A nova gramática da divisão do trabalho digital e os desafios da plataformização. Entrevista especial com Lucas Hertzog

A escalada da Covid-19 no mundo traz à tona o impacto da medição dos dispositivos digitais no trabalho e a profunda dependência humana desses espaços digitais

Foto: Reprodução/Sempre Update

Por: Ricardo Machado | 16 Abril 2020

Muitas atividades de trabalho só puderam se deslocar dos escritórios, salas de aula e companhias em geral por conta dos dispositivos digitais e da comunicação em nuvem, que permitem maior flexibilização nas rotinas de trabalho e circulação de trabalhadores. A expressão “home office” resume bem o que estamos tratando. Nestes tempos de pandemia, isso se tornou não somente uma forma eficaz de preservação da saúde dos trabalhadores, como também garantiu que muitas atividades pudessem ter continuidade e empregos fossem mantidos. No entanto, esses avanços tecnológicos são cheios de contradições, capazes de conectar você, caro leitor, ao trabalho mineiro escravo no continente africano.

“Engenheiros de software com altas remunerações dirigindo seus carros elétricos Tesla em Palo Alto (Santa Clara - Califórnia, EUA) estão na mesma rede de mineradores congoleses que extraem coltan em minas deploráveis e sob regimes de trabalho degradantes”, pontua o professor doutor Lucas Hertzog, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Essa cadeia se mostra cada vez mais abrangente nas relações de trabalho contemporâneas. Na atual pandemia de Covid-19 estamos percebendo a influência dos dispositivos digitais na mediação do trabalho. Muitos trabalhadores que se pensavam fora da divisão do trabalho digital passam a perceber cada vez mais o quanto dependem das tecnologias digitais para realizar suas tarefas. A reunião no Zoom ou no Skype, o relatório submetido ao Google Docs. O nível de dependência dos espaços digitais para a efetivação do trabalho não tem precedentes”, ressalta.

Hertzog analisa em profundidade como se dá o processo de plataformização do trabalho dentro do YouTube, tema de seu doutorado, e como o serviço tende a precarizar radicalmente as relações trabalhistas. “Os YouTubers que dependem apenas dos ganhos com a plataforma nunca sabem ao certo se terão dinheiro para pagar as contas nos próximos meses. Jamais sabem quanto a sua carreira vai durar. Depois de anos de trabalho cotidiano para a plataforma, a única certeza é uma tensão constante, uma insegurança profunda, e um regime de trabalho altamente prejudicial à saúde mental. A economia da atenção que move o YouTube deixa em suspenso qualquer garantia. Se estamos preocupados com a Uberização é porque ainda não estamos suficientemente atentos à Youtuberização”, alerta.

Contudo, prognósticos precisos em relação ao futuro do trabalho são absolutamente impossíveis. “Sociólogos têm uma habilidade ímpar de errar sobre o futuro, porque novas variáveis entram em cena. O recente abalo do surto de Covid-19 em todas as esferas da vida social é o tipo de perturbação que nos lembra que padrões são quebrados e que fatores externos podem mudar o curso da humanidade. Entender plataformas digitais e as dinâmicas sociais nelas inscritas são passos fundamentais para criarmos novos espaços plurais de circulação da informação”, complementa.

Lucas Hertzog- (Foto: Acervo pessoal)

Lucas Hertzog é doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2019) e pesquisador do Centre for Social Science Research - CSSR, na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como se dá a divisão social do trabalho digital na contemporaneidade? O que há de propriamente novo?

Lucas Hertzog – O trabalho digital depende de uma cadeia global que interconecta trabalho manual e intelectual. Começa no extrativismo de minérios e alcança a montagem de hardware. Passa por call centers indo até os headquarters das gigantes do vale do silício. Engenheiros de software com altas remunerações dirigindo seus carros elétricos Tesla em Palo Alto estão na mesma rede de mineradores congoleses que extraem coltan em minas deploráveis e sob regimes de trabalho degradantes.

Essa cadeia se mostra cada vez mais abrangente nas relações de trabalho contemporâneas. Na atual pandemia de Covid-19 estamos percebendo a influência dos dispositivos digitais na mediação do trabalho. Muitos trabalhadores que se pensavam fora da divisão do trabalho digital passam a perceber cada vez mais o quanto dependem das tecnologias digitais para realizar suas tarefas. A reunião no Zoom ou no Skype, o relatório submetido ao Google Docs. O nível de dependência dos espaços digitais para a efetivação do trabalho não tem precedentes.

IHU On-Line – De modo geral, como avalia a nova ecologia do trabalho no século XXI, especialmente as relações entre as plataformas digitais e as novas ocupações?

Lucas Hertzog As plataformas digitais e as ocupações emergentes são ambíguas. De um lado elas aparecem como oportunidade de renda para desempregados ou empregados em zonas cinzentas do trabalho. Pense por exemplo em um trabalhador de chão de fábrica de 50 anos, com 25 anos de experiência em uma montadora de automóveis. A fábrica fecha e ele perde o emprego, o que fazer? Longe da aposentadoria, “fazer” Uber parece o caminho natural. Mas ainda que ele possua alguma fonte de renda para aumentar suas chances de sobrevivência, os termos em que se “faz Uber” impedem que o trabalho seja fonte de segurança ontológica. Não há qualquer sentido de continuidade a respeito de uma carreira que se possa almejar.

A ecologia do trabalho digital consolida uma gramática que compactua com a flexibilização das leis trabalhistas e zomba da importância dos direitos do trabalhador. A ironia é que esta gramática sempre foi dominante em termos estatísticos no país. Nunca chegamos a consolidar uma rede de proteção efetiva a todos trabalhadores. Agora essa gramática ganha novos termos, alguns importados, como “home office” e “self branding”, e passa a ditar as lógicas de novos espaços de trabalho. São apenas novas embalagens e novos meios para velhas formas de exploração.

IHU On-Line – Na sua tese o senhor estudou a produção de conteúdos audiovisuais para o YouTube. Quais são as particularidades do YT na relação com o mundo do trabalho?

Lucas Hertzog – O YouTube funciona a partir do que poderíamos chamar de uma economia da atenção, baseada no tempo de exibição em minutos. Essa é a nova moeda. Para se tornarem economicamente viáveis na plataforma, os canais precisam acumular não apenas minutos ou horas, mas anos de exibição. A precisão nas métricas e os mecanismos de vigilância empregados não possuem precedentes no mundo do trabalho.

Essa moeda tem como imperativo a superexposição do “eu”, através do compartilhamento da intimidade em diversos níveis. Os YouTubers dependem dessa exposição constante. Esse nível de compartilhamento desloca o vetor de controle sobre o trabalho e passamos de um biopoder, disciplinador dos corpos, que marcou a idade moderna, para um controle da mente, ou psicopoder.

Nesse contexto de constante exposição da intimidade, é importante que não caiamos nas críticas do senso comum que estereotipam os YouTubers. A publicização cotidiana de si, seja “real” ou não, “autêntica” ou não, mais do que um traço de personalidade característico de uma cultura pastiche, sinaliza a emergência de comportamentos cada vez mais estimulados pelo sistema de produção. O que importa nesse cenário é menos uma crítica aos conteúdos e aos indivíduos que os produzem e mais a compreensão dos efeitos subjetivos incitados por um sistema que exige a amplificação da capacidade de vender a si mesmo. A “banheira de Nutella” (vídeo do YouTuber Luccas Neto por diversas vezes citado como um exemplo de conteúdo estapafúrdio) diz mais sobre a sociedade que acumula “tempo de exibição” nesse tipo de conteúdo audiovisual do que propriamente sobre seu produtor.

IHU On-Line – Quais são os quatro ecossistemas do trabalho no YouTube no Brasil? Como se caracterizam? Quais são suas particularidades e diferenças?

Lucas Hertzog – Na minha pesquisa foquei em quatro ecossistemas: diversão, infância, educação e política. No YouTube ecossistemas são espaços de relacionamento e concretização de novas formas de sociabilidade mediadas pela plataforma. Os ecossistemas são compostos por uma cultura de entendimento comum dos regulamentos internos e que tornam possível a emergência de representações coletivas. Isso implica uma maior relação entre canais, uma espécie de retroalimentação. Também implica a circulação de espectadores próximos em termos de conteúdo consumido.

O canal do Henry Bugalho (escritor e YouTuber progressista) está mais próximo ao canal do Arthur do Val (político e YouTuber da nova direita brasileira) que do canal “JR Construções” do Josias (trabalhador da construção civil e YouTuber no estilo “faça você mesmo”). Ainda que Henry Bugalho e Arthur do Val estejam separados em termos ideológicos, ambos habitam o “ecossistema político” do YouTube Brasil. Contraditoriamente, as críticas mútuas mantêm a proximidade entre produtores de conteúdo com perspectivas políticas distantes uma da outra. As réplicas e tréplicas adensam o ecossistema e isso é muito lucrativo para o YouTube.

IHU On-Line – Quais são os regimes de trabalho para o YouTube? Como os trabalhadores são contratados pela plataforma? Que tipos de contratos são firmados?

Lucas Hertzog – O YouTube opera sob um regime de insegurança radical. Não há qualquer garantia, contrato, ou qualquer forma de segurança ao trabalhador. O contrato é unilateral, os produtores de conteúdo apenas aceitam sem qualquer possibilidade de alteração. Os YouTubers que dependem apenas dos ganhos com a plataforma nunca sabem ao certo se terão dinheiro para pagar as contas nos próximos meses. Jamais sabem quanto a sua carreira vai durar. Depois de anos de trabalho cotidiano para a plataforma, a única certeza é uma tensão constante, uma insegurança profunda, e um regime de trabalho altamente prejudicial à saúde mental. A economia da atenção que move o YouTube deixa em suspenso qualquer garantia. Se estamos preocupados com a Uberização é porque ainda não estamos suficientemente atentos à Youtuberização.

Ao longo dos anos a plataforma vem alterando seus Termos de Serviço, Políticas de Privacidade e Diretrizes da Comunidade. O movimento que a Google faz é de cada vez mais se eximir de eventuais ofensas por conteúdos vinculados na plataforma. A responsabilidade recai sobre os produtores de conteúdo. À política dos strikes (um mecanismo para derrubar canais que infringirem as políticas da plataforma) soma-se a desmonetização dos vídeos que nem sempre ocorre de forma transparente. A 'actância' dos algoritmos aumenta a insegurança e os YouTubers nunca sabem ao certo o que precisam fazer para chamar a atenção dos usuários.

IHU On-Line – Que tipos de normalizações de relações trabalhistas, nem sempre progressistas, a produção de conteúdo para o YouTube produz?

Lucas Hertzog – Um dos processos mais perigosos nas relações de trabalho é a disseminação da ideia que é normal trabalhar por diversos meses e até anos sem qualquer retorno financeiro. A grande maioria dos YouTubers só começa a ver a cor do dinheiro depois de dezenas ou até centenas de vídeos enviados para a plataforma. É o tempo necessário para que haja “propagação pela persuasão” como pensamos na pesquisa à luz da teoria de Gabriel Tarde. Se adotarmos a premissa de que canais são empresas como qualquer outra, e que precisariam de um certo período de “incubação” até que os resultados começassem a ser percebidos, não há um grande problema. Entretanto, nesse período inicial em que o trabalhador não recebe dinheiro algum, o YouTube não deixa de lucrar.

Outro processo que ocorre no YouTube e diversas outras plataformas é o encobrimento da figura do empregador. Para diversos produtores de conteúdo, o YouTube é apenas uma plataforma para desenvolver seus trabalhos e não há um patrão definido. O que esse comportamento e percepção normalizam é que plataformas seriam artefatos tecnológicos desconectados de pessoas de carne e osso, o que não poderia estar mais longe da realidade. Na realidade, Sergey Brin, Larry Page e Eric Schmidt são os patrões, ainda que poucos YouTubers saibam quem eles são (o que demonstra a eficácia destas relações de poder).

IHU On-Line – Como se articulam e se caracterizam as dimensões microssociológica e macrossociológica do fenômeno desta ocupação digital de produção de conteúdos para o YouTube?

Lucas Hertzog – Como sugeriu Wright Mills, a imaginação sociológica se desenvolve entre as perturbações de caráter individual e questões de caráter estrutural. A dimensão microssociológica nos convida a descrever este novo espaço de trabalho. Importa compreender quais agências estão envolvidas – seja de usuários, trabalhadores, ou de artefatos tecnológicos – e também os traços comportamentais e subjetivos das performances na plataforma. A dimensão macrossociológica trata de recompor as dinâmicas do fenômeno à luz de acontecimentos amplos, ou seja, dinâmicas processuais do desenvolvimento do sistema de produção, através das quais tem se consolidado a ideia de que estaríamos caminhando em direção a regimes de flexibilização – em diversos aspectos da vida social, não apenas na esfera econômica.

IHU On-Line – Como o empreendedorismo de si impacta as subjetividades em torno do trabalho para plataformas como o YouTube?

Lucas Hertzog – Esta lógica impacta diretamente a percepção dos trabalhadores sobre suas próprias narrativas. Ouvi diversos YouTubers comentarem como foi importante “largar tudo” para iniciar uma atividade incerta na plataforma e que este passo inicial em “empreender” foi decisivo para seu sucesso. Porém, nem todos trabalhadores têm as disposições materiais e simbólicas para empreender.

A normalização da ideia que basta querer para empreender e ter sucesso é tendenciosa e não atenta aos números. No YouTube a quantidade de pessoas que efetivamente conseguem ter “sucesso” é ínfima. Logicamente existem casos como da Débora Aladim, que iniciou sua carreira no YouTube produzindo resumos de história e que hoje em dia possui um canal com mais de 2 milhões de inscritos. É um exemplo fascinante e inspirador, mas é apenas uma exceção à regra.

IHU On-Line – Uma questão sensível em torno das questões do trabalho nas mídias digitais é, justamente, a plataformização das relações trabalhistas, o que parece um caminho sem volta. A pergunta é: seria possível equilibrar melhor essas relações? Como garantir mais direitos aos trabalhadores?

Lucas Hertzog – A garantia de direitos aos trabalhadores pode operar em dois níveis: mobilização entre pares e novas tecnologias de remuneração direta. A primeira já ganha contornos muito claros em plataformas como o Uber, onde trabalhadores passam a se mobilizar criando um senso de coletividade e demandas trabalhistas em comum. No YouTube esse processo é incipiente, ainda que alguns YouTubers mencionem a necessidade de mobilização enquanto uma classe. A segunda acredito que ainda tenha muito caminho pela frente, como por exemplo no desenvolvimento de tecnologias como o blockchain, que permitiria a descentralização das formas de pagamento. Acredito que a garantia de direitos advirá de inovadoras formas de mobilização coletiva combinadas com novas tecnologias de descentralização dos fluxos de capital.

O caso do YouTube é mais problemático do que outras plataformas. Isso porque o YouTube tornou-se um repositório digital, um arquivo com mais de 15 anos de armazenamento de material audiovisual que dificilmente encontrará um competidor à altura. A combinação entre plataformização das relações trabalhistas e monopolização dos meios é nociva não apenas para os trabalhadores, mas também para o processo de democratização da informação.

IHU On-Line – Como o senhor vê o futuro do trabalho? Que respostas deverão ser dadas pela Sociologia, uma disciplina originalmente voltada a relações sociais humanas, mas que hoje se vê diante da necessidade de incorporar atores não humanos no processo de análise?

Lucas Hertzog – Muitos vêm anunciando o fim do trabalho e o aumento da robotização da mão de obra, o que não parece uma narrativa plausível nas próximas décadas para a maior porção dos trabalhadores. O trabalho tem pela frente caminhos e desafios distintos, variando conforme o CEP dos trabalhadores. O futuro do trabalho em Oslo e em Juba tendem a ser completamente diferentes. A única certeza é que haverá muita luta e que a Sociologia precisará se alimentar de outros campos do conhecimento para compreender este processo.

Na minha perspectiva a Sociologia que pensa o digital não deve focar nas novas tecnologias em si, mas nas influências que elas têm nas relações humanas. Smartphones e computadores em si não mudam os humanos. O que nos muda é algo que fazemos a nós mesmos com a ajuda desses computadores e smartphones.

Sociólogos têm uma habilidade ímpar de errar sobre o futuro, porque novas variáveis entram em cena. O recente abalo do surto de Covid-19 em todas as esferas da vida social é o tipo de perturbação que nos lembra que padrões são quebrados e que fatores externos podem mudar o curso da humanidade. Se eu tivesse que apostar, e possivelmente morder a língua no futuro, seria no retorno das artes e da filosofia ao centro do mundo do trabalho em países ricos, enquanto que trabalhadores do Sul Global continuarão com tarefas menos gloriosas.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Lucas Hertzog – A minha perspectiva crítica em relação ao trabalho no YT não invalida a existência de outras dimensões importantes e benéficas para a coletividade oriundas da plataforma. A capacidade de disseminação de informação através do YT não tem precedentes na história. A plataforma é revolucionária. Rapidamente qualquer usuário pode encontrar informações transformadoras, aulas de matemática, como consertar um motor ou dicas para uma entrevista de emprego. Jornalistas independentes desenvolvem seus trabalhos e abalam o monopólio das mídias tradicionais. Grupos minoritários utilizam seus vídeos como mecanismos de luta às opressões cotidianas. Anônimos passam a ser influentes na esfera pública. Os pontos positivos são múltiplos e os perigos também. Entender plataformas digitais e as dinâmicas sociais nelas inscritas são passos fundamentais para criarmos novos espaços plurais de circulação da informação. Como sugeriu o ativista Aaron Swartz, no momento não se trata mais de apenas algumas pessoas terem licença para falar. Agora todo mundo tem uma licença para falar. A questão central agora é compreender quem, e como, será ouvido.

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