15 Março 2018
Guillermo Mastrini analisa o processo atual de convergência entre as telecomunicações e os conteúdos e o surgimento de grandes atores globais que não reconhecem barreiras nacionais. O avanço da concentração infocomunicacional na Argentina e na América Latina. Um avanço da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual.
Por que pensamos, sentimos e vemos de uma determinada maneira? Somos livres para ler, ver e ouvir o que queremos, ou alguém define aquilo a que temos acesso com vistas a modelar a nossa visão do mundo? Em suma, perguntas que podem remontar à alegoria da caverna de Platão e além. Responder a estas perguntas é uma tarefa nada simples.
No início do século XXI, para indagar essas questões, é inevitável reconhecer quais jornais lemos, quais rádios ouvimos e quais programas de televisão e séries assistimos, entre tantos outros temas pertinentes que moldam a nossa subjetividade. Mas também, e sobretudo, é essencial entender como funciona a maquinaria da indústria cultural que trabalha incessantemente para chegar às nossas mentes.
Nesse sentido, o livro A concentração infocomunicacional na América Latina (2000-2015), de Guillermo Mastrini e Martín Becerra – ambos especialistas em políticas de comunicação e pesquisadores do Conicet –, é um material imprescindível para a compreensão do cenário regional e de seus atores mais relevantes.
“Nós tínhamos dois setores com tradições econômicas, políticas, regulatórias e de consumo totalmente diferentes. De um lado estavam os meios de comunicação e, de outro, as telecomunicações. Para as telecomunicações, a única coisa importante era a conexão; o conteúdo não importa. Ao passo que para a radiodifusão o conteúdo era fundamental”, explica Guillermo Mastrini.
Essas duas tradições assinaladas pelo pesquisador de um tempo para cá tendem a ir pelo mesmo caminho; é o chamado fenômeno da convergência. “Mas todo o processo de transformação das representações simbólicas através de uma lógica digital faz confluir diferentes tradições para o mesmo espaço, que é a internet”, esclarece.
Nesta entrevista, o especialista discorre sobre a estruturação de um setor-chave para a democracia, a socialização e a produção cultural, e analisa políticas como a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, hoje caduca devido às modificações regulatórias realizadas pelo governo do Cambiemos.
A entrevista é de Verónica Engler, publicada por Página/12, 12-03-2018. A tradução é de André Langer.
Quais são os desafios propostos pela convergência?
O primeiro desafio é político e tem a ver com o fato de como neste ambiente convergente vai se promover toda a regulação que protegia a diversidade cultural. Alguns acreditam, pela importância dos sistemas de comunicação no mundo, que é necessário haver algumas regulações que possibilitem os elementos básicos para que uma sociedade seja plural e esse pluralismo seja representado nas formas de comunicação, especialmente nas formas de comunicação convencional. Porque uma coisa que acontece hoje é que qualquer pessoa pode publicar o que quiser nas redes sociais, mas quem olha isso? Os amigos da pessoa que publicou, 200 ou 500, mas não 50 mil ou mais.
Em termos de representação social hoje, os principais processos de comunicação ainda passam, salvo exceções muito específicas que se tornam virais, pelos grandes meios de comunicação e alguns novos que se formaram com a internet. Então, o que acontece com a tradição regulatória? Qual dessas duas lógicas vai se impor: a da conexão ou da proteção de alguns conteúdos que entendemos que são fundamentais para uma sociedade plural e democrática? Ou seja, a economia das telecomunicações e da internet tem uma lógica, a economia cultural tem outra.
De fato, a maioria das indústrias culturais historicamente teve uma forte regulamentação de proteção por parte do Estado.
Claro, porque sua economia é tão instável que sem algum tipo de proteção, em geral, apenas os maiores tendem a sobreviver. E desde o século XX, desde muito cedo, os Estados tiveram políticas públicas de promoção da diversidade, dito de forma muito genérica. Diversidade em conteúdos políticos, culturais e linguísticos; e também, algo que na América Latina aconteceu muito menos, conteúdos nacionais, no sentido de que em um país a cultura não é apenas a cultura da capital. Este sistema de proteção nunca foi pleno ou maravilhoso, nem houve uma pluralidade absoluta, mas servia para promover algum nível de diversidade, na minha opinião longe do ótimo, mas muito melhor do que teria sido sem essa política.
Hoje, a convergência parece apresentar uma lógica de que já não há diferenças, porque quando você olha a Netflix em seu telefone celular, você está assistindo televisão ou fazendo um processo de telecomunicações? Desta forma, toda a lógica de proteção que havia no campo da radiodifusão tende a desaparecer em uma lógica muito grande, tecnológica, e com outro agravante: em geral, a digitalização rompe uma barreira importante que os mercados culturais tinham que é o Estado-nação.
Neste cenário em que as barreiras nacionais parecem diluir-se, como jogam atores globais como a Netflix ou o Spotify?
A Netflix ou o Spotify pensam que seu mercado é o mundo, não mais os Estados Unidos, embora tenham políticas comerciais em cada lugar. Seus modelos de produção e de rentabilidade estão no mercado mundial. Então, aqui temos outro desafio proposto pela convergência que é como a política nacional interage com os mercados globais, porque a Netflix não se reconhece limitado pela ação do Estado, e aqui vem toda uma questão de política pública, porque começam a se produzir assimetrias regulatórias. Não é possível exigir da Netflix, por exemplo, uma cota de produção nacional, uma cota de diversidade, uma vez que seu servidor está nos Estados Unidos. E os meios de comunicação nacionais que têm de cumprir as cotas de representação dizem: “bem, eu quero o mesmo que a Netflix”.
A tendência é perder a regulação. Este é um tema que, pelo menos, deveria ser discutido e proposto socialmente. Mas essas discussões geralmente não ocorrem em nossas sociedades, mas no cenário global, ao qual chegam apenas alguns: os muitos poderosos sempre e, às vezes, algumas organizações sociais que conseguem inserir-se nesses cenários. Isso levanta uma discussão sobre o exercício dos direitos dos cidadãos hoje no cenário global. Perguntar-se pela concentração dos meios de comunicação tem a ver com esses processos de como a cidadania se relaciona com o conhecimento e a informação sobre as coisas que as afetam.
Neste cenário, a questão da liberdade de expressão parece ficar limitada pela discussão sobre a liberdade de mercado.
Bem, mas mesmo na América Latina existem cenários interessantes, como algumas discussões levantadas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Aí vejo aspectos muito positivos, em termos de direitos e posições que tendem a se consolidar em um ambiente supranacional, como essas organizações multinacionais. Em alguns casos, o que observo nestes lugares é uma preocupação com alguns direitos individuais, como a proteção de dados pessoais ou a privacidade, mas não tanto pelos direitos coletivos, que ficam em um segundo plano. Por exemplo, a questão da concentração é um tema que esses organismos mencionam como preocupante, mas sua ação política é muito mais limitada, porque ainda existem os governos.
Eu acredito que essas discussões precisam continuar e o desafio é trazê-las para a vida cotidiana. Nesse sentido, uma das coisas que eu mais resgato de todo o processo que tinha a ver com a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual na Argentina é o nível de debate público que ocorreu durante quatro ou cinco anos em relação ao papel dos meios de comunicação na sociedade. Obviamente, estamos em um momento em que esse debate desapareceu, mas sedimentou um conhecimento social e perguntas nas pessoas sobre o papel dos meios de comunicação.
Mas nos seis anos seguintes à promulgação da Lei sobre Serviços de Comunicação Audiovisual (2009) praticamente foi impossível mudar o cenário de concentração que havia na Argentina. Por que essa situação não pôde ser alterada?
Este não é um fenômeno que se viu apenas na Argentina. Embora os processos não fossem os mesmos, a situação se deu em diferentes lugares da região, houve leis e discussões intensas na Venezuela e no Equador, por exemplo. Mas, na realidade, o impacto de toda essa discussão e de todas as políticas foi pequeno. Por um lado, não devemos negar a capacidade dos grandes grupos de resistir a essas novas políticas, porque, de fato, e como é lógico, todos os interesses afetados procuram se defender. E (o setor dos meios de comunicação concentrados) têm muitos recursos econômicos e políticos para limitar o efeito desta transformação. Por outro lado, e penso isso mais especificamente para o caso argentino, acredito que houve uma confusão entre o tático e o estratégico na aplicação da lei.
Ou seja, ficaram no aspecto tático, na batalha contra um grupo particular, o Grupo Clarín, e não no aspecto estratégico da transformação do sistema. Nesse sentido, não vejo, e creio que é um dos problemas, que, com as leis da mídia na América Latina, as mudanças tenham sido promovidas no cotidiano das pessoas. Então, a legitimidade é menor. É por isso que Macri, com um decreto, transforma o coração da lei, e socialmente isso não tem custo político, não tem impacto, exceto nos grupos que participam desta questão, mas que são muito pequenos em termos sociais. E há uma outra questão que também não devemos negar e que é o tempo. Porque não se transforma um sistema audiovisual em quinze minutos. Obviamente, talvez demorasse mais tempo, mas acho que se poderia ter sido feito mais no tempo que havia.
O que mais poderia ter sido feito nesses seis anos?
Na Argentina, concretamente, acho que deveria ter havido um plano técnico, deveria ter se dado muito mais licenças do que foram dadas, e acho que deveríamos ter promovido um sistema de meios de comunicação do Estado muito mais forte e plural do que realmente houve. Também acredito que não ter concluído os processos de readequação dos grupos foi um grande erro. Estava tudo pronto para fazer isso.
Quais são as consequências da concentração neste quadro de convergência global para nossas sociedades?
Eu diria que há duas grandes consequências: uma é econômica, porque quando as empresas tendem a ser maiores, elas desencorajam a concorrência, porque os novos atores acham cada vez mais difícil competir com os atores que já existem. Isso aconteceu em qualquer área da economia, tanto para as telecomunicações quanto para o setor audiovisual. Hoje, há uma grande discussão, porque quando os grandes jogadores globais aparecem, os grupos nacionais acreditam que isso também os afeta. Para dizê-lo sem rodeios: o Clarín ao lado da Netflix é como um “meio comunitário”. Então, esses meios de comunicação crescem ou desaparecem.
Nesse sentido, a estratégia de crescimento do Grupo Clarín, além de eu não compartilhar em termos do que representa para a sociedade, tem uma lógica econômica muito razoável e são jogadores que leem o mercado mundial da comunicação e que tentam adaptar-se a ele: ou cresce ou tende a desaparecer. Do meu ponto de vista, a concentração gera uma eficiência econômica em termos de economia de custos para as empresas, mas uma ineficiência econômica geral em termos de que limita a concorrência.
Vocês dizem no livro que o sucesso na distribuição ou comercialização dos produtos culturais é improvável, pois neste setor verifica-se a regra 80-20, o que significa que 80% de todo o conteúdo da mídia não é lucrativo, e que o lucro maior é gerado por 2% dos produtos. Nesta lógica do capital, quem sobrevive?
A regra de que muito pouco gera todos os lucros e a maioria dos produtos não são consumidos está presente desde que as indústrias culturais existem. Existiu, existe e existirá. A lógica do consumo cultural é assim, porque tem a ver com as características dos bens simbólicos. Por que consumimos o que consumimos? Não há um padrão, ninguém sabe o que vai ser um sucesso e o que não é, e então o mercado precisa lançar vinte mil coisas para encontrar o sucesso.
Mas apenas os muito grandes podem suportar essa característica. Por isso a política cultural também foi um limite para essa tendência econômica. A política cultural procura limitar os efeitos da concentração. Por diversas razões, não há uma concentração boa. Mas no mercado cultural, no setor audiovisual especificamente, nos meios de comunicação a concentração é duplamente ruim: é ruim porque é ineficiente economicamente e é ruim porque gera problemas em termos de diversidade, de pluralismo.
Então, diante dessa questão, a política cultural do século XX foi que o Estado intervém para gerar algum nível de diversidade. Por exemplo, vê-se isso claramente no cinema; a Argentina produz 150 filmes por ano, e se o Estado amanhã retirar o apoio à produção cinematográfica, passaremos a produzir entre 3 e 15 filmes por ano. Ou seja, 90% da produção cinematográfica depende da intervenção do Estado. Então, há um problema econômico e há um problema político. Ser diverso, plural, representando culturas regionais, diversidade de opiniões, diversidade de línguas, tudo isso é caro.
Qual é a nossa disposição para pagar pela diversidade?
Esse é um debate complexo em termos sociais. Nem a política pública cultural é apenas a do Estado. A do Estado é a mais visível e a que em geral conta com mais recursos, mas também há uma política pública social, não estatal. Enquanto no século XX havia uma legitimidade de todas essas políticas, acredito que no século XXI aparecem preocupações em termos mais individualistas, o que gera um risco. Muitos entendem que a questão do conteúdo, de quem tem prioridade, o problema da diversidade cultural continua a ser central para as sociedades democráticas. Agora, nesta fase de crise, o que vejo é que aqueles que estavam melhor preparados antes da crise têm mais capacidade para responder.
Um exemplo bem conhecido é o da BBC (British Broadcasting Corporation). A BBC também está em crise, mas tem uma crise que eu gostaria de ter: porque ela tem orçamentos consolidados, capacidade produtiva, lógicas de inserção no mercado internacional e, além disso, propõe padrões, lógicas comunicativas, que também desafiam o setor privado. Claro que não acho que se tenha que repetir a experiência da BBC, isso nunca ajuda.
Mas vejo como um erro não ter fortalecido os meios públicos em termos de uma lógica que transcende o partidarismo, porque se os meios de comunicação públicos tivessem se legitimado socialmente, teria sido muito mais difícil fazê-los desaparecer. Porque os meios de comunicação públicos seguem todos formalmente vigentes, mas, de fato, na Argentina, se o Cambiemos conseguiu algo em termos de meios de comunicação públicos é que ninguém os assiste ou escuta, que ninguém os consome.
O esquema da comunicação
Guillermo Mastrini é doutor em Ciências da Informação pela Universidade Complutense de Madri e é licenciado em Ciências da Comunicação pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Ele é pesquisador adjunto do Conicet e professor da UBA e da Universidade Nacional de Quilmes (UNQ).
Especialista em política de comunicação e economia das indústrias culturais, escreveu numerosos artigos e livros sobre o tema: Globalización y monopolios en la comunicación en América Latina. Hacia una economía política de la comunicación, editado com César Bolaño; Periodistas y magnates: estructura y concentración de las industrias culturales en América Latina, com Martín Becerra; Mucho ruido, pocas leyes. Economía y políticas de comunicación en la Argentina (1920-2004); Los dueños de la palabra. Acceso, estructura y concentración de los medios en la América Latina del siglo XXI, com Martín Becerra; Políticas de comunicación en el siglo XXI, editado com Diego de Charras e Ana Bizberge; Medios en guerra. Balance, crítica y desguace de las políticas de comunicación 2003-2016, editado com Martín Becerra, entre outros.
Recentemente, a Universidade Nacional de Quilmes (UNQ) editou La concentración infocomunicacional en América Latina (2000-2015). Nuevos medios y tecnologías, menos actores, livro escrito por Mastrini com Martín Becerra. O trabalho é imprescindível para quem quer compreender o funcionamento da comunicação na região. “Este é o terceiro livro que fazemos sobre a concentração, os anteriores eram como fotos, e este é o primeiro que fazemos, não diria um filme, mas um curta-metragem, porque tem um contorno mais dinâmico”, diz o especialista. “E o que vemos a partir desta dinâmica é que a tendência de concentração é forte e cresce mais em lugares onde havia menos concentração”. O livro pode ser baixado gratuitamente da Internet.
Mastrini é co-diretor do programa de pesquisa “Indústrias culturais e espaço público: comunicação e política na Argentina” da UNQ e dirigiu vários projetos de pesquisa na UBA. Foi diretor (2007-2009) do curso de Ciências da Comunicação da UBA e presidente (2007-2010) da Federação Argentina de Cursos de Comunicação. Ele é atualmente membro do Conselho Internacional da Associação Internacional de Pesquisa em Mídia e Comunicação (IAMCR).
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“Netflix e Spotify pensam que seu mercado é o mundo”. Entrevista com Guillermo Mastrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU