A seguir, a antropóloga Anna Tsing mostra exemplos de como as ações humana e não-humana mudaram a face da Terra
Uma das evidências que indica que a humanidade vive hoje uma nova era geológica, o antropoceno, é a mudança climática. Alguns cientistas consideram que os efeitos climáticos extremos indicam igualmente outro fenômeno: um novo regime climático. Apesar da correlação existente entre antropoceno e mudanças climáticas, o antropoceno, segundo a antropóloga Anna Tsing, é "muito mais coisas, inclusive a extinção do número em massa de espécies, a disseminação de toxinas, de radioatividade, ameaças a ecologias de recifes e corais, de florestas tropicais, e tem um vínculo inextricável entre injustiça social, de um lado, e a destruição ambiental, de outro".
Anna Tsing coordena o projeto digital colaborativo "Atlas Selvagem: O Antropoceno-Mais-do-que-Humano", desenvolvido por pesquisadores e artistas de vários países em parceria com a Stanford University Press, que apresenta 79 relatórios de campo sobre "os efeitos selvagens da construção de infraestrutura, ou seja, sobre projetos que mudaram as paisagens terrestres, aquáticas e aéreas" ao longo dos últimos séculos. Esses projetos, segundo ela, fazem produtos da “ciência do fracasso”, que contribuiu para a emergência do antropoceno.
Os relatórios, explicou ela na conferência "Atlas selvagem: novas ecologias no antropoceno", ministrada virtualmente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em 17-05-2022, têm como finalidade argumentar que "o antropoceno é granular, ou seja, construído de vários remendos ecológicos" que estão diretamente ligados aos projetos de infraestrutura que modificam o ambiente. De acordo com ela, alguns projetos de infraestrutura modernos são "perigosos para a vida na Terra" e, portanto, "ao invés de anunciarmos que tudo que é avançado é excelente, devemos ter cuidado com o que pedimos que as infraestruturas façam. Elas podem destruir simbioses frágeis através das quais a vida na terra ganha a sua resiliência". Entre os exemplos, ela destaca "fontes energéticas perigosas; plantações, monocultura e ecologias simplificadas; transporte transcontinental de patógenos e materiais vivos; drenagem de aquíferos e construção de barragens; aglomeração comercial de animais e [a geração de] resíduos não biodegradáveis".
Uma forma de barrar determinados empreendimentos ou encontrar soluções a partir de uma intervenção política e social, acrescenta, é criar planos de trabalho que envolvam pesquisadores e atores de várias áreas. "Precisamos de uma diversidade de conhecimentos e formações para contar direito o antropoceno."
A seguir, publicamos a conferência ministrada no Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo, no formato de entrevista.
Anna Tsing (Foto: Edgeeffects)
Anna Tsing é professora de Antropologia na Universidade da Califórnia, Santa Cruz e é membro da American Anthropological Association, da American Ethnological Society e da Association for Asian Studies. É graduada pela Universidade de Yale e mestre e doutora pela Universidade de Stanford.
IHU – O que são ecologias selvagens?
Anna Tsing - Selvagem, no meu uso, se refere a respostas não-humanas a projetos humanos que estão fora do controle humano. Viver com ecologias selvagens requer ouvir o tipo de histórias que reprimimos ou varremos para “debaixo do tapete”. Aprendemos a acreditar nos impulsionadores do progresso que nos contaram somente seus sonhos para construção e design, mas não nos contaram sobre os efeitos selvagens perigosos que podem pôr em perigo a vida como nós a conhecemos.
Ao invés de prestar atenção ao que está lá [no território], os arquitetos do antropoceno simplesmente passaram por cima da terra, foram imprudentes na sua destruição e ainda o são. Se quisermos sobreviver – ou seja, sobrevivermos juntos, não um contra o outro –, vamos ter que começar a ouvir um ao outro, as linhas de diferenças e até mesmo as diferentes espécies.
Pense por um momento no trabalho de arquitetos e designers. Talvez eles precisem do que no Japão se chama de “sociedade do fracasso”, ou seja, uma ciência do que está dando errado. Ao invés de simplesmente ouvir aos impulsionadores de projetos, precisam prestar atenção aos habitantes da Terra expressos através de efeitos selvagens. Analisar problemas técnicos [de um projeto] nunca é suficiente porque eles constroem ecologias selvagens perigosas em todas as nossas soluções. Se assumirmos que as soluções técnicas são neutras, nós repetiremos os nossos erros. De fato, é aí que entram todas as áreas da academia, assim como o conhecimento de várias áreas. Precisamos de humanistas, cientistas sociais e artistas ao invés de simplesmente engenheiros ou projetistas ou designers [para trabalhar nos projetos]. Para entender os efeitos selvagens da construção dos nossos projetos, precisamos prestar a atenção nas características estruturais e sistêmicas do mundo ao redor de nós.
IHU – O que é o Atlas Selvagem: O Antropoceno-Mais-do-que-Humano?
Anna Tsing - O projeto digital colaborativo Atlas Selvagem: O Antropoceno-Mais-do-que-Humano reúne 79 relatórios de campo sobre os efeitos selvagens da construção de infraestrutura, ou seja, sobre projetos que mudaram as paisagens terrestres, aquáticas e aéreas. Esses relatórios são a entrada de uma “ciência do fracasso” para o antropoceno. O nosso projeto não é apenas uma coletânea; é uma estrutura analítica que vocês poderão usar para pensar nos seus próprios projetos de design. Oferecemos vários eixos com os quais é possível explicar a proliferação de ecologias selvagens perigosas junto com infraestruturas do antropoceno.
Primeiro, considere como a infraestrutura se encaixa nas economias políticas para mudar a superfície da terra: não é apenas um poço de água profunda que está sendo perfurado; tem havido um programa de perfuração de aquíferos em toda a Terra. Nesse sentido, o Atlas mostra todo tipo de construções de infraestrutura que mudaram a superfície da Terra, que nós chamamos de invasores de multiespécies, governança de terraformação, capitalismo industrial e a grande aceleração. Vou explicar isso mais tarde. De todo modo, os projetistas de infraestrutura deveriam estar trabalhando com historiadores, antropólogos e outros que conhecem algo sobre as ecologias selvagens.
Um segundo fator a ser considerado é o tipo de trabalho que esperamos das infraestruturas modernas. Muito desse trabalho é desnecessariamente perigoso para a vida na Terra e nós o permitimos, em parte, porque não estamos prestando atenção [no que está sendo feito]: fontes energéticas perigosas; plantações, monocultura e ecologias simplificadas; transporte transcontinental de patógenos e materiais vivos; drenagem de aquíferos e construção de barragens; aglomeração comercial de animais; resíduos não biodegradáveis; aceleração de todos os processos acima. Ao invés de anunciarmos que tudo que é avançado é excelente, devemos ter cuidado com o que pedimos que as infraestruturas façam. Elas podem destruir simbioses frágeis através das quais a vida na Terra ganha a sua resiliência.
Uma terceira questão a ser considerada são os próprios não-humanos. Estamos tão acostumados a pensar os não-humanos como ferramentas passivas e recursos que esquecemos da sua adaptabilidade e poder. No entanto, eles estão se adaptando em todo o mundo às infraestruturas que os humanos fazem. No processo, se tornam colabores perigosos na destruição do meio ambiente. Pensem em quão rapidamente o vírus da Covid-19 evoluiu “trabalhando junto” com resistência política contra vacinas bem como a sociologia das multidões. Muitos dos não-humanos passaram de parceiros em condições de vidas mais do que humanas para ameaças graves. Nós não ouvimos cuidadosa e suficientemente suas histórias. Além disso, especialistas são teimosos. Com frequência, eles acham que sabem todas as respostas e consultam somente uma faixa muito estreita de especialização. Às vezes, mesmo nas suas áreas, eles discriminam por nacionalidade, raça, religião e gênero. Além das suas áreas, eles tendem a desprezar tudo que não sabem. Nos EUA, o governo e as universidades conspiram para promover ciência e tecnologia e jogam as humanidades, artes e ciências sociais no lixo. Como resultado, soluções para os nossos problemas prementes perdem completamente aspectos históricos e etnográficos interpretativos, acrescentando erros acima das falhas. Além disso, os acadêmicos desprezam o conhecimento igualmente empírico, especialmente daqueles grupos de fora da academia, em particular o dos desfavorecidos, como comunidades indígenas. Temos aceitado um espectro pequeno e estreito da pesquisa empírica baseada em evidências. Os efeitos selvagens perigosos só vão aumentar devido a essa teimosia que recusa o conhecimento e a análise última. Neste contraste, o projeto do Atlas busca reunir relatórios de campo de vários tipos de observação empírica em linhas de formação e especialização. Esse é o começo de uma “ciência do fracasso” adequada para o antropoceno. Nós não podemos saber o que deu errado se dispensarmos todo o conhecimento de alguém que não se parece conosco.
Atlas selvagem: novas ecologias no antropoceno
IHU – Quais são as conclusões dos relatórios de campo publicados pelo Atlas Selvagem?
Anna Tsing - Deixe-me introduzir adequadamente o Atlas Selvagem. Esta é a capa, no site da Stanford University Press:
Desenhamos uma ecologia selvagem na tela do seu computador durante a pandemia, com pequenos vírus espinhosos e células morrendo.
Na página, as pinturas dos seres selvagens discutidos no Atlas flutuam, se movimentam e balançam na tela. Para ler o relatório de campo, basta clicar nos caracteres dos seres peludos ou arqueológicos, como vulcões, ou elementos como o fósforo. O Atlas leva vocês a uma viagem conceitual, uma viagem com a intensão de treinar vocês na “ciência do fracasso” do antropoceno. Todos os relatórios do Atlas demonstram os terrores dos nossos tempos. O relatório do biólogo Peter Funch é sobre os animais que são encontrados na água potável clorada que eu bebo em Santa Cruz e, possivelmente, vocês bebem também no Brasil. O cloro mata as bactérias, mas não os animais. Então, esses pequenos animais seguem vivendo. Este é um efeito selvagem, não-humano, do tratamento de água urbana. Entretanto, ele não é particularmente prejudicial. A maioria de nós vive muito bem com o sistema digestivo cheio de animais. É o tipo de sistema selvagem que nos ensina a tolerância a outros seres; ao invés de buscar eliminá-los, nós podemos aprender a conviver com eles.
No mesmo espírito de viver juntos, vamos considerar as cegonhas Malibu, em Kampala, capital da Uganda, conforme estudadas pelo antropólogo Jacob Doherty. Os urbanistas as odeiam: elas são feias e defecam nos carros das pessoas. Mas os catadores que reviram o lixo buscando materiais recicláveis valiosos as adoram. As cegonhas comem o material orgânico que estava encobrindo materiais mais robustos que têm valor de mercado. Prestar atenção sugere não nos livrarmos das cegonhas. Infelizmente, nem todos os efeitos selvagens são benignos e precisamos aprender a parar de ignorar os seus perigos. Assim, o primeiro passo que observamos no Atlas é prestar atenção às histórias que estabeleceram ecologias particularmente perigosas, como os programas políticos e econômicos que têm produzido algumas das ecologias selvagens mais perigosas do mundo. No Atlas Selvagem, chamamos esses programas históricos de detonadores do antropoceno porque eles o detonam em todos os seus horrores. Cada um acontece devido a um conjunto de conjunturas históricas, mas nenhum está congelado em um período determinado; cada um continua no presente, se proliferando ou proliferando seus efeitos selvagens perigosos.
IHU – Como os programas de infraestrutura contribuíram para a emergência do antropoceno?
Anna Tsing - Para explicar como os programas históricos de construção de infraestrutura detonam o antropoceno, o Atlas busca tanto mostrar quanto contar [como isso aconteceu e acontece]. O arquiteto e artista FeiFei Zhou fez quatro colagens com referentes históricos reais, um para cada um dos nossos quatro detonadores. Ele desenhou esta imagem (na página abaixo) para mostrar a invasão multiespécie, com inserção de dois artistas indígenas.
A história pode ser lida a partir da direita, em que abre com a invasão europeia das Américas. A imagem cruza espaço e tempo. Por trás dos navios espanhóis, vocês veem a representação dos chamados navios negros do Comodoro americano Matthew Perry, com o qual ele invadiu o porto de Tóquio no século XIX. Atrás, está uma estação experimental agrícola australiana no século XX, no Norte da Austrália e, próximo dela, uma fazenda de salmão do século XXI, deslocando a pesca indígena. À medida que se avança para o interior [da imagem], surgem mais cenas: a batalha do avô de um dos artistas aborígenes australianos com os invasores britânicos. Observem as árvores de eucalipto e os cupinzeiros alaranjados. Este é um mundo multiespécie sendo invadido. À esquerda está o Amazonas invadido pelos pecuaristas que derrubaram as árvores, com cenas de pecuaristas na América do Norte e uma geleira. Talvez vocês possam ver a invasão multiespécies como um programa para a construção de infraestrutura, gerada por eventos históricos, mas ela não é limitada a um determinado período. Ainda estamos sob as rédeas desse programa.
As paisagens dos detonadores do antropoceno no Atlas são desenhadas com pequenos pontos, onde o espectador pode encontrar os seres discutidos no Atlas. Eles representam as doenças europeias letais introduzidas na América do Norte por invasão europeia, o sapo cururu invasor que se estabeleceu na estação experimental agrícola australiana, introduzido supostamente para comer as larvas que estavam prejudicando as plantações de cana-de-açúcar dos colonos. Entretanto, os sapos não tocaram nas larvas, mas, ao invés disso, se proliferaram na paisagem, matando os animais nativos. Ao fundo [da imagem], temos os pastos introduzidos pelos colonos na América Latina, deslocando os povos indígenas e as florestas.
O relatório de campo da antropóloga porto-riquenha Rosa Ficek sobre as pastagens invasoras plantadas na América Latina mostra como as raízes dos pastos impedem que as árvores das florestas brotem. À medida que os pastos se espalham, as florestas recuam e, com elas, os povos indígenas e afrodescendentes que chamavam a floresta de sua casa. Os pastos se tornam invasores. Isso é o “antropoceno-mais-do-que-humano”, nos quais os não-humanos – neste caso, as pastagens – se tornam colaboradores no deslocamento de comunidades humanas e não-humanas.
Esta é uma pintura do sapo cururu invasor [abaixo], do artista aborígene australiano Russel Ngadiyali Ashley, que decidiu focar sua pintura não apenas nos sapos mostrados à direita, mas também nas goannas, lagartos monitores que são os ancestrais e alimento para esse clã.
Sapo cururu, do artista aborígene australiano Russel Ngadiyali Ashley
Ashley não é acadêmico nem artista urbano; ele vive em uma comunidade indígena isolada e generosamente pintou e desenhou para o Atlas. Na pintura, ele mostra como o sapo cururu afetou seu povo. Os grandes lagartos ocupam a principal parte da pintura, onde as pessoas estão celebrando, cantando, para reconhecê-los como figuras ancestrais. Entretanto, os goannas estão desaparecendo devido a presença dos sapos cururus, que têm uma glândula venenosa no pescoço. Os predadores, tais como os goannas, morrem se pegarem os sapos cururus. Como vocês veem na pintura, os homens estão tentando afastar os sapos cururu, mas sem sucesso. Esse é um ser selvagem perigoso. No Atlas, não temos medo de histórias aterrorizantes; nós queremos contá-las da maneira mais bonita possível.
Vou mostrar mais um cenário de detonador de antropoceno. Este mostra o programa de construção de infraestrutura que chamamos de governança de terraformação, o Império (no link abaixo, na parte inferior da imagem), e inclui uma inserção do arquiteto ganês Larry Botchway, mostrando os efeitos dos contratos corporativos dos pequenos proprietários de dendezeiros ganeses que fazem os proprietários de terras serem os trabalhadores das plantações.
A inspiração para essa paisagem [inferior da imagem] é a história do Sul e Sudeste da Ásia, assim como da África. A reconfiguração de terra para as plantações coloniais e água para o comércio e governança remodelou a superfície da terra. À esquerda, as plantações de teca [uma espécie de árvore de madeira], das quais os camponeses foram convidados a cuidar em troca de alguns anos de culturas de subsistência, como a mandioca. Na direita [da imagem] vemos os terrores do comércio escravagista no Atlântico e os navios e a exploração e comércio colonial.
A gestão de água colonial também gerou efeitos selvagens. O historiador Michael G. Vann descreve a praga de ratos que surgiu no Vietnã quando os franceses construíram os esgotos modernos. Os ratos adoravam os esgotos. Era um ultraje para os franceses porque a cidade branca era imaginada como uma vitrine de progresso em contraste com a cidade nativa escura. Mas os ratos se proliferaram nesses esgotos modernos. O que estamos construindo nos nossos projetos de arquitetura e design? Estamos prestando atenção nos efeitos selvagens?
A construção britânica de rodovias conseguiu mudar e transformar o Delta de Bengala, transformando a bacia de arroz do Sul da Ásia em um terreno baldio devastado pela fome, como explicado em um dos relatórios. O Delta era plano e rico, um convite perfeito para investidores londrinos, assim que as ferrovias se tornassem em uma possibilidade. Mas as linhas das ferrovias bloquearam o fluxo de água. Antes disso, novas terras eram construídas todos os anos por sedimentos, impedindo os proprietários de controlar as áreas férteis. O Delta era um lugar onde os imigrantes vieram fazer a sua fortuna. Depois das ferrovias, o fluxo de sedimentos diminuiu, os proprietários de terra assumiram o controle e o que antes eram córregos se transformou em lagoas estagnadas. Este é um lugar perfeito para a proliferação do aguapé introduzido, que prospera em águas paradas. O aguapé cobriu os arrozais e estimulou as doenças transmitidas por organismos pela água. O Delta se transformou em um exportador em massa ao invés de um importador de arroz em massa. Quando as cadeias de suprimento foram cortadas na Segunda Guerra Mundial, os donos de terra monopolizaram os estoques restantes e aí a fome se instalou. Os efeitos selvagens das infraestruturas são importantes para as possibilidades de vida. Isso é tudo que posso dizer sobre os detonadores do antropoceno. Estimulo vocês a explorarem o Atlas.
IHU – O que são os pontos de inflexão apresentados no Atlas?
Anna Tsing - Estamos chamando a atenção aqui para os tipos de trabalhos esperados do ambiente construído. Frequentemente, esperamos que o ambiente construído bana tudo [que existe antes da construção], exceto o que planejamos para ele. De fato, quanto mais esperamos esse banimento, mais efeitos selvagens perigosos estimulamos. Os termos que usamos no Atlas para tippers são palavras de uma sílaba das palavras nórdicas e alemãs do idioma inglês para expressar os tipos de trabalho que as infraestruturas e o ambiente construído podem fazer. Leiam cada uma delas [na imagem abaixo] como um verbo.
Esses são tipos antigos e essenciais de trabalho, mas descobrimos uma forma de transformá-los de formas que melhoram a vida para ameaças perigosas à vida, como nós conhecemos. Considerem queimar (to burn). Os humanos sempre queimaram; faz parte do legado da nossa espécie queimar, mas a queima de combustíveis fósseis mudou tudo, incluindo o clima do nosso planeta. No Atlas, recomendamos um conjunto de vídeos curtos para mostrar o poder desses modos de trabalho transformados pelas infraestruturas modernas. Vejam, esta imagem [abaixo] não tem nada de mais. É uma chama de gás, mas é como se a chama de gás abrangesse o mundo.
Muitos dos nossos vídeos são assim: mostram os mundos estranhos que nós criamos, construindo formas de trabalho de infraestrutura que destroem a vida.
Feral Atlas: The More-Than-Human Anthropocene:
O nosso relatório tem a coautoria da artista Anne-Sophie Milon e do geólogo Jan Zalasiewicz. Ele é o chefe do grupo de trabalho sobre antropoceno, que está decidindo se este deve ser uma época geológica oficial. No relatório de campo, ele explica os impactos diferenciais do dióxido de carbono extra nas diferentes ecologias. Milon, nas suas pinturas, torna isso vívido, como na pintura [abaixo] na qual o dióxido de carbono é imaginado como uma nuvem roxa.
Nuvem roxa de dióxido de carbono, de Anne-Sophie Milon
O relatório de campo mostra uma forma de como a “ciência do fracasso” do antropoceno pode trabalhar nas áreas de especialização. Neste caso, um artista e um geólogo se uniram. Mais um ponto de inflexão, ou seja, uma mudança de estado mediada pela infraestrutura.
Essa é uma foto [imagem abaixo] de um poema que ilustra o que chamamos de lisura e velocidade. Ela mostra a construção de um aeroporto. O que aparece na imagem é a superfície lisa de um aeroporto em construção.
Raramente pensamos os efeitos dessas superfícies lisas, exceto para permitir que nossos veículos andem mais rápido. Vocês se surpreenderiam com o número de efeitos selvagens que essa lisura oficial estimula. Uma que me pegou de surpresa é o efeito selvagem da infraestrutura marinha gerado pelas plataformas de gás. As plataformas e outras estruturas marinhas proporcionam superfícies subaquáticas lisas, que são raras na natureza.
IHU – Qual é a capacidade dos não-humanos de se transformarem?
Anna Tsing - Vamos voltar ao terceiro eixo de análise do Atlas sobre a capacidade dos não-humanos de se transformarem, tornando-se colaboradores selvagens do antropoceno na destruição ambiental, das piores maneiras.
No Atlas, utilizamos o termo “qualidade selvagem” para descrever as capacidades dos não-humanos de transformarem suas interações com ambientes construídos pelos humanos e se tornarem seres selvagens. Há alguns agrupamentos de qualidades selvagens que encontramos enquanto os seres descritos no Atlas [ver imagem abaixo].
É um pouco difícil encontrar um eixo de análise, então, deixe-me tomar um momento, mostrando a vocês como é possível isso. Esta é a imagem [no link abaixo, na parte superior da imagem] de abertura de um trabalho de campo de uma antropóloga afro-americana chamada Paulla Ebron, com relação às ecologias selvagens dos navios de escravos do comércio do Atlântico com seres humanos escravizados.
O mosquito Aedes aegypti, que transmite um vírus perigoso, veio para as Américas nesses navios. Os pesquisadores pensavam que os mosquitos eram apenas levados para o novo mundo, mas ocorre que eles se transformaram nesses navios, e de uma forma que realmente é importante. O Aedes aegypti da África vive em buracos nas árvores, onde raramente interage com humanos. Nos navios de escravos, seja por evolução ou hibridização com mosquitos do Mediterrâneo, o Aedes aegypti se transformou em algo novo: um mosquito que somente convive com humanos e assim transmite eficientemente a febre amarela e outros vírus de uma pessoa para a outra. Essa foi uma nova cepa que se disseminou nas Américas, transmitindo doenças de volta para a África e para a Ásia. Ebron discute as condições das viagens para as pessoas e para os mosquitos. Os terrores para os seres humanos estavam ligados à proliferação de mosquitos. As pessoas escravizadas a bordo não tinham condições de espantar os mosquitos e, enquanto isso, os mosquitos mudaram. A evolução rápida é a qualidade selvagem que chamamos de “superpoderes” no Atlas.
Um dos temas relacionado a isso é o relatório sobre os sapos cururu, que comentei anteriormente, porque estes passaram a ter pernas mais longas para se locomoverem nas estradas de asfalto e para se espalharem pelo país. Essa é uma outra forma de ler esses relatórios de campo, mantendo o foco na granularidade dos nossos ambientes planetários. Esse é o trabalho chave para o Atlas Selvagem.
Isso me traz de volta à teimosia dos especialistas e como o Atlas trabalha contra isso. As ligações horizontais que são possíveis entre os relatórios de campo e as mudanças observadas nessas espécies de animais abrem discussões em áreas de especialização. Esse é um dos principais motivos pelos quais escolhemos um projeto digital ao invés de [publicarmos] um livro. Ligações horizontais se tornam muito mais possíveis no ambiente digital. Muitos dos nossos seres selvagens têm inspirado mais do que um relatório de campo, geralmente envolvendo modos díspares de produção de conhecimento.
IHU – Pode dar outros exemplos?
Anna Tsing - Considerem o Kudzu, uma videira de folhas grandes originalmente do Japão que encontrou compra no Sul dos EUA, especialmente em antigas plantações de algodão erodidas ao longo das estradas e em outros ambientes profundamente alterados pelos humanos.
Botânicos contribuíram com uma descrição das qualidades biológicas que deram ao Kudzu o sucesso em dominar as paisagens alteradas pelos humanos bem como as formas como essas videiras desestimulam as plantas nativas assim que começam a dominar o ambiente. Mas os cientistas não conseguem dar uma ideia para os organismos da mesma forma que a fotógrafa sueca Helene Schmitz, que contribuiu com uma série de fotografias assombrosas do Kudzu [ver imagem abaixo] no Sul dos EUA, consegue.
(Foto: Helene Schmitz)
O Atlas Selvagem está argumentando que as fotografias dos relatórios científicos oferecem entendimentos complementares e discrepantes da ecologia selvagem do Kudzu. Além disso, os editores têm usado a função de qualidades selvagens para acrescentar algumas poesias e crônicas escritas a partir do Kudzu.
Alguns coautores do Atlas representam diferentes áreas. O ecologista Norlo Ishida e o antropólogo Daisuke Naito se uniram para escrever sobre o que aconteceu com os resíduos retirados de Fukushima depois que o reator nuclear foi destruído por um terremoto. Ishida havia iniciado um projeto no qual permitia que as pessoas trouxessem amostras de solos e outros materiais para que fossem testados para ver se tinham radioatividade. No processo, ele imaginou que os paisagistas estavam usando lascas de madeiras retiradas das árvores mortas pela radioatividade em Fukushima. Os paisagistas espalharam essas lascas em projetos públicos do Japão. O antropólogo Naito se envolveu no processo público e na ação judicial que se seguiu dessa situação. Juntos, escreveram sobre os dados ecológicos e o processo social decorrente. Naito convidou um fotografo ambiental que tem registrado a radioatividade nos itens do dia a dia para fornecer outras maneiras de ver [esses objetos] para o seu relatório.
Outro conjunto de seres selvagens apresentado no Atlas é o piolho do mar, um sanguessuga que obtém seu alimento do salmão e outros peixes. Uma das antropólogas documentou como a produção comercial de salmão em redes junta piolhos do mar. Mas os piolhos do mar, agora em grandes números, saem das redes onde se prendem aos salmões selvagens. Os cientistas de salmão constataram que o salmão selvagem jovem estava completamente coberto de piolhos do mar e os produtos químicos que os piscicultores usam para manter os piolhos afastados fazem parte do problema.
Outros pesquisadores também escreveram sobre outras doenças e parasitas dos salmões para o Atlas, ao passo que outros antropólogos focaram na forma global da criação de salmões e seus perigos, como os impactos para comunidades indígenas que vivem na costa da colônia britânica no Canadá. Esses povos indígenas têm dependido da pesca do salmão selvagem há milênios e agora o governo canadense arrendou trechos da costa para empresas de piscicultura comercial. Ativistas que mergulharam nessa região de fazendas de piscicultura filmaram a água sangrenta que estava sendo liberada das tubulações. Essa água está cheia de parasitas e organismos de doenças que ameaçam o salmão selvagem. As comunidades indígenas testemunharam rapidamente o declínio do salmão e dizem que há muito tempo seus ancestrais podiam caminhar sobre as costas dos salmões.
Tomados juntos, os relatórios nos ajudam a entender os efeitos dos selvagens na criação dos salmões. Este é o argumento do Atlas sobre pluralidade: somente muitos tipos de ecologias e conhecimentos tomados juntos podem mostrar o antropoceno.
Deixei de mencionar até agora a grande história do antropoceno para muitos estudiosos e comentaristas: a mudança climática. Longe de mim negar a sua importância, mas o antropoceno é muitas coisas, inclusive a extinção em massa do número de espécies, a disseminação de toxinas, de radioatividade, ameaças a ecologias de recifes e corais, de florestas tropicais, e tem um vínculo inextricável entre injustiça social, de um lado, e a destruição ambiental, de outro.
A mudança climática parece compreensível como único modelo planetário em função dos avanços dos cientistas da Terra, que têm mostrado como água, terra, ar e carbono circulam no globo. Entretanto, os elementos não podem ser entendidos como autônomos. Ao contrário, eles surgem em projetos globais de poder e lucro, se interpenetram e sobrepõem, se moldam uns aos outros. Isso é importante, mas não é suficiente. O Atlas Selvagem argumenta que o antropoceno é granular, ou seja, construído de vários remendos ecológicos, alguns dos quais descrevi hoje.
Esses remendos ou retalhos não podem ser entendidos como autônomos. Ao contrário, eles surgem em projetos globais de poder e lucro, eles se interpenetram e se sobrepõem, se moldam uns aos outros. Entretanto, é importante entender a sua dinâmica separadamente. Se nós nos importarmos com a justiça social, devemos começar a nossa análise com o remendo, com o retalho, onde vemos como a justiça e o meio ambiente se tornam um pacote. A criação de salmões beneficia as corporações multinacionais e priva comunidades indígenas do seu sustento. Enquanto isso, os remendos nos mostram também o que poderia ser feito.
Se não quisermos parques radioativos, nós devemos impedir que as árvores mortas por radioatividade sejam a fonte de madeira para o paisagismo. Cada relatório de campo do Atlas oferece insights sobre quais soluções são possíveis. Mas deixe-me voltar mais uma vez à diversidade e à inclusão. Elas são importantes para a justiça e para uma melhor ciência e política. Considerem os mosquitos que evoluíram nos navios de escravos no comércio transatlântico. Conhecer a sua identidade filogenética já foi um trabalho de amor feito pelos biólogos. Mas foi preciso de um antropólogo investigando a história da escravidão para entender as consequências [da transformação do mosquito] para as vidas das pessoas escravizadas, assim como a criação de ambientes de doença nas Américas. Da mesma forma, foi preciso um historiador para conectar as pesquisas sobre os aguapés e a fome no Delta do Bengala. Precisamos de uma diversidade de conhecimentos e formações para contar direito o antropoceno.
À medida que continuamos construindo infraestruturas, é importante considerar os seus efeitos selvagens. Este é um motivo de prestar atenção: a construção de infraestrutura oferece controle, mas também deve ceder. A nossa “ciência de fracasso” para o antropoceno sugere que devemos aprender a viver com os outros. Embora não haja como evitar essas ecologias selvagens, temos algumas escolhas a fazer, através das quais nós e outros aliados não-humanos possamos viver.