Pesquisadores observam como trabalhadores e trabalhadoras se dividem entre os que fazem do lar “a empresa” e os que, excluídos, sequer conseguem gerar renda
Sociologicamente, nas análises, costumava-se usar o termo “mundo do trabalho”. Ou seja, é observar os diversos aspectos da vida atravessados pela perspectiva do trabalho. Mas, e quando o trabalho – ou a falta dele – transborda, passa a ser uma espécie de agenciador de todas os aspectos da vida? Nesses tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus, muitas pessoas foram jogadas na realidade do home office e o lar passou a ser organizado desde a centralidade do trabalho. As jornadas extrapolam e as demais tarefas e aspectos da vida preenchem os – poucos – espaços que sobram. De outro lado, há quem sequer consegue se manter no trabalho, seja porque foi demitido em decorrência da crise ou porque a exposição a jornadas extenuantes levou ao adoecimento. Nesse contexto, em que a Revolução 4.0 é o outro aspecto a ser levado em conta, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU foi ouvir especialistas sobre o atual contexto do mundo do trabalho, na passagem por um 1º de maio nunca visto.
O professor Ruy Braga Neto observa que o “home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso”. Mas adverte que “sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho”. Além disso, lógicas de produção terão de ser repensadas. “O ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar”, pontua em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha”, acrescenta.
Já o professor Rafael Grohmann chama atenção para outra perspectiva de uma mesma realidade. “De um lado, trabalhadores que ficam em home office estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco”, analisa, em entrevista concedida via WhatApp à IHU On-Line. Para Rafael, que ainda lembra daqueles que simplesmente são excluídos desse mundo, este é um momento em que a discussão sobre uma renda universal se coloca com força. “Falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930”, sintetiza.
Ruy Braga também pensa nesse sentido e aponta que entre as propostas para se sair da crise está a necessidade de o Estado “ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação”. “É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos”, acrescenta. Rafael ainda vê a emergência de “pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma”.
Ruy Braga (Foto: Reprodução | YouTube)
Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania - Cenedic. Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, é autor dos livros A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012) e A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017).
Rafael Grohmann (Foto: Arquivo pessoal)
Rafael Grohmann é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Doutor e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP, é criador e editor da newsletter DigiLabour. Entre os livros publicados, está As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista (São Paulo: Atlas, 2013).
IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?
Ruy Braga Neto – A questão principal diz respeito aos desdobramentos econômicos em escala mundial decorrentes do que muitos estão chamando de “grande isolamento”. O mais evidente é a desaceleração da economia e, consequentemente, a desaceleração do processo de globalização econômica. A partir de agora, ficaremos mais tempo em casa e, consequentemente, o mundo do trabalho tende a se transformar com um predomínio de tecnologias remotas e virtualização das relações de trabalho onde isso se mostrar viável. Apesar de o setor de serviços ser mais permeável ao trabalho remoto e virtual, contraditoriamente, alguns segmentos deste setor, notoriamente, o turismo, a aviação, a hotelaria, o entretenimento etc., serão mais duramente atingidos pela desaceleração econômica.
Por outro lado, uma das consequências do isolamento social é a ampliação do uso do trabalho remoto. O home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso. Ocorre que sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho.
Na realidade, o ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar. Isso deve causar inúmeros problemas relacionados ao sofrimento psíquico do trabalhador e, consequentemente, à queda da produtividade do trabalho. Ou seja, as empresas terão que redefinir os parâmetros globais dessa modalidade de trabalho a partir de algum modelo híbrido no qual as atividades remotas sejam combinadas com atividades presenciais. O grande isolamento irá promover uma mudança muito profunda no ambiente de trabalho e as tecnologias virtuais e comunicacionais serão cada dia mais importantes na redefinição deste ambiente. O mesmo deve ocorrer também na indústria com uma pressão cada vez maior para a automação de processos.
IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?
Ruy Braga Neto – O futuro previsível do trabalho está muito conectado às soluções tecnológicas providas pelas tecnologias da informação. Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha. A tendência é que haja um aumento das desigualdades e um aprofundamento da polarização social que fatalmente irá tensionar as estruturas políticas.
Isso é inescapável quando pensamos no aumento do desemprego e, consequentemente, do subemprego e da informalização econômica daí decorrentes. Trata-se de uma situação dramática na qual muitos serão lançados a sua própria sorte e tendo a rua, agora, mais como uma ameaça de morte do que como uma aliada da sobrevivência. Na realidade já estamos assistindo este fenômeno acontecendo agora. Basta observarmos os números do seguro-desemprego: mais de um milhão de trabalhadores acessaram o direito nos últimos 45 dias. Em pouco tempo, estes trabalhadores passarão para a informalidade, pois as empresas não irão recontratá-los.
A previsão feita recentemente pelo Banco Mundial para o Brasil aponta para um aumento de 5 milhões de desempregados decorrentes da crise econômica. O pior para o trabalhador ainda está por vir. E não há como enfrentar uma situação como essa sem o recurso às políticas públicas protetivas do trabalho. Ou seja, os Estados nacionais serão agentes cada dia mais centrais neste mundo redesenhado pelo grande isolamento.
IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?
Ruy Braga Neto – Em um sentido progressista, os Estados poderão ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação. É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos. O caminho da renda cidadã incondicional será cada dia mais desejável e, de uma certa maneira, incontornável.
Em um sentido regressivo, devemos assistir ao fortalecimento de populismo de direita com o emprego massivo de meios repressivos a fim de conter revoltas e o descontentamento social com o aprofundamento da fratura social trazida pelo grande isolamento. Infelizmente, para o caso brasileiro, prevejo um futuro bastante sombrio em termos de iniciativas políticas, com um processo de aumento da desigualdade alimentando a angústia dos trabalhadores. Resta saber se este estresse social que se acumula irá se voltar contra os governantes que nada fizeram para enfrentar a crise de saúde pública somada à crise política ou se servirá para alimentar protestos que reivindiquem mais proteção e soluções redistributivas.
IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?
Rafael Grohmann – Nós estamos num ponto crucial da história do século XXI porque estamos num momento de disputas e lutas em relação ao nosso futuro e o que vamos apreender desse futuro em relação também ao mundo do trabalho. O professor Rafael Evangelista, da Unicamp, escreveu um texto em que diz que estamos numa disputa de três caminhos: aceleração, ruptura e exceção, ou seja, qual vai ser o sentido da pandemia de coronavírus para as nossas vidas.
De um lado – e essa parece ser a narrativa e o sentido por enquanto dominante –, o capital quer acelerar processos que estavam em andamento pelas suas vias, como home office, educação a distância, digitalização de todos os serviços que já estavam numa agenda conjuntamente de financeirização, dataficação e uma racionalidade neoliberal por trás desses processos. Por outro, podemos considerar este momento como uma exceção ou uma ruptura – e esse é o ponto que o Evangelista coloca. Tenho entendido que este momento pode servir para essas questões, que o Rafael chama de aceleração do próprio movimento do capital – o que já tem acontecido – e algumas mudanças podem se manter a despeito de as pessoas estarem mexidas com sua saúde mental, estarem se sentido cada vez mais pressionadas por produtividade, sentindo que o mundo do trabalho é o único mundo possível neste cenário de quem acaba ficando em home office, por exemplo.
Então, de um lado, trabalhadores que ficam em home office – que é uma parcela da população –estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco. Mas o ponto do que vai mudar na sociedade é que este é um momento de disputa.
Já antes da pandemia, Nancy Fraser, no livro “Capitalismo em debate” (Boitempo, 2020), diz que o que está em crise é uma certa hegemonia do que ela chama – com certa controvérsia – de neoliberalismo progressista, ou seja, as alianças neoliberais do século XX, desde Tony Blair, Bill Clinton, Rede Globo e por aí vai. É isto que está colocado em xeque hoje tanto pela extrema direita quanto numa alternativa à esquerda. Se este é um momento de disputa, é hora também de a esquerda mostrar alternativas a esse momento e colocar-se na disputa por esse sentido. Quer dizer, de que maneira vamos sobreviver nesta crise de pandemia com mais cooperação, alternativas de trabalho que mudem uma lógica individualista, que pensem em coletivização, seja de plataforma, seja de trabalho, ou seja, como este também é o momento para prefigurar ou vislumbrar outros tipos de vida que estavam naturalizados antes da crise de pandemia.
Então, este é um momento de disputa e não são desses dois sentidos entre aceleração e essa possível volta, pois isso está em aberto. Não dá para dizer, de um lado, que o capitalismo já ganhou e dominou tudo e, por outro, não dá para dizer que o capitalismo nunca esteve tão próximo do seu fim. Isso seria de uma ingenuidade tremenda de não ver como as lógicas do capital, num cenário de financeirização e plataformização, e as grandes empresas tecnológicas estão de mãos dadas com vigilância extrema aos trabalhadores, inclusive pela própria gestão algorítmica. Por isso considero que este é um cenário aberto e que setores progressistas da sociedade têm que disputar o que é e como apreendemos outros futuros possíveis a partir disso que está acontecendo também no mundo do trabalho.
IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?
Rafael Grohmann – A intensificação da digitalização do trabalho, neste contexto de pandemia, vai trazer uma intensificação das desigualdades de gênero, de raça, de classe num contexto como o do Brasil. Isso vai acabar dividido em pessoas que podem fazer home office e pessoas que estarão nas ruas e o trabalho digital feito de casa, em home office, com diferentes clivagens.
Pensando na própria questão de gênero, várias pesquisas estão mostrando que as mulheres acadêmicas estão sofrendo mais nesse processo de home office por maior sobrecarga de trabalho e estão submetendo menos artigos do que os homens proporcionalmente. Vamos ver uma intensificação da conta da pandemia para o próprio trabalhador. Por mais que se ensaie novamente o papel do Estado, o que temos visto por aí é uma intensificação do “se vire com o que você tem”, “faça mágica com o que você tem”. Saímos do que Ludmila Abílio chama de gestão da sobrevivência para a sobrevivência puramente, quer dizer, de nem conseguir pensar essa gestão. Isso envolve pensar como a crise de coronavírus impacta a saúde mental dos trabalhadores, porque falar em mundo do trabalho é falar que essas pessoas não são máquinas produtivas; são seres humanos que precisam ter não só o mundo do trabalho como o único norte da vida no sentido de só trabalhar, porque é preciso viver.
É preciso reinventar o espaço da vida de modo que não seja só trabalho. Aí entra o papel do trabalho não pago, do trabalho gratuito em contexto de pandemia e entra também a própria invisibilidade – se intensificando com o fato de todo mundo ficar em casa – de quem não trabalha e está perdendo o emprego. Isso é algo que se vislumbra para o futuro em relação a essa intensificação do trabalho.
Tem um índice criado pela Universidade de Oxford, The Online Labour Index, que mede a demanda e a oferta de trabalho digital on-line, principalmente home office, seja em plataformas para alimentar inteligência artificial ou plataforma freelancer em geral. Nesse tempo de coronavírus, a oferta de “jobs on-line” tem caído drasticamente. Pegar uns “freelas” em algumas plataformas enquanto se está com metade do salário tem sido cada vez mais difícil.
Na verdade, hoje, falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930. O que se prenuncia é isto: de que maneira os Estados vão assumir, no mínimo, essa tarefa? É preciso buscar formas alternativas de sustentação de arranjos produtivos para além da falácia do empreendedorismo. Quer dizer, como podemos pensar em coletivização das plataformas ou, como defende o autor Callum Cant num livro sobre entregadores de delivery, Riding for Deliveroo: Resistance in the New Economy, a expropriação das plataformas pelos trabalhadores. Este já era um desafio colocado antes da pandemia e agora se acentua não mais como uma utopia, mas de que maneira vamos sobreviver com o cenário que estamos enfrentando. Este é um ponto chave para pensarmos o que vai ser o pós-pandemia, que não vai ser “ok”. Vai ser um processo do qual não vamos sair os mesmos.
IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?
Rafael Grohmann – Se, como falei antes, estamos num momento de disputas e intensificação dessas disputas relacionadas ao mundo do trabalho, é hora de lutarmos por outros mundos possíveis em um contexto de trabalho digital e de plataformas. O que queremos não é uma volta ao mundo sem tecnologias, mas é preciso reconhecer as disputas políticas dentro das tecnologias e reconhecer que tecnologias são fruto do trabalho humano e reapropriadas por grandes empresas. É preciso pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma.
Também é preciso lutar por uma regulação mais rígida das plataformas de trabalho, como tem feito o projeto Fairwork, coordenado pela Universidade de Oxford e que está vindo para o Brasil com a coordenação da Unisinos. Consiste em pressionar as plataformas digitais por melhores condições de trabalho. É hora de nós mesmos, pesquisadores universitários, estarmos mais envolvidos com pesquisas de intervenção no cenário do mundo do trabalho de maneira que não só compreendamos o que está acontecendo, mas busquemos, na prática, caminhos possíveis para outros futuros do trabalho que não este que repete a ideologia do Vale do Silício, que repete mantras de coaching e futuristas, através dos quais vamos cair num abismo do trabalho.
Precisamos ainda, como país, pensar o que queremos para as nossas políticas não só do trabalho, mas de ciência e tecnologia, como um país soberano também dentro de um contexto global. Quer dizer, como fazer circular a luta dos trabalhadores local, nacional e globalmente em um contexto digital. Como eu disse, não devemos lutar por uma era sem tecnologia, mas por plataformas alternativas.
Há uma pesquisa da Universidade de Westminster, capitaneada pelo professor Christian Fuchs, que mostra que mais da metade das pessoas no Reino Unido clama por outros tipos de plataformas alternativas. Precisamos também imaginar quais seriam esses modelos que não estão ainda dados. O que está colocado aí é que tipo de futuros possíveis podemos apreender e de que maneiras podemos ir além dos modelos que estão colocados. O momento é menos de respostas prontas e mais de imaginar futuros alternativos para o mundo do trabalho digital.