Como rezar a esperança da ressurreição quando o sofrimento não cessa sobre os mais frágeis? Nesta Semana Santa, a condenação de Cristo se une a um mundo em condenação. A confluência das crises ceifou vidas por toda parte: a pandemia de covid-19 deixou 6,8 milhões de mortos em apenas dois anos, e centenas de milhares morrem continuamente pelas guerras e o Novo Regime Climático. A conjuntura chega ao ponto crítico: A covid-19 foi apenas o começo? A guerra será nuclear? Ainda haverá mundo habitável para todos?
Esta página especial foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 13-04-2022.
O centenário pensador francês Edgar Morin apontou a gravidade, complexidade e interconexão das crises, em entrevista recente, publicada pelo IHU:
“Mesmo antes da guerra na Ucrânia, desde Hiroshima, uma espada de Dâmocles está sobre a cabeça de todos os seres humanos e que se agravou com a crise ecológica, onde é realmente a biosfera, o mundo vivo e nossas sociedades, que está ameaçada. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o caráter global da crise.
Penso que entramos em um novo período. Pela primeira vez na história, a humanidade corre o risco de aniquilação”
O futuro incerto ainda pode apontar para sinais de esperança. O estupor e o medo dos discípulos diante da crucificação de Jesus tornou-se uma imensa alegria quando testemunharam a Ressurreição. O desafio para os cristãos desde então é continuar proclamando a Boa Nova, a Alegria do Evangelho, mais que sustentar uma fé amarrada, passiva ou estacionada, como conceituou o Papa Francisco. No início do mês de março, em uma celebração junto aos confrades jesuítas, Francisco proferiu uma homilia convocando a uma fé viva, “uma oração que leva as palpitações do mundo até Deus”.
“Por isso será bom hoje perguntar-nos se a oração nos imerge na transformação, lança uma luz nova sobre as pessoas e transfigura as situações. Pois se a oração é viva, 'mexe por dentro', reaviva o fogo da missão, reacende a alegria, provoca-nos continuamente para nos deixarmos inquietar pelo grito sofredor do mundo. Perguntemo-nos: como estamos para levar à oração a guerra em curso?”
Ascender a Deus as dores deste mundo é um desafio constante aos que creem. Nesta Semana Santa, o mundo se une por meio das cruzes que crucificaram Jesus. “Paixão de Cristo, Paixão do Mundo" é a provocação do teólogo Leonardo Boff para dizer que a morte e a ressurreição, antes de míticas e místicas, são concretas e políticas. A morte de Jesus segue acontecendo, e a Ressurreição pode ser o passo vitorioso que nem todos veem, como narrado por Marcos, mas o testemunho das primeiras comunidades é a certeza de que “somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Sem cessar e por toda parte levamos em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo” (2 Cor 4, 9-10).
“Os chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam contra Jesus algum testemunho, a fim de o condenar à morte. E nada encontraram, porque muitos testemunhavam falsamente contra Jesus, mas os testemunhos deles não estavam de acordo. Alguns se levantaram e testemunharam falsamente contra Jesus”
(Marcos 14, 55-58)
Foto da esquerda: Grupo neonazista ucraniano. Foto da direita: tanque russo com o símbolo Z, de apoio a Putin e à guerra
A política que condenou Jesus à morte, condena ainda hoje populações inteiras. Com uma bomba, milhares são mortos. Com uma caneta, milhares são sentenciados direta ou indiretamente à pena capital. E assim como aconteceu com Jesus, a religião e a política não se desassociam.
A guerra da Ucrânia é o exemplo mais próximo temporalmente desta relação. A unidade entre o governo de Vladimir Putin e o Patriarca Kirill da Igreja Ortodoxa Russa é a sustentação ideológica da invasão sobre o território ucraniano, em nome do "Russkii mir", ou o "mundo russo", "um messianismo pan-eslavista em que somente a cruz da ortodoxia pode garantir a salvação a todos os povos eslavos que faziam parte do império soviético", explica Pasquale Annicchino. Kirill não se furtou de publicizar seu apoio, como fez em homilia, duas semanas após o começo da invasão: "Nossa luta não tem um significado físico, mas metafísico. Se nesta guerra os ortodoxos e os crentes escolhem o caminho de menor resistência e obedecem aos poderes fortes do mundo, em todo caso nunca deverão ser tolerados aqueles que destroem a lei de Deus e apoiam o pecado como modelo de comportamento". O Patriarca se referia mais especificamente à cultural liberal, que segundo ele, é parte da colonização do Ocidente, e um plano gay.
A "putinização" da Igreja Ortodoxa Russa gerou um cisma intra e extraeclesial, praticamente impossível de se reconstruir tão cedo. As repulsas à doutrina do Russkii mir partem tanto de teólogos da ortodoxia quanto de cristãos de diferentes denominações. A unidade ortodoxa e o ecumenismo foram postos em segundo plano sob um projeto que destrói cidades inteiras e acumulam corpos de todas as idades em qualquer buraco.
— Ezio Mauro (@eziomauro) April 13, 2022
Putin e Kirill conformam uma das unidades entre religião e política da morte. Esse é um movimento que se expande, como explica o jornalista italiano Iacopo Scarauzzi: "Orbán, Trump, Putin... políticos de todo o mundo estão se apropriando do cristianismo, de seus símbolos e de sua linguagem na tentativa de acalmar a angústia resultante de um sentimento de perda diante da globalização, do declínio econômico e cultural; ou perplexidade diante de uma paisagem social que está mudando muito rapidamente. Estes são os novos nacionalistas; os populistas, como os chamamos. Eles são muito diferentes entre si, mas semelhantes em sua súbita conversão à religião, que a usam para a ordem social ou como marcador de identidade, esvaziando-a de seu conteúdo de fé".
No Brasil não é diferente, o professor Fábio Py conceitua as bases teológicas do governo Bolsonaro como "cristofascismo", ou "neofascismo cristão". "O projeto político da gestão de Bolsonaro irradia uma teologia do poder autoritário no qual simplifica a vida em prol de argumentos teológicos-moralistas para justificar o desprezo aos pobres e a opção das suas mortes via estado", explica o teólogo.
O diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero entende que essa é uma situação alarmante, de crises que se acumulam desde a financeira de 2008, tenham elas conexão ou não, mas resultam em um momento de perplexidade e criam uma conjuntura crítica: "o sistema internacional está caminhando para o rumo perigoso de aumento das possibilidades de conflitos que põem em risco a sobrevivência mesma da humanidade".
Miguel Mellino, filósofo político ítalo-argentino, argumenta que o nacionalismo de Putin, e por consequência esta guerra, é uma representação do sistema econômico falido. "Putin representa um nacionalismo reacionário neoliberal, mas eu o colocaria dentro desse novo plano de blocos que começa a se configurar e que também divide as direitas: um ocidental e outro não ocidental, cada um deles com suas heranças históricas e com as ferramentas que a economia de mercado desumanizado lhes ofereceu nos últimos anos. Por isso, penso que o que está acontecendo é o efeito mais nu e cru das contradições de um sistema econômico baseado na hegemonia pura e dura", explica em entrevista.
E não é como se apenas Putin e os oligarcas russos estivessem interessados na guerra. Greg Yudin, filósofo russo, afirma que o capital como um todo chancela qualquer agressão se seus interesses não forem atacados. É como se Putin e o capital internacional agissem em conformidade e conveniência. "O sucesso de Putin na hora de corromper as elites políticas e econômicas, em todo o mundo, deve-se ao fato de que sabe que a ganância e o interesse próprio são as pedras angulares do capitalismo. Ele acredita firmemente que o dinheiro pode comprar tudo. Sabe que a democracia liberal é uma farsa. Putin é um ultraneoliberal, destruiu toda a solidariedade na Rússia e a substituiu por um cinismo desenfreado. Por isso, está convicto de que ninguém vai realmente interferir em seus planos militares e que todas as sanções acabarão sendo retiradas, pois o capital só se importa com os lucros", afirma em entrevista.
“Então, finalmente, Pilatos entregou Jesus a eles para que fosse crucificado. O crucificado -* Eles levaram Jesus. Jesus carregou a cruz nas costas e saiu para um lugar chamado 'Lugar da Caveira', que em hebraico se diz Gólgota”
(João 19, 16-17)
Jesus (Enrique Irazoqui) carregando a cruz no filme "O Evangelho segundo São Mateus", de Pier Paolo Pasolini, 1964.
A pandemia de covid-19 ainda não chegou ao fim, mas graças ao avanço da vacinação uma nova tranquilidade começa a ser retomada. No entanto, as consequências do negacionismo e da desigualdade no acesso à imunização deixaram seus reflexos. Soma-se a isso o impacto sobre a saúde mental e à estrutura e renda familiar. Mesmo sem a Guerra da Ucrânia, as chagas da pandemia não apontam para uma retomada da tranquilidade.
O economista Waldir Quadros detalha, em artigo fruto da Pesquisa Nacional de Domicílios 2020, o impacto da pandemia sobre a renda das famílias brasileiras. Para ele, os efeitos "sobre a classe média são impressionantes" e sobre as camadas populares foram "uma verdadeira hecatombe". Os efeitos da pandemia sobre a economia foram explanados em diversas reportagens e pesquisas publicadas pelo IHU nesses últimos dois anos. Os índices de hoje corroboram as previsões de março de 2020: os pobres, os negros, as mulheres e os jovens foram as principais vítimas da recessão econômica e da perda de renda. Ainda neste índice, as crianças e os adolescentes tinham proporcionalmente o dobro da população na miséria extrema no Brasil.
Causa e consequência disto é a desigualdade social. A pandemia evidenciou e aumentou o fosso entre ricos e pobres, inclusive entre os países. Exemplo disto é o baixíssimo acesso às vacinas nos países africanos, o que foi chamado de apartheid vacinal. O Papa Francisco, que no início da pandemia disse que tinha esperança na humanidade, percebeu que a saída da crise não está sendo da forma mais positiva. "Estamos perpetrando novas injustiças e desigualdades", reclamou à Força-Tarefa do Vaticano que está acompanhando a situação da covid-19 no mundo.
A perda da sociabilidade e o trauma de uma pandemia tão mortal afetaram também a saúde mental – e isso também está conectando à desigualdade social. Em uma pesquisa realizada pela Agência de Notícias das Favelas, em cinco comunidades do Rio de Janeiro, constatou-se que "em relação a mortes, 55% afirmam ter perdido um ente próximo para a doença. Como isso afetou a saúde mental dessas populações? Segundo revelou a pesquisa, 52% sentiram ansiedade; 41% sofreram de nervosismo. Não sem motivo: 70,4% temeram não ter dinheiro para sustentar a família; 61,1% preocuparam-se em não ter alimento suficiente – 48,4% tiveram a renda diminuída por causa da pandemia". Destaca-se ainda que 80% da população das favelas precisou seguir com o trabalho presencial e 74% não tiveram nenhum acompanhamento psicológico ou social.
Para Massimo Recalcati, esse trauma da pandemia ainda exigirá um comportamento especial para se reestabelecer relações de confiança. "É preciso reconstruir a confiança na relação onde a confiança foi brutalmente rompida pela violência da pandemia que nos obrigou a interromper as relações. É uma emergência psíquica: os objetivos 'didáticos' da formação devem estar subordinados ao cuidado particular da relação", argumenta em artigo.
A pandemia já matou 6,8 milhões de pessoas no mundo, e embora exista o momento de otimismo sobre a queda no contágio, as marcas foram profundas, e as respostas para novas epidemias ou novos surtos de covid-19 não são animadoras. O Papa Francisco manteve o alerta aceso: "o mundo dos negócios e das finanças tem uma importante responsabilidade promover uma mudança de paradigma e ajudar a encontrar soluções criativas. Por favor, não faça declarações de intenções ou mensagens sobre grandes princípios: eu os exorto a assumir compromissos concretos, fazer sua parte para garantir que os negócios e as finanças estejam a serviço das pessoas e da nossa Mãe Terra. A medida de seu sucesso não é o lucro, mas crescimento e retornos de curto e inclusive de curto prazo".
“Ouviu-se um grito em Ramá, choro e grande lamento: é Raquel que chora seus filhos, e não quer ser consolada, porque eles não existem mais”
(Mateus 2, 18)
Papa Francisco com a bandeira da Ucrânia cheia de sangue, vinda da cidade de Bucha. Foto: Vatican Media
A pandemia e a guerra destroem famílias. Sejam com filhos órfãos, mães que perdem os filhos na guerra ou que se separam no desespero de fugir do país em conflito.
Sobrevivente do Holocausto, a húngara Edith Bruck conta do seu testemunho: "Agradeço a Deus por não conhecer o sentimento de ódio, e não entender quem hoje define quem foge das guerras e da fome como 'carrapatos de cachorro', que deveriam se afogar. E acima de tudo, não entendo como, ainda hoje, se pode usar armas e matar pensando estar do lado de Deus. Estou exausta". Na entrevista concedida à revista Avvenire, e publicada em português pelo IHU, Bruck estava ao lado de Olga, amiga ucraniana, que há anos a acompanha. A jornalista relata: "Olga chorava em silêncio pela separação de sua filha, que permaneceu nos subterrâneos de confinamento ucraniano junto com seus filhos de cinco e oito anos".
Bruck seguiu falando também dos soldados russos que estão indo a campo para morrer: "pobres também esses garotos russos jogados como bucha de canhão numa guerra suja, como todas as guerras são, como crianças armadas que nem sabem onde estão".
As cenas de famílias separadas voltam à tona. Na última década a fuga de sírios, iraquianos, afegãos, líbios e centro-americanos foi amplamente registrada em fotos e vídeos. Políticas deliberadas de separação de pais e filhos foram aplicadas em Centros de Detenção nos Estados Unidos. Crianças de colo foram atiradas por seus familiares em aviões cargueiros para escaparem de regimes autoritários.
Em duas semanas de guerra na Ucrânia, a Unicef registrou pelo menos 1 milhão de crianças refugiadas, o que representava metade do total de 2 milhões de ucranianos que já haviam deixado o país. "Nunca havíamos enfrentado uma crise de refugiados dessa velocidade e dessa envergadura", manifestou o organismo da ONU. No entanto, nem todas as crianças conseguiram escapar do país.
As imagens filmadas das cidades de Bucha, Mariupol e Kharkhiv mostravam incontáveis corpos de crianças vítimas da guerra. A Unicef declarou nesta semana, 11-04, que 186 crianças foram mortas no território ucraniano devido ao conflito. De Mariupol veio a imagem do bebê Kirill, de 18 meses, morto por bombas russas em 04-03.
Do lado russo, as mortes também são realidade. Embora não seja possível uma contagem oficial no momento, a Ucrânia diz que cerca de 19 mil soldados russos foram mortos desde o início da invasão em 24-02 até 08-04; o Kremlin, por outro lado, afirma ser um número bem menor, menos de 2 mil. Ainda assim, são 2 mil vidas.
O metropolita Epifânio da Igreja Ortodoxa Ucraniana cobrou coerência e piedade do Patriarca Kirill. Primeiro para se opor à guerra e, segundo, se não tiver coragem de enfrentar Putin, que pelo menos busque os corpos dos soldados mortos. "Dirijo-me a Vossa Beatitude, chefe da Igreja Ortodoxa Russa, e lhe peço que mostre pelo menos piedade para com os seus concidadãos e para com todo o seu rebanho. Se não pode levantar a voz contra a agressão, pelo menos ajude a levar embora os corpos dos soldados russos que pagaram com as suas vidas pelas ideias da ‘grande Rússia’".
Em seu mais recente filme, Mães Paralelas, Almodóvar trata do luto e da luta das mães diante do fascismo espanhol (franquismo): "Parece que a sua família não te contou a verdade sobre o país. Há mais de 100 mil desaparecidos, enterrados por aí, em valas e perto de cemitérios. Seus netos e bisnetos querem poder desenterrar seus restos mortais para dar a eles um enterro digno, porque prometeram isso às suas mães e avós", expressa uma das suas personagens.
A guerra dá continuidade às mortes e os traumas causados pela pandemia nas famílias. Só no Brasil, estima-se que a pandemia deixou mais de 282 mil órfãos.
Leia mais sobre mães e órfãos da pandemia e da guerra
“Aí estavam também algumas mulheres, olhando de longe. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o menor, e de Joset, e Salomé. Elas haviam acompanhado e servido a Jesus, desde quando ele estava na Galiléia. Muitas outras mulheres estavam aí, pois tinham ido com Jesus a Jerusalém”
(Marcos 15, 40-41)
Intervenção de Sonia Madrigal, denunciando o feminicídio no México. Foto: Revista Transas.
"As mulheres são duplamente vítimas. Elas sempre vivem a pior parte das guerras", sintetizou Edith Bruck, na entrevista supracitada. As mulheres sofrem a violência direta sobre os seus corpos e com a separação dos familiares. Mas é também nas outras crises que o sistema patriarcal as sobrecarrega: na pandemia, as mulheres tiveram trabalho dobrado e muitas viveram confinadas com seus agressores; na crise do capitalismo, sofrem com o desemprego e os salários mais baixos; no Novo Regime Climático, são as mais propensas a sofrer com as catástrofes.
Em evento de comemoração ao Dia Internacional da Mulher promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a mestra em Artes Visuais Gabriela Wieczorek apresentou uma seleção de intervenções artísticas que retratam o feminicídio. Wieczorek explica que "o feminicídio ocorre quando as condições históricas geram práticas sociais agressivas e hostis que atentam contra a integridade, o desenvolvimento, a saúde, as liberdades das mulheres". E a pesquisadora enfatiza em sua apresentação que embora o conceito tenha ganhado visibilidade há poucos anos, a visão crítica sobre a violência contra a mulher é expressada em arte desde o início do século XX.
Para a socióloga Fernanda Vasconcellos, essas condições podem ter se acumulado durante o período pandêmico, causando um aumento no número de feminicídios. "Não podemos deixar de levar em conta a pandemia e o isolamento social maior, em que muitas mulheres que já sofriam algum tipo de agressão foram colocadas em uma situação de risco muito maior por estarem mais tempo com os agressores. Não podemos descartar outros efeitos da pandemia, como o desemprego, a falta de renda, pois tudo isso acaba gerando algum tipo de estresse. Quando levamos em conta o aspecto somático desses conflitos, é crível admitir que eles possam aumentar, sim, os níveis de violência", explicou em entrevista ao IHU.
É necessário destacar as cruzes que as mulheres carregam dentro do sistema patriarcal cotidianamente. No Brasil, no período da pandemia, a taxa de desemprego entre as mulheres subiu de 14,3% para 15,9% em dois anos, enquanto a taxa de desemprego entre os homens permaneceu em 10%. No recorte de cor, a discrepância é ainda maior: o número de mulheres negras desempregadas chegou a 19% no final de 2021.
No período de guerra, embora a maioria das mulheres não participe da linha de frente de combate, a violência ainda é uma arma. A escritora italiana Dacia Maraini explica como a violência sexual é uma arma dos invasores: "Em vez do desejo sexual que, na sua normalidade, se baseia na partilha e na reciprocidade, entram em cena instintos primitivos de dominação, apropriação violenta e controle do território. Instintos que são sempre acompanhados de brutalidade, agressividade, ódio. Todos impulsos que a guerra desperta e cultiva. A guerra é profundamente reacionária e regressiva: detesta as liberdades e a reivindicação dos direitos. Provavelmente é por isso que ela agrada tanto os tiranos. Além do fato de que toda ação de guerra compacta automaticamente o senso de pertença e o ódio ao próximo e ao diferente", afirma em artigo.
Um exemplo de perpetração dessa violência foi registrada na cidade de Bucha, na Ucrânia. O tenente responsável pela campanha no território foi Azatbek Omurbekov, que foi abençoado por um bispo ortodoxo "para a missão", onde ocorreram "estupros, massacres, pilhagem, crueldade, torturas". Em reportagem de Francesca Mannocchi, os relatos dos ataques contra as mulheres na cidade demonstram o terror: "Tânia vivia nos porões da creche de Bucha. No dia 13 de março ela testemunhou uma das execuções. Tânia estava no pátio da creche para aquecer a água no fogo, uma mulher saiu do portão de seu prédio, o comandante Vadim deu ordens aos seus homens para atirar. A mulher morreu instantaneamente. Eram animais", conta.
A pandemia e a guerra tornaram as mulheres ainda mais importantes nas bases do sistema patriarcal-capitalista. Como explica a filósofa uruguaia Mabel Moraña, é o controle dos corpos que sustenta o capitalismo; e como explica Silvia Federici, é o trabalho de reprodução, o trabalho doméstico, de cuidado, que dá a garantia para o desenvolvimento do capital e da mais-valia. Essas perspectivas fazem das mulheres vítimas, mas também detentoras do poder revolucionário. Como as mulheres que viveram o sofrimento do calvário, enxugaram o rosto de Jesus, ficaram ao pé da cruz, vivenciaram a Paixão de Cristo e testemunharam e proclamaram, antes de todos, a Ressurreição.
“Tiraram a roupa dele, e o vestiram com um manto vermelho; depois teceram uma coroa de espinhos, puseram a coroa em sua cabeça, e uma vara em sua mão direita. Então se ajoelharam diante de Jesus e zombaram dele, dizendo: 'Salve, rei dos judeus!'. Cuspiram nele e, pegando a vara, bateram na sua cabeça. Depois de zombarem de Jesus, tiraram-lhe o manto vermelho, e o vestiram de novo com as próprias roupas dele; daí o levaram para crucificar”
(Mateus 27, 28-31)
Sem-tetos despojados. Foto: Guilherme Santos | Sul 21
A pobreza e a fome chegam a níveis extremos no mundo. As consequências das crises financeira, ecológica, sanitária e securitária atacam ainda mais a dignidade da vida nas camadas populares.
O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves sistematiza os dados da última pesquisa do Banco Mundial, divulgada no final de 2021, sobre a pobreza no mundo. O pesquisador deixa evidente que o cenário gerado pela pandemia é de um grande aumento na extrema pobreza no mundo, de 655 milhões em 2019 para 732 milhões em 2020. Considerando o índice de pobreza multidimensional - um indicador que mede também fatores como água potável e acesso à nutrição saudável - 1,3 bilhão de pessoas estão em situação de vulnerabilidade.
A pandemia afetou diretamente o mercado de trabalho no mundo, mas que aponta lentamente para uma recuperação desde as vacinas. No entanto, a inflação tem atingido picos recordes no Brasil e no mundo. A diminuição da renda com a falta de trabalho gerou um aumento exponencial na população de rua no país. Segundo as estimativas do Movimento Nacional da População de Rua, o crescimento foi acima de 100%, isso é, de 200 mil em março de 2020, passou para 500 mil.
A guerra tem afetado diretamente a produção e a distribuição de alimentos, principalmente para os países africanos, onde a pobreza e a insegurança alimentar estão mais concentradas. A ONU já emitiu o alarme máximo: "O desastre já está nos níveis mais altos em países como Somália, Etiópia, Iêmen, Síria, Sudão do Sul, Afeganistão. Em pouco tempo, outras nações provavelmente também entrarão no cone escuro da carestia", reporta o jornalista italiano Danilo Taino.
A FAO, agência da ONU para Alimentação e Agricultura, calcula que a inflação sobre o preço dos alimentos, em menos de um mês de guerra, foi de 12%. O alarme soa também para a Europa: "Em primeiro lugar precisamos enfrentar o perigo de dramáticas carestias nos países pobres (e de tensões sociais nos mais ricos). E depois o apoio às empresas ameaçadas por aumentos de preços, principalmente a pecuária, que tem como commodity mais importante os cereais russos e ucranianos", comentaram os diretores da FAO em entrevista.
O agrônomo brasileiro José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da FAO, em detalhada entrevista ao IHU, explica que este é o começo da crise, pois a guerra afeta principalmente o plantio. "A guerra afetou o mercado de commodities mundial não porque tenha faltado produtos – porque não é disso que se trata, porque a produção da Ucrânia em grande parte já tinha sido exportada –, mas porque o que está sendo afetado é o plantio, a safra que começaria na primavera. Isso poderá afetar a produção. Difícil dizer a longo prazo, mas a tendência é que a alta de preços vai longe. Até porque não há mecanismos reguladores para enfrentar isso. A tendência dos preços que estão subindo é um dia cair, mas não para os níveis do pré-guerra. Isso nunca acontece".
No Brasil, segundo pesquisa do Datafolha, 32% da população não têm comida suficiente em casa. José Graziano alerta que "algo precisa ser feito já em 2022. Senão, vamos chegar a uma situação explosiva no final do ano. A fome praticamente dobrou na pandemia". A historiadora e socióloga Denise de Sordi analisa ainda que o desmonte das política sociais colocou o país nessa situação. "Não há dúvidas de que as políticas sociais de combate à pobreza e à extrema pobreza brasileiras foram desmontadas ao ponto em que hoje, no Brasil, a condição de pobreza voltou a significar fome. Estabelecer a equivalência entre pobreza e fome é uma das formas de caracterizar a conjuntura do país e alertar não só para o crescimento acelerado dos níveis de insegurança alimentar e fome, mas também para a corrosão dos mecanismos que existiam para medir o crescimento, ou não, desta condição entre a população", aponta em entrevista ao IHU.
“Pelas três horas da tarde Jesus deu um forte grito: 'Eli, Eli, lamá sabactâni?', isto é: 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?'”
(Mateus 27, 46)
Incêndio florestal. Foto: Pixabay
O Novo Regime Climático é um fato. Não há mais formas de reverter a mudança climática, no máximo mitigá-la, mas sobretudo se adequar. Enquanto as soluções não aparecem, as catástrofes climáticas seguem fazendo suas vítimas.
Na Paixão do Mundo, os pobres são os protagonistas. São os que mais sofrem com a pandemia e a guerra, e também as primeiras vítimas de queimadas, enchentes, ciclones e estiagens. No Brasil, dois desastres ceifaram mais de 240 vidas no estado do Rio de Janeiro. Primeiro, foram 233 vítimas na cidade de Petrópolis, em fevereiro, e, mais recentemente, em Angra dos Reis, outras 10 pessoas perderam a vida devido aos deslizamentos de terra causado pelas fortes chuvas.
A coordenadora de Clima e Justiça do Greenpeace, Fabiana Alves, expõe que novos dados indicam a irreversibilidade da crise climática em alguns pontos, e isso já atinge diretamente quase metade da população mundial. "Cerca de 3,3 bilhões de pessoas vivem em países com alta vulnerabilidade à crise climática, com impactos maiores sobre aqueles que sofrem com questões relacionadas à desigualdade, saúde, educação, crises financeiras, falta de capacidade de governança e infraestrutura", explica em artigo sobre o último relatório publicado pelo Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas - IPCC, no final de fevereiro.
Fabiana ainda faz uma análise sobre as estimativas de impacto da crise sobre o clima do Brasil e da América Latina. "Os eventos de chuvas fortes, que resultam em inundações, deslizamentos de terra e secas, devem se intensificar bastante em magnitude e frequência, apresentando riscos à vida e à infraestrutura. Estima-se que o aquecimento de apenas 1,5°C resulte em um aumento de 100% a 200% no número de populações afetadas por inundações na Colômbia, Brasil e Argentina, 300% no Equador e 400% no Peru. Petrópolis, no Rio de Janeiro, torna-se exemplo das graves consequências das alterações climáticas unidas ao descaso de governantes em incorporarem políticas públicas para evitar mortes anunciadas", apresenta Alves.
O Relatório do IPCC ainda traz os impactos das políticas energéticas sobre as populações e biomas, como a construção de hidrelétricas em regiões sujeitas a secas, que vulnerabilizam ainda mais os povos indígenas e ribeirinhos. “A mensagem não poderia ser mais clara. Mas o sistema econômico e nossos governantes vão continuar a olhar somente seus interesses econômicos e políticos de curtíssimo prazo. Enquanto isso, a destruição do planeta continua”, disse o pesquisador da USP Paulo Artaxo, membro do IPCC, em suas redes sociais.
Diante deste cenário, é preciso se reinventar na relação com o mundo. Essa é a proposta do antropólogo francês Bruno Latour. Da Teologia à Política, o Novo Regime Climático insta a novos pensamentos e ações.
Segundo Latour, é necessário mudar a cosmologia cristã para ter uma narrativa que tenha alcance às populações. "Ora, o que o Novo Regime Climático traz à tona, de forma decisiva, é justamente a questão dos limites, e a terrível condição de que são eles que definem os fins últimos. O nosso tempo se dá conta de que não tem tempo para esperar. E que, portanto, todo relato que minimiza a condição espacial da escatologia para preferir uma projeção no tempo trai, de fato, a própria condição da salvação. De que adianta salvar a sua alma se você acaba perdendo o mundo terreno? O grito repetido todos os dias, de maneira cada vez mais estridente, pelos cientistas da terra – 'Devemos agir agora ou nunca' – não pode deixar de ressoar de modo infinitamente trágico para toda alma cristã", afirma em artigo.
Sobre a política, Latour segue em uma linha parecida, é necessário mudar o discurso acusatório e abstrato pelo tocante à vida das pessoas, reconfigurando as categorias sociais para o Novo Regime Climático. "Assistimos a uma verdadeira recomposição, com o surgimento de muitas contradições dentro das antigas classes. Neste Novo Regime Climático, já não temos mais certeza da classe a que pertencemos. Existem agora situações em que as pessoas que eram unidas pela noção de classe social agora se encontram desunidas pela questão ambiental. Porque os desafios variam muito quando priorizamos a habitabilidade sobre a produção: esse é o exemplo clássico de projetos de infraestrutura com todas essas pessoas que defendem o emprego ao invés da preservação de uma zona úmida. É o que explica hoje que as classes que mais sofrem com a crise ecológica sejam também as que mais consideram os ecologistas como 'burgueses diplomados'. Claro que não devemos nos iludir sobre a instrumentalização política do lado da direita; é uma ferramenta clássica da batalha ideológica pretender falar em nome da população. Mas também diz algo sobre a urgência de realizar esse trabalho de reclassificação em torno de novas categorias políticas."
“No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus bem de madrugada, quando ainda estava escuro. Ela viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo. Então saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo que Jesus amava. E disse para eles: 'Tiraram do túmulo o Senhor, e não sabemos onde o colocaram'. E Jesus perguntou: 'Mulher, por que você está chorando? Quem é que você está procurando?'”
(João 20, 1-2; 15)
Animação: IHU
A esperança da Ressurreição reside naqueles que juntos à cruz entendem e compartilham da Paixão como um propósito de plenificação da Criação.
Leonardo Boff define a ressurreição como a plenitude da vida, pois a evolução, em constante formação e vida, está em cosmogênese. “A ressurreição é uma revolução na evolução, quero dizer que Ressurreição é uma pequena antecipação do fim bom da criação, como se o termo da evolução se antecipasse e nos mostrasse em pequeno o que nos está preparado. Isso é uma revolução dentro da evolução que ainda continua e segue seu curso”, afirma em entrevista ao IHU.
O jesuíta Thomas Reese reforça que o sofrimento de Cristo é o sofrimento unido ao seu povo. Da mesma forma, a ressurreição é o ápice, a esperança concreta. “As Escrituras não nos dão palavras para explicar a dor e a morte; antes, eles nos dão o Filho de Deus que está disposto a descer às trincheiras e sofrer e morrer conosco. Em vez de nos encorajar do lado de fora, ele entra na luta e leva socos junto com a gente. A culminação destes próximos dias não é a cruz; é a Ressurreição. Além da dor há esperança. Esperança em Cristo; esperança no Espírito que pode transformar corações e inspirar obras de paz, justiça e amor”.
Unir-se a Jesus com as dores do mundo é o desafio que esse texto propõe, à luz da provocação de Francisco, citada no início. A esperança pascal só existe porque queremos superar o sofrimento. E para isso conhecer o sofrimento, deparar-se com as feridas abertas de Cristo, tocar nas marcas do sofrimento, ser presente na Paixão do Mundo. O teólogo tcheco Tomáš Halík exorta para que a missão do cristão seja como a missão do inseguro e incrédulo Tomé: "Ser uma 'pessoa de fé' não significa livrar-se do fardo de problemas angustiantes. Às vezes, significa carregar a cruz das dúvidas e seguir Jesus com fé. A força da fé não consiste em 'convicções inabaláveis', mas na capacidade de enfrentar até as dúvidas e as ambiguidades, em carregar o fardo do mistério, mantendo, ao mesmo tempo, a fé e a esperança”.
Halík finaliza: "Ao ver as feridas de Jesus, Tomé pode experimentar o cumprimento de suas palavras: 'Quem me vê, vê o Pai' (Jo 14, 9). Ele vê Deus em Jesus e o vê através do abismo de suas feridas. Não acredito em 'fé sem feridas', em uma igreja sem feridas, em um Deus sem feridas. Somente o Deus ferido através de nossa fé ferida poderia curar o nosso mundo ferido".