17 Outubro 2023
"Deslegitimar a guerra significa reconhecer que há caminhos alternativos ao recurso à força para a superação dos conflitos e, sobretudo, para evitar as consequências sempre desastrosas provocadas pelas guerras. Se a dor de quem sofre a violência da guerra pode ser pontual, o sofrimento que deriva dessa dor se prolonga no tempo e continua por séculos a provocar danos", escreve Ronaldo Zacharias, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos e doutor em Teologia Moral.
O artigo foi originalmente publicado no blog da Accademia Alfonsiana, 22-11-2022, e encaminhado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
Embora afirmada pelo Catecismo da Igreja Católica, a teoria da guerra justa precisa ser questionada. A guerra, crueldade que coloca em risco o futuro da humanidade, deve ser sempre evitada, embora muitas vezes se imponha por questões de autodefesa. Mas nem por isso podemos adjetivá-la como justa e, muito menos, justificá-la como justa. Se a mínima expressão de justiça é dar a cada um o que lhe compete, a única coisa justa que compete a um povo é viver na paz. Reconhecer tal realidade significa empreender todos os esforços para deslegitimar a guerra. Adjetivá-la, seja como for, para poder justificá-la significa declarar a derrota da política e da humanidade.
Deslegitimar a guerra significa reconhecer que há caminhos alternativos ao recurso à força para a superação dos conflitos e, sobretudo, para evitar as consequências sempre desastrosas provocadas pelas guerras. Se a dor de quem sofre a violência da guerra pode ser pontual, o sofrimento que deriva dessa dor se prolonga no tempo e continua por séculos a provocar danos. Não há argumento capaz de legitimar qualquer tipo de sofrimento que poderia ser evitado, assim como é inconcebível acreditar que a paz resulte de muitos lutos. A deslegitimação da guerra implica o reconhecimento de que o investimento nas mais diversas armas de guerra não garante qualquer tipo de segurança e estabilidade que se prolongue no tempo; pelo contrário, segurança e estabilidade derivam de condições dignas de vida e da prática da justiça em todos os níveis.
Deslegitimar a guerra implica superar a ingenuidade que leva a acreditar que as lógicas políticas presentes no mundo possam ser facilmente superadas. Há muitos interesses pessoais e institucionais por detrás de conflitos que são propositadamente desencadeados para que a força seja demonstrada, o poder seja ampliado, o domínio seja expandido, a supremacia de uns sobre outros seja confirmada e o “bem” confirme sua vitória sobre o “mal”. A deslegitimação da guerra implica a edificação de uma nova cultura para a resolução dos problemas e dos conflitos, uma cultura em que a amizade social e a fraternidade sejam sustentadas pelo diálogo e pela busca de soluções que não provoquem danos à humanidade, não lesem os direitos fundamentais das pessoas e não destruam a casa comum.
Na perspectiva cristã, a deslegitimação da teoria da guerra justa impõe-se pela lógica evangélica da não violência. Trata-se de uma lógica que, tendo presentes as causas que levam/geram as guerras e a fragilidade de um sistema de convivência assentado sobre o poderio das armas, reconhece o poder da conciliação e da reconciliação, a força das medidas diplomáticas e econômicas, a eficácia das campanhas não violentas e o anúncio da paz como resultado da prática da justiça. A lógica da não violência tem prioridade ética sobre quaisquer motivos que pretendam legitimar qualquer tipo de guerra, devido aos impactos devastadores das armas atualmente disponíveis e às catástrofes humanitárias que podem derivar do seu uso.
Como cristãos, ao pretendermos legitimar a teoria da guerra justa, deturpamos a essência da religião que, por natureza, é chamada a ser não violenta. Desse modo, contribuímos para a destruição da própria religião que pretendemos viver, pois atentamos contra a fé que a sustenta. O imperativo moral que deriva do seguimento a Jesus é a transformação não violenta dos conflitos. Para que isso seja possível, é preciso que assumamos a força do amor como caminho que supera toda espécie de destruição e que torna toda guerra injusta. No entanto, a convicção que sustenta um amor que pretende ser evangélico é que ele subverte a lógica dos poderosos e prepotentes senhores deste mundo e, por isso, acredita até o fim que maior é aquele que se faz pequeno; grande, aquele que serve; ganha aquele que perde; salva-se aquele que se perde; ressuscita aquele que morre. A guerra é sempre injusta. Justa é apenas a paz!
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A injustiça da guerra. Artigo de Ronaldo Zacharias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU