Por: André | 24 Julho 2014
Nossas tecnologias contêm minerais que financiam a guerra no Congo. No leste do país encontram-se 80% das reservas mundiais de um deles, o coltan. A Ong navarra Alboan trabalha para regularizar seu comércio internacional.
A reportagem é de Iván Benítez e publicada no jornal espanhol Diario de Navarra, 29-06-2014. A tradução é de André Langer.
Fonte: http://bit.ly/WCNCsR |
“Jambo, jambo bwana, habari gani, mzuri sana, wageni, mwakaribishwa, kenya yetu, hakuna matata, kenya nchi nzuri, hakuna matata...”. Animados pelo acordeão do jesuíta Paulo Welter, as 70 crianças da guerra presas em um módulo da prisão de Goma cantam em uníssono – em suaíli – a famosa canção composta pelo queniano Teddy Kalanda. Suas vozes estremecem entre os altos muros de pedra e o arame farpado. Welter sorri. Está consciente de que acaba de subtraí-los, ao menos por alguns minutos, da grossa soga da rotina. Alguns estão até cinco anos sem sair. Sem receber formação. São tão jovens! Alguns deles têm 10 anos. São acusados de terem cometido violações.
O centro é pequeno. A estrutura é formada por um pátio interior de cerca de 20 metros quadrados. No meio, uma piscina de plástico recolhe a água da chuva que usam para beber e lavar-se. Dormem amontoados sobre colchonetes. No chão. Em dois barracões sem luz elétrica. Chega-se ao pátio da rua por uma porta de ferro no qual pende um enorme cadeado. Um homem guarda a entrada sem muito interesse, sentado atrás de uma mesa completamente vazia.
Os menores não esperam a visita. Ao abrir o cadeado e encostar a porta, a cena sobressalta. “São crianças!” A exclamação atropela feito um trem a toda velocidade. Jogam. Conversam. É curioso. Alguns, os menores, usam camisetas brancas com as 12 estrelas amarelas da União Europeia estampadas sobre um fundo azul. Também se distingue o nome da Ong britânica War Child (dedicada a ajudar as crianças que sofrem os efeitos da guerra) e uma frase escrita em francês: “A violência sexual constitui um desafio à dignidade humana”. O diretor do centro deixa claro desde o primeiro momento que este lugar é um centro de reabilitação para menores e não uma prisão. “Estão aqui por violações ou agressões sexuais”, afirma com veemência.
Supostas violações que cometeram, em muitos casos porque um dia não muito distante fizeram parte de grupos rebeldes: empunharam o fuzil AK-47, violaram, mataram e saquearam em nome da milícia e de um minério chamado coltan (formado pela combinação de dois elementos, a columbita e a tantalita), um supercondutor que as multinacionais ocidentais comercializam em Ruanda principalmente através de intermediários.
Há dias que as crianças da guerra da prisão de Goma não comem direito. “Necessitamos de alimentos”, urge o diretor do centro. Welter está acompanhado do advogado do JRS (Serviço Jesuíta a Refugiados), Joseph Mbarazi. “Todos são menores de 18 anos”, confirma Mbarazi, e alguns estão quatro ou cinco anos presos por agressões sexuais que não foram comprovadas. Segundo o advogado, não recebem formação. Algo desmentido pelo diretor, que diz que eles, sim, recebem formação.
Violações e minerais
Graças ao coltan são fabricados aparelhos de última geração, como telefones celulares, microchips, videojogos, baterias, armamentos, estações espaciais, etc. Enquanto as máfias internacionais e os contrabandistas enriquecem com sua extração e comércio, os mineiros congoleses trabalham em condições de escravidão, vigiados por forças paramilitares. Milhares de crianças e os próprios professores abandonam as escolas para trabalhar nas minas e ganhar algum dinheiro. Em média, um congolês ganha 10 dólares mensais em outros trabalhos. Nas minas, obtendo um quilo de coltan por dia, pode chegar aos 50 dólares semanais. O mineral pode chegar a 500 dólares por quilo. Com este dinheiro, as milícias obtêm os recursos necessários para financiar suas armas, e, portanto, a guerra.
Crianças da guerra. Violações. Deslocados: 107.911 sobrevivem em cinco campos nas proximidades de Goma. Fome... O Congo sofre há 15 anos um conflito enquistado pelo controle de suas jazidas que já deixou entre três e cinco milhões de mortos. Somente em 2013 um milhão de pessoas tiveram que abandonar suas terras. Diz-se que este país é o pior lugar do mundo para se viver se és mulher. As violações em massa são utilizadas sistematicamente como arma de guerra. Mais de 100.000 ao ano.
Com um território maior que o da Espanha, França, Alemanha, Suécia e Noruega juntos, a República Democrática do Congo é o segundo maior país do continente africano e o mais pobre do mundo, segundo o programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Estima-se que há cerca de 11 milhões de atingidos pela guerra. Ódios étnicos pelo controle das terras e importantes interesses econômicos da Europa, Ásia e América converteram a região dos Grandes Lagos em uma permanente violação dos direitos humanos.
Um relatório elaborado pelas Nações Unidas revela que no ano passado foram tirados da região mais de 400 milhões de dólares apenas em ouro. A ONU documentou em 276 páginas que o contrabando de minerais como o estanho, o coltan e o tungstênio servem para financiar os grupos rebeldes, minando o crescimento econômico do país.
O Congo representa 20% da produção mundial do coltan. Calcula-se que suas reservas representem 88%. O relatório sustenta que as milícias locais, apoiadas por Uganda e Ruanda e multinacionais mineradoras, recebem fornecimentos de alimentos, dinheiro e equipamento militar em troca dos minerais de contrabando. E recomenda ao Conselho de Segurança que imponha sanções por sua exploração sistemática. Nem o próprio governo congolês está isento de culpa, já que elementos do seu Exército estariam exercendo um papel chave no desenvolvimento das operações ilegais. A vontade política da capital, Kinshasa, poderia ser determinante para acabar com o comércio ilegal. Em 2010, o presidente Joseph Kabila proibiu a mineração em grande parte do leste do país para acabar com a relação entre conflitos bélicos e minerais, mas a medida nunca foi aplicada. Estima-se que até 20 milhões de pessoas do Congo, Uganda, Ruanda e inclusive do Quênia, dependem da extração ilegal.
Se em 2010, a ONU assegurava que na zona quase todas as minas eram controladas por grupos militares, atualmente, segundo outro estudo, este realizado pelo The Enough Project (grupo de pressão pró-direitos humanos com sede em Washington, fundado por especialistas africanos), duas terças partes das minas do leste do Congo de estanho, tantalita (refinado do coltan) e tungstênio já não são controladas pelos grupos armados ou pelo próprio Exército congolês.
A revista Mundo Negro detalha que os programas de auditoria realizados pela indústria e as reformas empreendidas pelos governos africanos tornaram os grupos armados menos viáveis economicamente para manter seu controle. “Os minerais que não passaram por um programa de certificação, que garante sua limpeza, são vendidos agora a preços entre 30% e 60% menores do que aqueles que foram certificados”, disse a revista.
Fonte: http://bit.ly/1z1Iig0 |
Se os nossos telefones contêm minerais que financiam as guerras, por que ninguém fez nada a respeito? A Ong navarra Alboan investiga há anos a relação entre os minerais e os conflitos armados na região. “Não temos maneira de saber se os minerais contidos em nossos celulares provêm de zonas em conflito e se estão sendo financiados. O que sabemos é que entre 60% e 80% das reservas mundiais encontram-se no Congo, e que há uma vinculação direta entre o financiamento do conflito e dos minerais”, indica. “Atualmente, não temos uma legislação para excluir os minerais em conflito dos nossos produtos na Europa, embora haja uma proposta de rascunho que, na nossa opinião, é muito fraca e não garantirá que em nossos aparelhos não haja minerais que tenham servido para financiar o conflito”, acrescentam. Em suma, o que a Alboan solicita é que as empresas comecem a se interessar em saber a origem dos minerais para que depois, na hora da compra, se possa tomar uma decisão.
Uma vez processado e fundido, o coltan é incorporado às grandes companhias através das grandes companhias através das cadeias de fornecimento que operam em nível mundial. Deste modo, são introduzidos nos processos de fabricação de bens e equipamentos e acabam nas mãos de qualquer um quando compra um telefone celular. Por tudo isso, para sensibilizar sobre este problema que atinge a todos, a Ong lança a campanha Tecnologia livre de Conflito para garantir condições de vida digna para as pessoas cuja única fonte de renda é a extração. “Temos o direito de exigir que nos garantam que os produtos que adquirimos não incorporam minerais que financiam conflitos. A vida de muitas pessoas está em jogo”, adverte, destacando a “imperiosa” necessidade de regular o comércio internacional destes minérios.
Viagem ao coração do coltan
Até o epicentro do coltan, a leste do Congo, em Kivu Norte, viajou, há duas semanas, o Diario de Navarra, para acompanhar Marcos Ibáñez – responsável pela cooperação internacional da Alboan na África – e a advogada da organização Jesuit European Social Centre (JESC), Emmanuelle Devuyst. Uma semana em que os combates entre o Exército congolês e o ruandês se recrudesceram na fronteira e no qual um grupo rebelde provocou um massacre de 34 mortos: todos mulheres e crianças.
O voo Bruxelas-Kigali saiu às 10h15 e chegou pontualmente às 19h15. Anoiteceu. Na aduana, a polícia revisa a equipagem com a única obsessão de comprovar se contém plástico, um material proibido no país. O responsável da Alboan recomenda evitar pronunciar em público as palavras tutsi ou hutu e assim evitar problemas. Ninguém fala disso. “Basta dizer essas palavras para ser preso. É preferível não falar de política”, esclarece.
Nas ruas de Kigali respira-se um auge econômico que surpreende. Ordem. Limpeza. Prédios enormes. Empresas americanas, inglesas e chinesas se fizeram com o país. E nota-se. A chamada Suíça da África cresce a um ritmo de 8%, mas sua população também o faz, perigosamente. Em um país de 15 milhões de habitantes do tamanho da Galícia, o equilíbrio populacional converteu-se em uma panela de pressão. Teme-se que as chacinas da primavera de 20 anos atrás, nas quais, em questão de 100 dias, morreram assassinadas cerca de um milhão de pessoas, possam explodir novamente.
No dia seguinte, partimos para a fronteira em uma camioneta dirigida por um motorista local do JRS (Serviço Jesuíta para Refugiados). O trajeto, de cerca de três horas, discorre por uma paisagem de colinas verdes e plantações de feijão, batatas, sorgo e cenouras. Rodovias asfaltadas em cujas margens se distingue a cor rosa dos uniformes usados pelos prisioneiros acusados pelo genocídio, que realizam tarefas ambientais. Os postes elétricos, em processo de instalação, acompanham ao longo da estrada. A porcentagem de eletrificação em todo o território cobre apenas 17%. Embora a previsão seja que em 2017 chegue a 70% do total.
No outro lado da fronteira, já no Congo, aguarda o jesuíta Paulo Welter, diretor-executivo do JRS na região. Natural do Brasil, seus olhos azuis e feições claras dão-lhe um ar mais europeu que brasileiro.
Um portão azul com as iniciais do JRS na porta dá as boas-vindas. Há um vigia e uma torre de vigia. Os muros são reforçados com arame. O aeroporto fica perto. Há algo mais de um ano um avião Fokker sofreu um acidente e caiu no jardim da casa. “Morreram sete pessoas e em posse do único sobrevivente encontraram muito dinheiro”, relembra o jesuíta. Precisamente o barulho de um destes aviões turboélice irrompe. “Passam duas vezes por dia e estou certo de que são os que trazem o coltan das montanhas...”, comenta com o olhar voltado para o céu. Paulo convida a acomodar-se nos quartos. Há água quente. Tudo um luxo, mas às 22h corta-se a luz. “O Congo é um lugar complicado. Agora está calmo, mas o pânico pode chegar a qualquer hora...”. Há dois anos, o fogo de morteiro e os bombardeios dos helicópteros congoleses sobre posições rebeldes podiam ser ouvidos muito perto da casa do JRS. Antes de dormir, Paulo recomenda precaução em Rubaya. “Não é uma boa ideia vocês irem...”.
Goma-mina de Rubaya
Encravada na primeira linha do conflito, Goma é uma cidade ameaçada permanentemente pelos desastres naturais e pela violência da fome. A presença da ONU no Congo é das mais importantes que o organismo tem no mundo. A missão de manutenção da paz, Monusco, dispõe de 19.000 efetivos militares e de uma enorme burocracia de funcionários internacionais, com um custo de mais de um bilhão de dólares por ano. Fracassou na manutenção da paz ou na estabilização do país. As tropas da ONU resistiram em intervir mesmo quando ocorriam atrocidades na sua presença.
No Congo a distância não é medida em quilômetros, mas em tempo. Só a viagem de ida à exploração mineral de Rubaya, a cerca de 70 quilômetros, demora três horas em camioneta. Não se pode chegar de carro. Antes de partir, uma visita fugaz ao presidente da Federação de Minas, que pede que se faça incidência política na Europa sobre o tema dos minerais, e previne: “Os grupos armados vivem nas montanhas e são os que realmente controlam as minas...”. As palavras do jesuíta, na noite anterior, caem como chumbo.
Fonte: http://bit.ly/1sQTj3l |
Já na rodovia, o 4X4 faz o que pode para salvar os socavões. Os solavancos são contínuos. A estrada, de terra vermelha, contrasta com uma paisagem idílica de criadores de gado tutsis pastoreando. Terra fértil como poucas. As nuvens de poeira dos carros envolvem os corpos retorcidos de mulheres e crianças sobrecarregados. Os controles de polícia e militares se sucedem nas entradas em cada povoado. Deixam passar os veículos de ajuda humanitária. Os carros privados são parados em busca de uma recompensa. Soldados da ONU procedentes do Uruguai, África do Sul e Paquistão patrulham de forma testemunhal permitindo as pilhagens do Exército regular congolês e as chacinas dos grupos rebeldes. À insegurança soma-se o problema da falta de salário da folha de pagamento do Exército regular congolês, e o alcoolismo. Uma adição que golpeia seriamente homens e mulheres, sobretudo as comunidades mineiras.
Um formigueiro gigante
A mina situa-se no cume de uma montanha aberta em canal. Uma língua vermelha, à qual só se chega a pé ou de moto. A subida é perigosa. Ao remontar a ladeira, a vista do vale se apresenta espetacular. Ao fundo, distinguem-se Rubaya e um campo de deslocados pela guerra. Um extenso lençol de plástico protege as cabanas de adobe e bambu, onde vivem famílias inteiras. Daqui procede a maioria dos 5.000 mineiros. Ao redor dos minerais floresceu um comércio paralelo de álcool e prostituição.
A mina parece um formigueiro gigante. Trabalha-se em regime de semi-escravidão. De sol a sol. Sete dias da semana. Dizem que ganham o suficiente para comer. O mineral é extraído simultaneamente da superfície e do subsolo. De profundas galerias. Às escuras. Um suicídio. As chuvas fazem com que cedo ou tarde desmoronem. Dentro, falta de ar. Uma intensa concentração de gás e álcool – mistura explosiva – que asfixia. As últimas tempestades deixaram o solo liso. É difícil manter o equilíbrio. Os trabalhadores riem ao descobrir um “muzungu” (branco).
Às 17h, com os últimos raios de luz, os mineiros saem das suas tocas. E a crua realidade emerge deslumbrando: como na prisão de Goma, há crianças. E isso que esta cooperativa presume ser a única, das 13 existentes em todo Kivu, a trabalhar sob o selo de certificação de que não se viola os direitos humanos.
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Coltan, da mina ao celular - Instituto Humanitas Unisinos - IHU