20 Outubro 2023
"A escolha pacifista da Assembleia Constituinte. Uma emenda ao Artigo 11 da Constituição".
O artigo é de Maria Paola Patuelli, filósofa e historiadora italiana, publicado por Chiesa di tutti, chiesa dei poveri, 19-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Houve um tempo, no nosso passado, mas não tão distante, em que repudiar a guerra era considerado um propósito tão natural que acabou na Constituição italiana.
A primeira parte do artigo 11 afirma que “A Itália repudia a guerra como instrumento de ofensa à liberdade dos outros povos e como meio de resolução das controvérsias internacionais...”. A escolha do termo REPUDIA não foi imediato. Foi com emoção que, algum tempo atrás, vi uma minuta dos trabalhos da Assembleia Constituinte, preparatória para a redação do artigo 11º. No primeiro rascunho aparece o termo “rejeita”, depois apagado – a rasura é bem visível – e que se torna repudia, muito mais forte. Não é apenas um não, é um não dito com desdém, com repulsa. A Assembleia Constituinte era composta por homens e mulheres - poucas - vindos, quase na sua totalidade, do antifascismo ativo, marcado pela guerra, sofrida também em seus corpos, humilhados nas prisões, exilados, dilacerados por lutos, por familiares ou companheiros mortos. A indignação estava viva e termina na Constituição.
Teresa Mattei, uma das 21 Mães Constituintes, e a mais jovem, personificava a indignação na Assembleia. O amado irmão antifascista, Gianfranco, um cientista de grande valor, havia morrido numa prisão fascista. Ela, muito jovem, estuprada por um alemão. Lembro-me de suas palavras. Quando o artigo 11 foi aprovado definitivamente na Câmara, com o repúdio, nós 21 mulheres, juntas, descemos ao centro e dançamos de alegria, de mãos dadas. Um sentimento imediato, para ser comemorado. Os homens, mais calmos, ficaram sentados nos bancos, aplaudindo. Uma diversidade bem visível. Guerras, nunca mais. Depois de Hiroshima e Nagasaki, chega!
E Teresa Mattei, mesmo na última parte da sua longa vida, continuava o seu “grito” pacifista. Como vocês ainda ousam travar guerras? Lançar bombas? Matar? Um afastamento contínuo, desde a década de 1950, da celebração daquele seu dia, ela, jovem, com suas companheiras constituintes, todas, laicas e católicas, felizes depois de anos de terror.
Chega, disseram também muitas mulheres e alguns homens nos últimos dias na Piazza del Popolo, em Ravenna. A Casa da Mulher nos chamou de volta à praça, apenas com as bandeiras da paz. Nenhuma outra bandeira. Apenas uma citação claramente visível Entre vencer e morrer, existe uma terceira possibilidade, viver. Palavras que Christa Wolf faz Cassandra dizer. E um longo cortejo das Mulheres de Preto Tirem a guerra da história. Em sintonia com as mulheres israelenses e palestinas, que nestes últimos dias, juntas, dizem Que todas as armas se calem.
Nestes dias tão sombrios, já escuros devido à guerra em curso na Ucrânia – nos entristecemos principalmente, errando, pelas guerras próximas da gente, sabendo quase nada sobre as outras dezenas de guerras em curso - sou atormentada por questionamentos, que remetem a palavras, muito distantes e muito próximas. Volto a Tácito, o historiador romano que sofreu em silêncio, durante 15 anos, o totalitarismo do imperador Domiciano.
Após a morte de Domiciano, imediatamente tomou a palavra e escreveu o De Agrícola, uma obra dedicada ao seu sogro, governador da Bretanha. É claro que essa obra é uma biografia histórica e hagiográfica, mas contém uma passagem que é frequentemente citada por circunstâncias semelhantes às dos caledônios, derrotados pelos conquistadores romanos. Tácito faz com que seu líder, Calcago, diga ‘Fizeram um deserto e o chamaram de paz’. Romanos imperialistas, criaram o deserto. Tácito Pacifista? Seria um exagero de interpretação. Mas, sem dúvida, Tácito acusa a ganância do imperialismo romano, da qual Agrícola provavelmente tinha tentado escapar tentando governar com mansidão. É provável que Domiciano o tenha envenenado por esse motivo. A voz de Tácito é distante, mas evidencia as invariâncias da história que chegaram até nós. Aniquilar o inimigo? Humilhá-lo? Não, diz Tácito.
Se chegarmos mais perto de nós, e bastante, encontro uma fonte que me sugeriu Utopia com um questionamento. É a correspondência de Einstein e Freud, no verão de 1932. Questionamentos, dúvidas, por que a guerra? Será que algum dia a humanidade conseguirá sair disso? É um documento que não só testemunha o altíssimo nível alcançado pelo pensamento de dois intelectuais alemães, judeus, mas que nos fala, como se os autores estivessem aqui conosco, neste nosso tempo. Freud, ao responder a Einstein, a respeito da melhoria contínua dos meios de destruição, escreve que esse aperfeiçoamento poderia levar ao extermínio de um ou talvez de ambos os adversários e, por isso "... só nos surpreende que o recurso à guerra ainda não tenha sido repudiado por um acordo geral da humanidade". REPUDIADO. E ele se pergunta “Nós, pacifistas, quanto tempo teremos que esperar?”.
Freud alude depois a uma esperança sua que ele não considera utópica. Dois fatores poderiam levar ao repúdio à guerra. A difusão ao longo do tempo, entre a humanidade, de uma atitude mais civilizada. De hostil a civil. E o medo justificado dos efeitos de uma guerra futura. Freud imaginou a bomba atômica antes de Einstein e Oppenheimer a colocarem nas mãos dos humanos. A correspondência foi publicada na França em 1933. Hitler, naquele ano vitorioso, proibiu a sua difusão na Alemanha. Dois pacifistas, ainda por cima judeus. Um horror a ser banido da face da terra, a guerra. Freud não viu a bomba atômica ser lançada. Se a tivesse visto, ainda teria considerado a sua esperança não utópica? Quem sabe, talvez o repúdio chega à Constituição italiana a partir de Freud.
Nos últimos dias tenho lido e relido um ensaio escrito por uma filósofa judia, Hannah Arendt, de pensamento político muito poderoso. O texto do ensaio a que me refiro aqui remonta à primavera de 1948. É, na verdade, uma carta aberta dirigida ao seu povo. Ben Gurion proclamava o Estado Judeu, com base na decisão da ONU de 29 de novembro de 1947, que aceitava a divisão da Palestina e a formação de um Estado Judeu. Hannah Arendt dirigiu um apelo sincero ao seu povo, que poderia ser resumido em “Parem”! A Pátria judaica não é Estado judeu. A pátria judaica encontra-se na maravilhosa experiência dos Kibutzim, uma experiência social e solidária de grande esperança, que poderia ser um exemplo para o mundo inteiro, dentro de um Estado binacional, de árabes e judeus, que era o fato histórico consolidado já há muitas décadas.
Uma mulher judia, Hannah Arendt. Nascida judia, ela percebeu o que significava ser judia, já quando menina, na escola, ouvindo palavras de desprezo pelos judeus. Sua mãe a ensinou, quando isso acontecia, a se levantar e voltar para casa. E, agora mulher, sentiu a necessidade de fugir, de se salvar, para ajudar, dos Estados Unidos, onde forma depois do início da guerra, os judeus que fugiam da Europa buscando refúgio na Palestina, onde há tempo estavam justamente se difundido as comunidades judaicas, os Kibutzim. Hitler induziu-a, por um curto período, a aproximar-se do sionismo. Mas logo, como aconteceu com Einstein, surgiu nela o temor de um nascente e perigoso nacionalismo judeu. Perigoso como todos os nacionalismos. Nesse ensaio encontro palavras que me remetem à Cassandra de Christa Wolf, que certamente leu Arendt. “...surpreendente é o fato de tanto [os Judeus da Palestina] como os outros [os Judeus dos Estados Unidos] estarem substancialmente de acordo sobre os seguintes juízos... chegou a hora de obter tudo ou nada, vitória ou morte; as reivindicações árabes são inconciliáveis com aquelas judaicas e o problema só pode ser resolvido militarmente; os árabes, todos os árabes, são nossos inimigos... somente os liberais antiquados acreditam nos compromissos, apenas os filisteus acreditam na justiça... estamos prontos a cair combatendo e consideraremos qualquer um que se coloque no nosso caminho como um traidor...". Arendt, ao contrário, está convencida de que somente a amizade árabe-judaica pode ser garantia para a existência de judeus na Palestina. Caso contrário, se os judeus vencessem a guerra, estariam para sempre rodeados por uma população árabe totalmente hostil. Então parem! Mas Hannah Arendt foi a Cassandra que ninguém escutou. Filosofia, política e história, naquele momento, tomaram caminhos opostos. E hoje estamos de volta ao ponto de partida, com as armas atômicas se espalhando aos montes, no oeste e no leste.
Então, qual é a resposta? Hoje, um repúdio universal à guerra é utópico. A Europa em que vivemos resiste em dizer não à guerra em sua casa. Mas está se fechando sobre si mesma e está ajudando aqueles que estão em guerra com armas e não com compromissos. Nós, “liberais antiquados que acreditamos nos compromissos”, somos uma minoria, no oeste e no leste, no norte e no sul.
Deveríamos, portanto, resignar-nos ao silêncio? Hannah Arendt nos aconselha a não fazer isso.
Principalmente hoje. No dia 16 de outubro, há oitenta anos, houve a incursão no Gueto de Roma. Juntos, fascistas e nazistas, em nome da sua raça, queriam limpar o mundo daquela que consideravam uma raça imunda. No mesmo ano, 1943, árabes e judeus viviam juntos e em paz na Palestina. VAMOS LEMBRAR DISSO.
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Repudiar a guerra: não é uma utopia. A advertência de Hannah Arendt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU