20 Janeiro 2016
“Estamos vivendo uma pandemia de zika sem saber, exatamente, como pará-la”, afirma o diretor do Instituto de Doenças Tropicais Natan Portella.
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“Temos de conceber que houve um fracasso no combate ao Aedes aegypti, porque ele está cada vez mais ao Sul e ao Norte, e vem se adaptando mais rapidamente do que estamos conseguindo contra-atacar”, diz Carlos Henrique Nery Costa à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, o médico ressalta que dada a relação entre o zika vírus e os casos de microcefalia, entre as próximas etapas a serem realizadas, está o desenvolvimento de "estudos para saber em que período da gestação uma inflação pode levar à microcefalia do feto, e qual a diversidade clínica desses casos, porque agora estamos vendo apenas casos extremos de encolhimento do cérebro, mas ainda não sabemos casos de abortos de fetos aconteceram por causa da doença".
Na avaliação dele, passados quatro meses desde que se diagnosticou a gravidade do zika vírus e se tem conhecimetno dos casos de microcefalia associadas à doença, duas estratégias centrais devem ser adotadas.
De um lado, afirma, provavelmente será necessário combater o Aedes aegypti com o uso de DDT [dicloro-difenil-tricloroetano], estratégia que foi “abandonada e demonizada décadas atrás”.
De outro, pontua, é necessário “trabalhar pesado em testes e diagnósticos, porque não temos informações sobre quais infecções são causadas pelo zika nem sabemos quais são as pessoas que adoeceram por causa do zika; sabemos de alguns casos, mas a maioria nem foi notificado, porque as pessoas nem procuravam o médico por causa disso. Também não sabemos quantas mulheres tiveram o zika e quantas o transmitiram; sabemos dos casos das mulheres que tiveram filhos com microcefalia. Então, tem um monte de conhecimento para ser adquirido e organizado”.
O pesquisador expliciou ainda que essas doenças tropicais estão, “provavelmente”, associadas a mudanças que ocorreram nos últimas décadas, como a “migração rural para as áreas urbanas, porque essa rápida migração não foi acompanhada de investimentos fundamentais para que as pessoas vivessem em ambientes saudáveis, e elas tiveram de se aglomerar em favelas e ambientes insalubres. Então, essas doenças estão ligadas a um processo de urbanização rápido e à pobreza”.
Carlos Henrique Nery Costa é médico, formado pela Universidade de Brasília – UnB. É mestre em Medicina Tropical e doutor em Saúde Pública Tropical pela Harvard University. Atualmente é coordenador Executivo da Rede Nordeste de Biotecnologia , diretor do Instituto de Doenças Tropicais Natan Portella, e supervisor da residência médica em Infectologia da Universidade Federal do Piauí - UFPI.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - A que o senhor atribui os surtos de dengue no Brasil, dado que essa era uma doença erradicada no país ente os anos 1920 e 1980? Que fatores contribuíram para que o Brasil se tornasse um foco para esse tipo de doença nos dias de hoje?
Carlos Henrique Nery Costa – O Brasil tem sido palcos de variadas doenças tropicais e isso está, provavelmente, associado com uma série de mudanças que ocorreram nas últimas décadas, entre elas a migração rural para as áreas urbanas, porque essa rápida migração não foi acompanhada de investimentos fundamentais para que as pessoas vivessem em ambientes saudáveis, e elas tiveram de se aglomerar em favelas e ambientes insalubres. Então, essas doenças estão ligadas a um processo de urbanização rápido e à pobreza.
Esse ambiente urbano se tornou ideal para vetores, porque eles evoluíram: o Aedes aegypti está evoluindo e se adaptando de forma cada vez mais rápida ao ambiente urbano e degradado, porque boa parte da população não tem acesso a saneamento básico. Se as pessoas não têm acesso à água, elas têm de estocar água, e esse é um fator que ajuda na proliferação do mosquito. Há também outros fatores subjacentes, como a baixa escolaridade: as pessoas que não são escolarizadas realmente não acreditam nas mensagens enviadas pela prevenção de saúde.
IHU On-Line - Como os órgãos responsáveis estão acompanhando esse desenvolvimento do Aedes aegypti? Como estão as investigações sobre o zika vírus no país, por exemplo?
Carlos Henrique Nery Costa – É tudo muito recente: só ligamos uma relação entre o zika e doenças infecciosas quando se disse que ele estaria associado à microcefalia. Então, sabemos da gravidade do vírus há três ou quatro meses. Por isso, nesse momento temos de nos organizar para combater o Aedes aegypti, que é a questão central para combater todas essas doenças. Nós estamos perdendo a guerra para o Aedes aegypti já nos casos de dengue; 2015 foi o ano com maior número de casos na história do país. Temos de reaprender o que fazer com esse bicho. Além desses aspectos que mencionei, temos de aprender a utilizar tecnologias adequadas para combatê-lo.
Nessa emergência da doença, o Ministério da Saúde se posicionou bem, porque essa não é a prática habitual no Brasil. A tendência é que os técnicos se escondam atrás de suas tecnologias e tentem encontrar soluções para combater as doenças, mas na verdade existe o problema de não saber como enfrentar essa questão, porque se trata de um problema recente e temos de aprender agora. Isso está sendo discutido de forma muito clara. O aspecto é mostrar que não sabemos o suficiente sobre o zika vírus e mostrar que estamos fazendo um esforço significativo para diminuir o contato com o Aedes aegypti de modo a ter uma inflexão na doença. Mas esse cenário é antigo e está relacionado a outros fatores, como falta de saneamento, habitação inadequada, o que faz com que o esforço atual tenha de ser muito maior.
Várias nações como os EUA já se movimentam nesse sentido. Já foi registrado o primeiro caso de microcefalia no Havaí, então lá também tem o Aedes aegypti, como no Caribe e em seguida ele vai ao Sul dos EUA. O mundo todo está preocupado com a emergência dessas doenças e sabe que será uma pandemia – já é uma pandemia, porque a América Latina está tomada, o Sul da Ásia está tomado. Estamos vivendo uma pandemia de zika sem saber, exatamente, como pará-la.
IHU On-Line - Quais são as dificuldades em combater o Aedes aegypti?
Carlos Henrique Nery Costa - Temos conhecimento, vontade e desejo de controlar o Aedes aegypti e temos de rediscutir o que fazer para combatê-lo. Uma estratégia que foi abandonada e demonizada décadas atrás, provavelmente terá de voltar, que é o uso de DDT [dicloro-difenil-tricloroetano]. Alguns ambientalistas vão ter de lidar com o DDT em breve, talvez tenha de se mudar a legislação etc. Tudo isso é matéria de debate e não há consenso no mundo científico.
Além disso, temos de ter outras estratégias para combatê-lo, como trabalhar pesado em testes e diagnósticos, porque não temos informações sobre quais infecções são causadas pelo zika nem sabemos quais são as pessoas que adoeceram por causa do zika; sabemos de alguns casos, mas a maioria nem foi notificado, porque as pessoas nem procuravam o médico por causa disso. Também não sabemos quantas mulheres tiveram o zika e quantas o transmitiram; sabemos dos casos das mulheres que tiveram filhos com microcefalia. Então, tem um monte de conhecimento para ser adquirido e organizado.
É preciso de investimentos públicos em pesquisas; a pesquisa brasileira tem de ser aprimorada, tem de ser mais competitiva e ter mais peso internacionalmente. Apesar de os cientistas brasileiros terem descoberto a ligação da microcefalia com o Aedes aegypti, a pesquisa brasileira tem de crescer mais.
Por enquanto, não existe um pacote de medidas, mas pensamos em ações que, usadas juntas, podem corrigir a situação. A falta de saneamento básico é de fato um problema, porque há acumulo de lixo no Brasil e no país ainda não se aprendeu a lidar com essa situação: as pessoas guardam pneus, objetos que acumulam água, e já sabemos que o Aedes aegypti se prolifera em água limpa e também em água de esgoto. Então, será que conseguiremos mudar a situação do saneamento básico do país em poucos anos? Será que conseguiremos mudar a consciência dos brasileiros em poucos meses em relação ao combate da doença? Vamos usar algum inseticida diferente? Porque não sabemos se esses aerossóis que o pessoal usa, funcionam; provavelmente somente para matar insetos adultos.
Trata-se mais de uma encenação do que de uma ação. A ação sobre os criatórios de larvas, sem dúvida, tem um efeito. Talvez tenhamos que resgatar a ideia que se usou em São Paulo nos anos 1960 e 1970, de usar aeronaves agrícolas em algumas situações extremas de surto e em locais localizados. É preciso um aperfeiçoamento geral das nações para lidar com o caso, porque se quer sabemos ainda quais são as medidas mais efetivas de erradicar o Aedes aegypti.
“Nós estamos perdendo a guerra para o Aedes aegypti já nos casos de dengue; 2015 foi o ano com maior número de casos na história do país” |
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IHU On-Line - Quais são os passos seguintes, dada a confirmação na relação direta entre o zika e a microcefalia? O senhor tem informações de como as pesquisas sobre a relação entre zika e microcefalia estão sendo realizadas no país e no mundo? Quais são as dificuldades em relação ao tratamento clínico epidemiológico de doenças como dengue, zika e chikungunia?
Carlos Henrique Nery Costa – Não existe nenhum tratamento disponível para esses vírus. As grandes empresas farmacêuticas estão procurando o agente para isso. Mas o problema é que o vírus tem uma ação muito rápida, ou seja, o período em que ele age é muito rápido e o que sobra é a reação inflamatória e localizada que leva, no caso do zika, a uma lesão como a encefalite. Na dengue, de outro modo, muda um pouco a patologia da doença.
Você me perguntou se o zika está associado à microcefalia. Sim, os dados apontam nessa direção, embora não tenhamos um estudo decisivo, porque ainda falta uma consolidação de estudos maiores, porque a ciência é construída a partir do maior número de observações. Certamente serão feitos novos estudos pela frente e testes em animais para saber como o vírus é capaz de gerar microcefalia, se é possível encontrar algum agente que seja capaz de diminuir o grau de inflação.
Também devem ser feitos estudos para saber em que período da gestação uma inflação pode levar à microcefalia do feto, e qual a diversidade clínica desses casos, porque agora estamos vendo apenas casos extremos de encolhimento do cérebro, mas ainda não sabemos casos de abortos de fetos aconteceram por causa da doença.
Os órgãos de saúde dos EUA conseguiram fazer um teste bastante efetivo na epidemia de 2007 e 2008 e imagino que eles estejam dedicados a organizar esse material científico para aplicação do teste em larga escala através de um teste rápido. Modernamente o teste rápido está se colocando como um instrumento excelente. Mas até lá temos alguns meses para que a tecnologia chegue e depois teremos de ver quais são as pessoas que se infectaram e quais dessas adoeceram para, a partir disso, dizer qual é o espectro clínico da doença e quais as verdadeiras manifestações.
Ainda não temos ideia da magnitude do problema. Algumas pessoas acham que no próximo ano o zika vírus será menos grave do que foi nesse ano, mas temo que será pior, porque o número de pessoas que iniciarão o período chuvoso com o vírus em 2016 é maior do que foi em 2015, o que sugere que teremos um ano bastante difícil.
IHU On-Line – O senhor comentou sobre a atitude adequada do Ministério da Saúde até o momento em relação aos casos de zika vírus. Contudo, de modo geral, como avalia a atuação dos órgãos responsáveis e do Estado de modo geral, dado a proliferação do Aedes aegypti?
Carlos Henrique Nery Costa – Realmente temos de conceber que houve um fracasso no combate ao Aedes aegypti, porque ele está cada vez mais ao Sul e ao Norte, e vem se adaptando mais rapidamente do que estamos conseguindo contra-atacar. Então, existiu um passado de desconhecimento, de negligência nacional e internacional em relação às tecnologias para combater o mosquito. Se nós tivéssemos tecnologias e não as tivéssemos utilizadas, ou se soubéssemos que tais ações deveriam ter sido feitas e não foram feitas, poderíamos definir o grau de falhas do Estado e das política públicas, mas o problema é que não temos essa “bola mágica” para dizer que o governo poderia ter atirado e não atirou.
Eu concordo com você que existem muitas falhas na saúde pública brasileira, de tecnologia, inclusive; o Brasil não se adaptou ainda à situação urbana dessas doenças e as tratamos como se elas ainda fossem doenças da zona rural, que surgem de forma silenciosa. Então, o passado condena, mas no presente, o Brasil reagiu bem e o Ministro da Saúde [Marcelo Casto] deu uma boa resposta ao dizer que não sabe o que fazer, mas que temos de colocar muitos recursos em estratégias para solucionar o problema. Além disso, o Brasil despertou contingentes de pesquisa no mundo, porque esse vírus não vai acabar em 2016.
Temos de quebrar paradigmas e um deles é acabar com essa história de que não se pode usar DDT. Também temos de pensar em tecnologias novas e testar políticas públicas – nós não temos o hábito de testar políticas públicas; as implementamos todas de uma vez e ficamos sem saber se elas produziram ou não o efeito esperado. Mas o importante é que a bandeira foi levantada por profissionais respeitáveis do Ministério da Saúde e da comunidade científica, e a resposta da sociedade tem sido à altura.
IHU On-Line – Qual é a situação de outras doenças tropicais, como a malária, a doença de chagas e a leishmaniose no país?
Carlos Henrique Nery Costa – O combate à doença de chagas teve um sucesso enorme a partir do uso de inseticida de efeito prolongado e acabamos com os “barbeiros”. Isso foi acompanhado de algumas mudanças, como por exemplo, o fato de quase ninguém mais viver em casas de taipa e as pessoas terem mudado de vida.
A malária teve uma redução substancial, mas no Brasil ainda tem um ou outro caso. Na África, no ano passado, se registrou o menor número de casos da história, então, isso sinaliza que a guerra contra a malária está sendo vencida.
Outro desafio para o Brasil diz respeito à leishmaniose, porque o calazar mata cerca de 200, 300 pessoas por ano. No país não temos estratégias de controle da doença e não é feito praticamente nada, porque não se sabe o que fazer.
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“Quando vamos conseguir organizar essa nação enquanto uma nação de um povo só, com políticas que sejam capazes de atender a todos?”
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Os casos de tuberculose estão estáveis, mas estamos preocupados com a emergência de bacilos muito resistentes.
O Brasil é a maior nação tropical do planeta e tem uma importância fundamental em relação ao tratamento das doenças tropicais, porque o que fizermos aqui vai repercutir em outras nações tropicais, como a África, o Sudoeste asiático e o chinês, onde vivem quase dois bilhões de pessoas. Temos um papel muito mais importante do que pensamos.
IHU On-Line - Em 2012, quando nos concedeu uma entrevista, o senhor comentou que estava sendo proposto à Sociedade Brasileira para o Progresso e a Ciência – SBPC, e à Sociedade Brasileira de Medicina Tropical – SBMT estudar a saúde nas favelas e grandes cidades tropicais. Como está essa questão? A saúde nas favelas e grandes centros está sendo estudada? O que está sendo constatado a partir desses estudos?
Carlos Henrique Nery Costa – Isso não andou muito, infelizmente. Tem sido devotada uma atenção especial, mas o estudo de forma organizada da questão da saúde nas favelas não avançou bastante. Analisar a saúde nesses ambientes, não se trata apenas de olhar para as doenças infecciosas, mas para outras situações, como violência, acidentes e mortes violentas de causa não intencional. Tudo isso reflete a desorganização e a aglomeração do espaço urbano e novos fatores sociais surgem: usuários de drogas, moradores de ruas, corrupção, falência de políticas públicas de controle da violência, gerando um ambiente novo para ser estudado pela comunidade científica.
Estamos num momento dramático em que os brasileiros vivem essa situação. Temos de sair dela e precisamos repensar o país de modo a integrar, por exemplo, São Paulo com Paraisópolis, uma favela imensa dentro da cidade. Com a divisão que existe hoje entre ricos e pobres, quando vamos conseguir organizar essa nação enquanto uma nação de um povo só, com políticas que sejam capazes de atender a todos? Esse é um momento fundamental para resgatarmos quais são os valores fundamentais do nosso país.
(Por Patricia Fachin)
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Pandemia de zika vírus. Perdemos a guerra para o Aedes aegypti? Entrevista especial com Carlos Henrique Nery Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU