07 Janeiro 2020
Internet das coisas, automação, Big Data, dataficação. Esses são alguns termos que remetem a tecnologias que já vêm promovendo uma revolução na forma como as pessoas se relacionam e se comunicam, com objetos e entre si, e que vão se aprofundar na década que começa na próxima semana, com grande impacto no futuro do mercado de trabalho. Para entender como o Brasil será afetado e o espaço que o País poderá ocupar numa economia em que os grandes empregadores dizem ser plataformas globais que “não geram empregos, mas conectam pessoas”, o Sul21 conversou com Rafael Grohmann, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos.
A entrevista é de Luís Eduardo Gomes, publicada por Sul21, 23-12-2019.
Grohmann, que também é editor e criador da newsletter DigiLabour, que traz informações e notícias sobre o trabalho na era digital, começa a sua fala destacando que não é possível utilizar no Brasil as mesmas prescrições de gurus e futurólogos sobre o mercado de trabalho que valem para a Alemanha, de onde vem o termo “indústria 4.0”. Por razões óbvias, os dois países não estão no mesmo patamar. Por isso, ele destaca que é preciso pensar sobre o futuro do mercado de trabalho no Brasil e como será possível escapar de um cenário de “dependência 4.0”, que seria a perpetuação de um país exportador de matéria-prima bruta e, agora, importador de plataformas digitais globais.
No entanto, nos cerca de 45 minutos de conversa, Grohmann indica que sua visão não é determinista a respeito do avanço da precarização e desregulamentação do trabalho, como o que tem sido visto a partir da chegada de aplicativos como Uber, iFood e Rappi. Pelo contrário, a partir da sua pesquisa sobre o trabalho digital, ele dá uma série de exemplos de categorias profissionais que estão emergindo nessa realidade de trabalho “plataformizado” e que estão buscando se organizar, bem como alternativas que estão sendo propostas à concentração dos mercados na mão destas plataformas. A entrevista também é um prato cheio para quem está em busca de dicas de leitura sobre essas questões. A seguir, confira a íntegra da conversa com Rafael Grohmann.
O Brasil está preparado para as mudanças no mundo trabalho que virão por aí na próxima década?
Acho que a primeira coisa a ser dita é que a gente precisa, de alguma maneira, se afastar de todas essas prescrições que colocam os futurólogos do mundo do trabalho, que são, às vezes, muito otimistas. É muito engraçado que, há 20 anos, as teses eurocêntricas falavam em fim do trabalho e existe hoje uma explosão de trabalho. Agora, depois de 20 anos, a gente vive um momento de extrema precarização do trabalho, as pessoas falam em futuro do trabalho, inclusive em relação à automação.
É importante a gente localizar qual é o papel do Brasil na cadeia produtiva global, nessa geopolítica do trabalho digital. O Brasil não é a Alemanha, de onde vem, inclusive, a expressão indústria 4.0. A gente não pode importar as teorias e essas prescrições sobre transformação digital como se fôssemos qualquer outro país.
O modo como as tecnologias são incorporadas na indústria, nos serviços e na vida cotidiana das pessoas é muito diferente. E aí se coloca uma previsão de, ou você se prepara pro digital e para a transformação digital, ou você morre. Essa semana mesmo teve uma pesquisa da Fiesp dizendo que o Brasil não está preparado para a indústria 4.0, para a inteligência artificial, etc, mas qual é o papel do Brasil em relação a essas tecnologias? Um País que investe pouquíssimo em ciência e tecnologia, por exemplo. E como vai disputar, no cenário geopolítico, essas questões? Me parece que, às vezes, as pessoas deslocam dessa questão digital todo o contexto econômico e político de um país. Aí criam alguns mantras, que pode-se chamar de um ‘business bingo’ ou de uma gramática do capital, em que você vai colocando na mesa palavras aleatórias, mas que juntas parecem ter algum sentido. Por exemplo, transformação digital, inovação, disrupção e por aí vai.
Só para tornar mais claro. O que é essa indústria 4.0?
É um termo cunhado na Alemanha e vem do que chegam a chamar de uma ideologia alemã digital que propõe toda essa dataficação da produção, digamos assim. Se formos usar uma expressão dos anos 90, uma digitalização de toda a produção a partir de questões como internet das coisas, como a inserção de algoritmos, dados e inteligência artificial nos processos industriais. Isso que é chamado de indústria 4.0, especificamente. Mas eu considero que é só um elemento do que eu tenho chamado de trabalho digital.
O que é o trabalho digital? Na verdade, tem duas denominações que eu tenho usado, uma mais ampla e outra mais focada. A mais ampla é: hoje em dia todas as atividades de trabalho, de uma maneira ou outra, estão inseridas na cadeia produtiva de valor do trabalho digital. Por exemplo, um iPhone, para ser produzido, precisa passar desde o trabalho escravo na Foxconn, na China, até os desenvolvedores do Vale do Silício. Ou seja, existe algo de trabalho digital nessa cadeia produtiva toda. Assim como, para você gravar uma música, tem desde o cara que fabrica a guitarra que depois vai parar numa banda que vai gravar uma música para o Spotify. Quer dizer, isso mostra como há uma digitalização de várias etapas, de vários processos relacionados ao trabalho. Outra coisa, e isso é uma definição mais focada, são os trabalhos que necessariamente são mediados por plataformas digitais ou por mecanismos de inteligência artificial. Esse debate tem-se chamado de uberização do trabalho ou plataformização do trabalho.
Sim, acabou ficando conhecido como uberização porque é o exemplo mais conhecido pelas pessoas.
Eu tenho falado que o melhor termo para designar esse processo do trabalho digital não é uberização, mas plataformização, porque, na verdade, é isso o que se mantém. Há uma diversidade de atividades de trabalho que estão sendo plataformizadas. Além de Uber, iFood e Rappi, que são os exemplos midiaticamente que mais aparecem e tem também tido uma organização dos próprios trabalhadores em relação a isso, há plataformas de microtrabalho.
A mais conhecida é a Amazon Mechanical Turk, onde as pessoas treinam para a inteligência artificial, em condições, às vezes, precaríssimas. É basicamente uma plataforma da Amazon, criada em 2005, cujo slogan é inteligência artificial artificial. Ou seja, são o que eles chamam de robôs humanos treinando reconhecimento facial, preenchendo questionários, alimentando banco de dados, ganhando pouquíssimo dinheiro, a maioria nos Estados Unidos e na Índia.
Os brasileiros não poderiam participar, porque só os trabalhadores dos EUA e da Índia recebem dinheiro, mas recebem em crédito na Amazon tudo que ganham e só podem gastar na Amazon. O que eles fazem? Esperam dar um número x de créditos, compram um Playstation e revendem no Mercado Livre ou em outro site qualquer. Ou seja, junta o ápice de plataformização do trabalho com o que é histórico no Brasil, que é a viração.
Como funciona? Que tipo de trabalho a pessoa faz nessa plataforma?
Nessa plataforma da Amazon, e tem outras, as empresas do mundo todo podem pedir tarefas para as pessoas executarem, é o chamado trabalho de multidão. Como pedirem para as pessoas reconhecerem mil fotos do que é um cachorro e do que é um gato, porque a inteligência artificial, no fundo, é uma tomada automatizada de decisões que funciona a partir de uma grande base de dados. As pessoas ficam alimentando esses dados. Então, desde isso, até moderadores de conteúdo que têm que dizer o que é um conteúdo cheio de sangue, pessoas decapitadas e tudo que é tipo de coisa. Tem pesquisas e livros que têm tratado deste tema especificamente. Um deles se chama ‘Ghost Work’.
Então, basicamente, é um trabalho para alimentar banco de dados?
Pode ser desde esses que eu falei, tem pesquisas envolvidas também, às vezes pessoas respondem questionários, tem preenchimento de banco de dados. Por exemplo, ‘Quero que vocês preencham todos os possíveis lugares turísticos de Nova York para uma empresa de turismo’. Tem transcrição e tradução de textos, de áudios. Cada tarefa dessas [tem um valor]. Cada foto que você avalia, são 10 cents de dólar [por exemplo]. Na maior parte das vezes, [os trabalhadores] são da Índia. Mas essa é só a plataforma mais conhecida. Tem plataformas dessas de microtrabalho que são mais avançadas do que essa da Amazon. Tem pessoas que treinam dados para carros autônomos em uma empresa que até foi comprada pela Uber. A maior parte das pessoas são da Venezuela e tem até brasileiros envolvidos nisso.
Eu tenho categorizado as plataformas de trabalho em três tipos. A primeira é o tipo de trabalho que exige uma localização específica do trabalhador, tipo Uber, iFood, que você precisa estar no lugar. A segunda são as plataformas de microtrabalho, em que se alimenta a inteligência artificial e, a terceira, plataformas de macrotrabalho, que é o trabalho freelancer que se plataformizou também, desde designers, jornalistas, publicitários. Tem plataformas em que você pode contratar desde um Papai Noel até um assessor de imprensa. Isso sem considerar, de alguma maneira, todo o trabalho gratuito que a gente faz alimentando os dados como usuários das redes sociais.
Esses trabalhos plataformizados serão a maior parte dos postos de trabalho que serão oferecidos daqui a alguns anos ou ainda vai coexistir com o trabalho operário, de atendente de loja, etc?
É importante dizer que o que diferencia também o Brasil de processos da Europa e dos Estados Unidos é que, aqui, o bico e a viração, que é o se virar, sempre foi a norma, não a exceção. No fundo, aqui o trabalho informal sempre foi a regra. Então, convivem e vão conviver trabalhos históricos, esse trabalho operário e o trabalho de atendente, com esse trabalho plataformizado. Isso vai ocorrer por muito tempo. De maneira que, um, a automação nunca vai ser completa e, dois, o que vai existir é que se vai cada vez mais espremendo sub-empregos, plataformizados ou não, e não necessariamente uma automação completa.
Nessa crescente plataformização do trabalho, nós vemos que o freelancer de classe média, há dez anos, não trabalhava numa plataforma, alguns trabalhavam por opção e outros por imposição, para pagar as contas. Isso, de alguma maneira, se plataformizou. Existe cada vez menos uma absorção pelo mercado formal, quando há a absorção pelo mercado formal, não existe mais uma carreira. Mesmo na carreira de jornalista, que é uma profissão que eu estudo há mais tempo, as pessoas ficam, no máximo, 10 anos numa redação, em média. Tem muita gente que transita entre carreiras, mesmo no mercado formal. Então, de maneira que, daqui a 10 anos, essas coisas vão continuar convivendo no Brasil.
O que já está acontecendo no Brasil é o aprofundamento dessa divisão entre o que é terceirizado, quarteirizado, e o que é trabalho formal. Porque esses trabalhos plataformizados nada mais são do que uma terceirização por meio de plataforma digital, e o que está sumindo é a contratação direta pela empresa, em que o trabalhador pode ter benefícios, plano de saúde, etc. A pergunta que eu faço é: a tendência é uma precarização cada vez maior das condições de trabalho?
O Ricardo Antunes [sociólogo e professor da Unicamp] tem falado, além do Privilégio da Servidão, que é o último livro dele, que o capitalismo de plataforma é a proto forma do capitalismo. Ele vai dizer que, nesse momento, o capitalismo retorna a formas primitivas de exploração. O que acontece é que, nessa terceirização ou quarteirização, as empresas de plataforma muitas vezes não se colocam como uma empresa de trabalho, se colocam como uma empresa que só conecta pessoas. Isso vem da ideologia do Vale do Silício da disrupção, entre aspas.
O que há de diferente nessa plataformização? Você tem as plataformas que são geridas por algoritmos, que têm seus vieses, inclusive de gênero, de raça, que tem seus mecanismo discriminatórios, que, por sua vez, alimentam-se de dados dos consumidores e dos trabalhadores. Por exemplo, a Uber está preparando o carro autônomo, então não dá para descolar a questão dessa plataformização do trabalho do debate sobre dados e algoritmos. Existe então uma vigilância e um controle algorítmico desses trabalhadores, principalmente em plataformas ligadas a localização. Há uma vigilância que se dá por meio dessas plataformas e é muito mais eficaz do ponto de vista da gestão do capital.
Existe aí também uma gamificação [inserção de elementos de videojogos] do próprio trabalho incluída nos processos de gestão. ‘Faça mais uma corrida’, ‘mude de nível’, tem plataformas que parecem um jogo. ‘Você está no nível 2, faça mais tempo de trabalho que você chega no nível 3’. Mas, de alguma maneira, esses processos de gamificação se dão também em outras atividades que não em plataformas.
O que eu tenho falado é que a plataformização do trabalho é um combo de um processo de dataficação, ou seja, dessa centralidade de dados e algoritmos na nossa vida, mais uma racionalidade neoliberal, empreendedora, completamente perversa, que justifica todo esse processo, e também um processo de financeirização. Essas coisas não estão deslocadas ao se pensar a plataformização do trabalho.
Isso tem um limite social? Até que ponto as pessoas podem suportar esses trabalhos? Por exemplo, o Rappi teve um protesto no Rio de Janeiro, em que os entregadores apontavam justamente como essa gamificação e a oferta de descontos muitas vezes reduz a remuneração, que já é baixa, deles. É possível que isso cause um choque social? É possível que isso seja, de alguma forma, mitigado pelo impacto social grave que traz a total precarização e desproteção da classe trabalhadora? Como tu vês isso?
Eu não acredito no que eu chamo de ideologia da Vanessa da Mata, ‘as coisas não têm mais jeito’, ‘acabou’, ‘boa sorte’. Não existe trabalhador inorganizável. Não é porque estão em condições plataformizadas ou que nós estamos há muito tempo em condições individualizadas de trabalho que as pessoas não são organizáveis. Como você falou, existe um limite. Tem acontecido em todas essas categorias, desde as plataformas de microtrabalho até as plataformas de localização específica, um processo de reconhecimento dos trabalhadores como trabalhadores. O que é super engraçado, porque, há quase 10 anos, a gente fez uma pesquisa sobre jornalistas em São Paulo e eles não se reconheciam como classe trabalhadora. Isso tem se transformado em vários estratos das classes que precisam do trabalho, para usar uma expressão do Ricardo Antunes. Se a sua renda depende da própria força de trabalho, você é um trabalhador, seja você ganhando R$ 20 mil, seja você ganhando um salário mínimo. Isso tem gerado uma nova onda de organização coletiva dos trabalhadores.
Eu vou dar agora uma série de exemplos. Desde, digamos assim, a camada média alta de trabalhadores do Vale do Silício que estão tentando criar um sindicato, tem o Tech Workers Coalition, que é dos trabalhadores da área de tecnologia. Aqui no Brasil, você tem o Infoproletários, que são trabalhadores de TI em luta. Você vê um movimento acontecendo tanto no norte, quanto no sul. Já há organização coletiva de trabalhadores de Uber. Aqui no Brasil, já tem associações na Bahia, em Pernambuco, tem uma em São Paulo já filiada à CUT.
A partir do debate na Inglaterra, tem hoje uma organização coletiva dos trabalhadores da indústria do videogame, que também naturalizavam áreas de trabalho como se fossem um jogo. Hoje tem o Game Workers United em 10 países, trabalhadores se movimentando. Inclusive, no Brasil e na Argentina, tem capítulos desse Game Workers United. Você tem, na Alemanha, um sindicato de youtubers vinculado ao maior sindicato metalúrgico alemão, que é o IG Metall, em que os youtubers reivindicam da plataforma maior transparência algorítmica e resultados mais transparentes em relação à desmonetização dos youtubers. E une youtubers de esquerda e direita. Até se coloca nesse debate o quanto que essa luta e essa organização não é necessariamente a mesma luta entre capital e trabalho dos anos 1980.
Quando você tem novos mecanismos de controle, isso exige novas maneiras de organização dos trabalhadores, não repetição das mesmas. Por exemplo, um dos debates que se tem levantado é que não dá para você confrontar Uber, Youtube ou a indústria de games de uma maneira somente local.
A luta dos trabalhadores é uma organização de baixo para cima, mas tem que ser uma luta internacional. O grande dilema é que essas plataformas são globais. Tem rolado uma nova onda de sindicalização, e aí é sindicalização mesmo, de jornalistas, desde Buzzfeed, Vox, Vice, entre outras, e a partir de plataformas digitais. ‘Nós não fazemos só memes, nós também somos trabalhadores’. Ou seja, acho que já estamos, senão perto, nesse ponto de virada em que as pessoas já estão cansadas e buscando mecanismos de organização. A própria Amazon Mechanical Turks tem no Turker Nation uma maneira de organização do trabalho.
Uma coisa que é importante dizer é que muitas dessas maneiras de organização dos trabalhadores de plataforma é também por vias digitais. Desde grupos do WhatsApp e Facebook, até uma plataforma chamada Discord. É muito interessante que é uma plataforma para games. Como ela tem uma interface muito amigável, essa plataforma é usada para organizar os trabalhadores, marcar reuniões, discutir questões, então vira uma plataforma realmente de debate e organização dos trabalhadores. É algo que alguns autores têm falado de usar a gamificação a favor dos trabalhadores, uma gamificação vinda de baixo. Nesse cenário do trabalho digital, eu não vejo como algo inevitável.
Então, na verdade, essa precarização pode ser combatida de alguma forma.
Sim. Na verdade, estão em processo de luta e eu acho que é nisso que todos os lutadores envolvidos com essas questões estão imbuídos. Eu posso citar três tipos de movimentos que eu tenho visto em relação a mudar as coisas no trabalho digital. E nenhuma dessas coisas é revolucionária, mas também tem gente tratando de uma forma mais radical.
A primeira dimensão é o que eu tenho chamado de regulação do trabalho nas plataformas digitais, um movimento vindo do pessoal da área jurídica que tem lutado para regular esse trabalho que é dito que não é trabalho ou não tem vínculo com as empresas como um trabalho que seja reconhecido. Isso vai desde atuações do Ministério Público do Trabalho, que está, de alguma maneira, envolvido com essa questão no Brasil todo, tem relatórios sobre isso. A OIT [Organização Internacional do Trabalho] tem feito relatórios sobre o que chama de trabalho decente agora nas plataformas digitais.
Tem um trabalho que nós estamos trazendo agora para o Brasil, que é um projeto de Oxford, chamado Fair Work — trabalho justo –, que, partindo dos critérios da OIT sobre trabalho decente, tenta classificar as plataformas de trabalho de acordo com essa questão. Basicamente, ela tenta pressionar as plataformas digitais por melhores condições de trabalho, por vias jurídicas, políticas, midiáticas. Já tem pilotos na Índia, na África do Sul, está começando na Alemanha e na Irlanda, e vamos começar, no ano que vem, no Chile, no Brasil e na Indonésia. Essa primeira questão é a regulação do trabalho.
Uma segunda dimensão é a organização coletiva dos trabalhadores, que têm, de alguma maneira, redescoberto formas tradicionais de luta, mas também se descobrindo nesse processo como trabalhadores e quais mecanismos de organização podem ser colocados. E uma terceira dimensão é uma tentativa de criar outras formas de organização do trabalho que sejam autogeridas. Aí eu indico principalmente um movimento, que também tem vindo para o Brasil, mas vem dos EUA, que é o chamado cooperativismo de plataforma, que busca aliar todo o potencial tecnológico das plataformas com a organização do trabalho cooperativado. Isso significa desde, por um lado, plataformizar cooperativas já existentes, até transformar plataformas em cooperativas. Tem desde cooperativas de agricultores que plataformizaram tipo um iFood, em que você pode comprar direto deles. Tem proposta de Airbnb que sejam geridas pelas cidades. Aqui no Brasil, tem o Cataki, que é a plataforma dos catadores de latinha, tem cooperativas de fotógrafos, de games, em várias áreas.
Então, esse movimento de cooperativas de plataformas têm vindo forte e tem outros movimentos que têm se colocado nesse debate. Por exemplo, o pessoal dos EUA que fez a campanha da Ocásio-Cortez [deputa da esquerda do Partido Democrata nos EUA], no ano passado, está criando a Means TV, que está sendo chamada de Netflix anticapilista e é uma plataforma de streaming para conteúdos anticapitalistas, funcionando como uma cooperativa de produtores de audiovisual. Então, tem rolado movimentos também em buscas de autogestão e outras formas de organização do trabalho. Essas três dimensões são reformistas.
Mas tem pessoas que vão defender, e isso está no livro ‘Riding for Deliveroo’, que a cooperativa é uma situação paliativa e que isso só vai ser melhorado se houver uma expropriação das plataformas digitais pelos trabalhadores, pensando que esse seria o futuro do trabalho possível e não o futuro do trabalho que as empresas, de alguma maneira, querem e nos fazem engolir. Em abril do ano que vem, uma programadora chamada Wendy Liy vai lançar um livro chamado ‘Abolir o Vale do Silício’, em que ela vai dizer como é possível reapropriar a tecnologia do Vale do Silício para fins socialistas. Todos esses exemplos que eu falei mostram, de alguma maneira, que as coisas estão em movimento e que, se há por um lado uma força muito forte dos novos mecanismos do capital por maior controle, por intensificar a precarização do trabalho, há também, ainda que em menor grau, tentativas de resistência e alternativas a esse cenário. Então, acho que é o nosso papel como trabalhadores, como pesquisadores, como academia, não só analisar esse cenário, mas também ajudar a criar mecanismos e também políticas públicas para que se transforme de uma maneira justa. Precisamos buscar formas de reapropriar as plataformas de formas coletivas e cooperativas, o que inclui pensar a noção de comum aplicada a dados, algoritmos e softwares
Pegando esse gancho das políticas públicas. O que temos visto é o aprofundamento do chamado neoliberalismo no mundo, desregulamentação, privatização, o que está alinhado com a questão da plataformização que, como tu disseste, é talvez uma retomada ao estágio inicial do capitalismo, sem regras. Isso não vai colocar uma grande pressão no poder público para suprir demandas de saúde, de educação, um pouco do que a gente vê nos EUA com o crescimento da pauta da universalização do sistema de saúde?
Eu sempre fico com o Dardot e o Laval, do livro “A Nova Razão do Mundo”, pra dizer que o neoliberalismo, além de uma política econômica, é uma racionalidade, um estado de espírito que vai sendo incorporado na vida das pessoas e na maneira de viver delas no dia a dia, de maneira que, inclusive, o próprio estado não é exatamente um estado mínimo, mas um estado que busca promover o empreendedorismo em todas as facetas da vida, com um discurso de eficiência, de objetividade. O que acontece é que você coloca em cima dessa racionalidade empreendedora a questão da plataformização e que esse imaginário de dados e algoritmos são coisas objetivas e eficientes. Isso envolve todas as questões que têm sido chamadas de desburocratização, como se tudo fosse resolvido como isso. A plataformização está, a partir de uma lógica empreendedora, inclusive no ponto de vista do estado, que ajuda a promover e a facilitar esse tipo de questão.
Por um lado, esse debate sobre a regulação é um debate que o estado brasileiro vai ter que também dar resposta. Na verdade, nesse cenário político, eles não querem dar resposta a nada disso, mas vai ter uma pressão, não só por políticas públicas de educação e saúde, mas também do próprio trabalho. As últimas pesquisas o IBGE colocaram que a informalidade bateu recorde no Brasil, sendo que a informalidade já era a própria norma. E as saídas oferecidas são muito tímidas. Você veja o próprio caso do MEI [Microempreendor Individual].
Obviamente, eu prefiro alguém que tenha MEI do que não ter nenhum tipo de proteção, mas a MEI já é um pequeno paliativo, não resolve a nossa questão. Ela, de uma maneira, formaliza algumas atividades que estavam completamente invisíveis, o que por um lado é bom, mas não pode ficar só aí. Num país em que o próprio Ministério do Trabalho é extinto, como a gente pode esperar políticas voltadas para o trabalho decente? Acho que essa é a grande questão. É preciso, no debate sobre o futuro das tecnologias e o futuro do trabalho, considerar os trabalhadores como ponto de vista central, porque, senão, a gente vai estar reproduzindo e aumentando desigualdades e a exclusão no País. Então, em vez de um futuro do trabalho que é só para a elite brasileira, é preciso restabelecer a ideia de futuro do trabalho no presente a partir do ponto de vista dos trabalhadores.
A gente começou falando que existia uma diferença entre o futuro do trabalho no Brasil e na Alemanha. Qual é a perspectiva de um país periférico, como o Brasil, que fez uma escolha, e isso já há muito tempo, de seguir como exportador de commodities, de matérias-primas brutas? Qual é o futuro de um país que tem se colocado como periférico no capitalismo nessa sociedade que vai ser completamente alterada pela internet das coisas, pela automação, etc?
Dependência. A gente volta, na indústria 4.0, à dependência 4.0. Essas plataformas digitais, de alguma maneira, dependem de mecanismos que o Brasil não controla. E uma coisa básica, 30% do dinheiro pago aos motoristas da Uber não fica no Brasil. Ou seja, como é que a gente cria mecanismos para confrontar isso do ponto de vista brasileiro, senão a gente vai aprofundar o nosso lugar periférico e dependente. Aí precisa também, e esse é um movimento que nós pesquisadores estamos começando a fazer, dialogar com pesquisadores do sul global que têm pesquisado essas questões. Esse é o grande desafio, de como superar esse lugar de país periférico, mas que demanda uma mudança estrutural de base no que se refere às políticas de tecnologia e à questão do próprio trabalho. De tudo que eu disse que acho que não é inevitável, acho que essa é a barreira, do ponto de vista brasileiro, mais difícil de ser transformada, justamente porque, como você destacou, é uma questão histórica e que, de alguma maneira, agora se aprofunda. Qual é a autonomia do país em relação à tecnologia?
É muito engraçado, muito curioso, como tem um autor chamado Álvaro Vieira Pinto, que foi professor do Paulo Freire, que é um pesquisador dos mais relevantes para pensar tecnologia do ponto de vista brasileiro e escreveu, nos anos 70, um livro chamado ‘O Conceito de Tecnologia’, pensando o que significa tecnologia do ponto de vista do capitalista dependente no Brasil, e é um autor completamente esquecido, inclusive pela própria esquerda, e que poderia, mesmo com livros da década de 70, nos ajudar a pensar como recondicionar a autonomia do País e dos brasileiros em relação à tecnologia e a esse capitalismo dependente. E aí, o Álvaro Vieira Pinto diz que não dá para descolar tecnologia e trabalho e sair por aí, e isso são palavras dele, dizendo que agora vivemos uma revolução tecnológica ou que agora vivemos numa era tecnológica, porque o ser humano sempre produziu tecnologia. O que significa pensar quais os papeis que essas tecnologias desempenham no cenário econômico-político global e qual o lugar do Brasil. E eu termino fazendo um convite à leitura desse livro do Álvaro Vieira Pinto, chamado ‘O Conceito de Tecnologia’.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, na Unisinos Campus Porto Alegre. (Nota de IHU On-Line).
XIX Simpósio Internacional. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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Futuro do mercado de trabalho brasileiro pode ser de ‘dependência 4.0’. Entrevista com Rafael Grohmann - Instituto Humanitas Unisinos - IHU