Tse Tung escreve que, para chegar à paz perpétua, deve-se passar por uma guerra nova, não a guerra ordinária dos poderosos, mas a boa guerra, a revolucionária. Em suas próprias palavras: Para suprimir a guerra, só existe um meio: opor a guerra à guerra, opor a guerra revolucionária à guerra contrarrevolucionária. Estudando as leis da guerra revolucionária, nós partimos da aspiração à supressão de todas as guerras (citado por A. Badiou em seu livro Le Siècle, Seuil, Paris, 2005, p. 57-58). Mao Tse Tung mesmo dirige uma guerra durante mais de vinte anos, entre 1925 e 1949.
Qual a reação das sociedades? Precisa dizer que as discussões sobre guerra e paz, ocorridas, um pouco por toda parte, na segunda parte do século XX, provaram ser largamente insuficientes e até superficiais. Os gritos guerra nunca mais ganharam as ruas, mas ficaram nisso, por falta de argumentos definitórios. O atual poder hegemônico obedece fielmente ao paradigma de Heráclito: é preciso desviar o olhar das lágrimas das mulheres palestinas e fixar o olhar na Sua Eminência a Guerra, pois ela obedece à lei cósmica. Heráclito continua inalterado, após dois mil e quatrocentos anos.
Aprofundando a reflexão, chegamos à constatação que o ponto de partida da crença na organicidade da guerra reside no identitarismo. As culturas, nas quais nascemos, são exclusivistas, na medida em que respeitam as ‘particularidades’ (propriedade, dinheiro, família), sem atender às demandas gerais. Ora, essas particularidades são, por definição, exclusivistas, eventualmente mortíferas e guerreiras.
É fácil detectar esse identitarismo em ‘slogans’ que ouvimos hoje por toda parte, ou, pelo menos, ouvimos por muito tempo num passado não tão distante: Make America great again; Deutschland über alles; Vive la France; Brasil: ame-o ou deixe-o. Quando recuamos na história, nos vêm os ‘ecos’ das mais diversas particularidades, desde o Dieu veut das cruzadas, passando pelo extra ecclesiam nulla salus, stat crux dum volvitur mundus (o mundo gira, a cruz fica), tu es Petrus, o in hoc signo vinces de 314 (quando Constantino se ‘converteu’), até o fermez vos bataillons dos franceses em tempos de Napoleão, o Gott mit uns dos nazistas dos anos 1930 e o Por Deus e pela Pátria, do Brasil 1964. Será que os atuais problemas macropolíticos, entre Israel e a Palestina, Ucrânia e Rússia, Coreia do Norte e Coreia do Sul etc., não têm a ver com ‘identitarismo’?
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Passo para um segundo ponto: o inclusivismo (ou ecumenismo). Para iniciar, conto aqui algo de minha história pessoal. Nasci na Bélgica, numa família de forte tradição católica e passei por uma educação marcadamente católica. Em 1940, quando estava com dez anos, o exército alemão invadiu a Bélgica e observei, gravadas no capacete de um soldado alemão, as palavras Gott mit uns (Deus conosco). Era jovem demais para perceber que estava aí diante de uma ‘identidade mortífera’, expressão que encontrei – muitos anos depois – no título do livro Les identités meurtrières, do libanês-francês Amin Maalouf, atualmente secretário executivo da Academia Francesa de Letras. Esse livro me ajudou a me questionar sobre questões de identidade.
Penso que temos de passar, no interior de nossas consciências, por um (lento?) processo de distanciamento diante de identidades exclusivistas, que hoje se manifestam de modo tão patente nas relações entre o mundo ocidental e o ‘resto do mundo’, entre classes sociais, entre os grandes meios de comunicação e seu público, entre ‘representantes do povo’ e o povo real: tudo baseado no antiquíssimo princípio do exclusivismo, que constitui a marca registrada das formações políticas, sociais e culturais, imaginárias e simbólicas dos últimos milênios da história humana.
Um famoso dito do teólogo católico Karl Rahner, uma das principais influências do Concílio Vaticano II, resume bem a ideia do inclusivismo: cristão anônimo. Islâmicos, hinduístas, budistas etc. seriam cristãos anônimos. A expressão, por incongruente que seja (como logo observou o teólogo suíço Hans Küng), fez história e, não podemos negar, despertou energias.
Aqui, em Salvador da Bahia, por exemplo, cristãos se aproximaram de Mãe Stella de Oxossi (1925-2018), babalorixá do Terreiro de Candomblé Ilê Axé Opô Afonja, revelando simpatia com as religiões de matriz africana. Alguns viajaram a Canudos, no sertão baiano, onde uma comunidade sertaneja foi esmagada pelo exército brasileiro em 1897, outros chegaram mesmo a organizar uma viagem a Cuba. Tudo sob a égide do ecumenismo, que vai apontando horizontes novos, para além de fronteiras, tempos, países, religiões, culturas e mentalidades.
Podemos dizer que os/as ecumênicos/as seguem o roteiro de Abraão, que vai à procura da terra prometida, sem nunca chegar ao destino. Eles e elas vagam por eventos e programações, projetos e movimentos, sempre à procura de compreensão, abertura, fraternidade, perdão, ousadia, inclusão. Uma caminhada inconclusa. Nisso, eles e elas costumam encontrar incompreensão por parte dos tradicionais exclusivistas. Muitas participações em movimentos, muitas viagens e reuniões, muita andança em caminhos árduos, numa luta incessante contra preconceitos enraizados, fechamentos institucionais e mentais.
O movimento ecumênico começa em terras anglicanas, com a Conferência Missionária Mundial, organizada por missionários protestantes e anglicanos da Europa do Norte e da América do Norte, e realizada, no ano 1910, em Edimburgo, na Escócia. Seguem os Diálogos de Malinas, entre os anos 1921 e 1926, realizados entre o cardeal católico Mercier e o reverendo anglicano Lord Halifax, donde resulta a celebração anual de uma Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, tradição mantida até os dias de hoje. O entusiasmo cresce com a criação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, na Suíça, no ano 1948. A partir daquela data, surgem muitos movimentos, todos marcados por venturas e desventuras. Questões rituais, principalmente em torno do batismo e da eucaristia, causam problemas, por muitos considerados insuperáveis. Afloram questões como a do papado, do constantinismo, da ortodoxia, das heresias etc. etc. Mas o movimento avança.
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Hoje percebemos, com clareza crescente, que o ecumenismo não constitui o fim da caminhada, mas uma etapa no caminho. Na segunda parte dos anos 1960, teólogos luteranos como Karl Barth e Paul Tillich, ao tentar corrigir a conceituação de Rahner, começam a falar, embora ainda de modo tanto quanto impreciso, em pluralismo. Nos trabalhos de Tillich surge o tema do Espírito Santo, o que já pressupõe uma superação do inclusivismo. E o horizonte fica mais claro com a contribuição do teólogo norte-americano Roger Haight (nascido em 1936), que já é explicitamente pluralista. Há outros trabalhos sugestivos, como Teologia do pluralismo religioso: para uma leitura pluralista do cristianismo (Paulus, 2006), de José Maria Vigil.
Mas é a postura de Mahatma Gandhi, já na década de 1940, que contribui mais decisivamente à passagem para o pluralismo. Gandhi seria, na conceituação de Rahner um cristão anônimo, mas ele deixou claro que seguia princípios hinduístas (Satyagraha), e não princípios evangélicos. Ele se inspirou em princípios hinduístas como: trabalhar sem ira; sofrer pela ira do adversário; nunca retaliar; mas nunca se submeter, e foi por meio de um consequente comportamento Satyagraha que ele conseguiu a independência da Índia em 1947. Sem derramar sangue. A irradiação foi imensa. No Brasil, a não-violência ativa ou resistência não-violenta de Helder Camara se inspirou em Gandhi, como se evidencia em sua biografia. Aprendendo com Gandhi, Helder se tornou um bispo católico ‘plural’, que se inspirou, ao mesmo tempo, em Gandhi e em Jesus, e não encontrou nisso nenhuma contradição.
Descortina-se, aos poucos, uma nova perspectiva. Hoje, um número crescente de gente se define pluralista. Voltando à minha história pessoal, realço que, principalmente sob a influência do livro acima citado de Maalouf, já fazem vinte anos que, quando me perguntam se sou belga, respondo: nasci na Bélgica. É brasileiro, então? Vivo no Brasil. É católico? Sigo a religião católica. É missionário belga? Sigo, com prazer, o grupo dos missionários belgas. O que você é, então? Sou um ser humano.
O tema do pluralismo, hoje, ainda não conta com contornos claramente delineados, mas tem tudo para marcar a reflexão de muita gente ao longo do século XXI. Virá a exigir uma revisão de determinadas conceituações bastante acalentadas num passado recente, como missão, igreja, evangelho, não-violência ativa.
O tema vai exigir fôlego forte e disposição extraordinária, já que se trata
(1) de superar o paradigma que continua a orientar a macropolítica de nossos dias, o paradigma da exclusão,
(2) além de superar a espiritualidade da inclusão que constitui um passo necessário.
De modo que, em questões de práticas pluralistas, não se deve esperar grandes avanços num futuro próximo.
O tema é novo e a literatura a respeito ainda é muito escassa. Além disso, enraizadas disposições exclusivistas não se superam com alguns escritos e alguns posicionamentos. Sua superação postula um trabalho de formiga, uma lenta e paciente reorientação das consciências.
Graças a Deus, temos exemplos de algumas figuras pluralistas nos tempos que vivenciamos, como Gandhi (convivência entre hinduísmo e islamismo na Índia), Mandela, Martin Luther King (ultrapassagem de comportamentos racistas) e Hélder Câmara (ultrapassagem do flagelo da fome). Gandhi disse: o que eu fiz, todo mundo pode, e isso dá coragem.
A revolução, no sentido pluralista de Gandhi, Mandela, Martin Luther King e Hélder Câmara, é, em sua essência, não violenta. Ora, a história mostra que só revoluções não violentas são duradouras. Vejamos, por exemplo, o caso da Revolução Francesa, do fim do século XVIII, conhecida como uma das revoluções mais bem-sucedidas da história. A história dessa Revolução revela aspectos que não costumam ser tomados em conta. Quem o diz é ninguém menos que o filósofo alemão Hegel, em seu livro Fenomenologia do espírito (1806, reedições em muitas línguas), que estudou a fundo dita Revolução e pondera que uma revolução bem-sucedida é gestada no ‘silêncio do Espírito’ (com maiúscula, pois se trata do ‘Espírito Santo’ mesmo). Em seu núcleo gerador, não tem nada a ver com violência. A Revolução Francesa só ganha as ruas após se processar, em demorada gestação, no silêncio do trabalho pluralista e paciente de Diderot, Montesquieu, d’Alembert, Voltaire e outros, que aos poucos fecunda a opinião pública francesa. Hegel compara um revolucionário a um tecelão que pacientemente entrelaça e separa fios, até conseguir separar os fios de espírito alienado dos fios de Espírito verdadeiro (der wahre Geist). Um trabalho paciente, que pode demorar gerações.
Em outras palavras, revolução – em seu núcleo gerador – tem a ver com espiritualidade. Sem paciente e perseverante trabalho ‘espiritual’, a revolução carece de consistência e está condenada a esvaecer, a curto ou longo prazo. Toda e qualquer revolução ‘fatual’ (política, cultural, social ou econômica) tem de vir acompanhada de uma revolução ‘espiritual’, ou seja, de uma persistente transformação revolucionária de comportamentos cotidianos (ética, disciplina, respeito), sob pena de se perder na voracidade de gente habitada por um ‘falso espírito’, a se aproveitar da oportunidade. A perda da dimensão espiritual de uma revolução é fatal.
Toda revolução verdadeira é pacífica. Ela é ativa e não violenta, como Hélder Câmara costumava dizer. E é paciente, como Hegel dizia. É um trabalho de ‘tecelão paciente’ a separar fios de ‘espírito alienado’ de fios de ‘Espírito verdadeiro’. Ela sabe distinguir entre acontecimentos passageiros, na superfície, e movimentos de fundo. Ela fica atenta a sinais que aparecem no horizonte, enquanto procura enxergar, em tudo, o emergir de algum sinal de convivência humana e fraternidade entre as pessoas.
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Para além do ecumenismo. Artigo de Eduardo Hoornaert - Instituto Humanitas Unisinos - IHU