"Hoje, no Brasil, nos EUA e mesmo na Itália vemos o preço que pagamos pelo descrédito pregado contra a ciência e o desmonte de suas estruturas sanitárias", escrevem Sérgio Rego, coordenador do GT Bioética/Abrasco, pesquisador da ENSP/Fiocruz, responsável pela unidade do Rio de Janeiro da rede vinculada à cátedra da Unesco na Universidade de Haifa, e Marisa Palácios, integrante do GT Bioética/Abrasco, professora titular de bioética da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretora do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada (Nubea) da UFRJ, em artigo publicado por Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, 06-04-2020.
Eis o artigo.
Há décadas, já se diz que a sociedade moderna, ocidental, reforça o individualismo, e seus modelos econômicos estimulam e incentivam a competição. Incentiva-se a busca do sucesso individual e mal se disfarça uma certa complacência com meios que poderiam facilmente ser qualificados como amorais. No Brasil e alhures, a preocupação com o outro começou a ser qualificada como mera estratégia de conquista e manutenção de poder político. Mais do que os resultados na disputa política, o que acabamos verificando foi a intensificação do individualismo e a implementação de políticas que prejudicam, profundamente, a capacidade de sobrevivência com um mínimo de dignidade para gigantescos segmentos da população brasileira. Tem se intensificado um fenômeno que é facilmente observável em diferentes países ocidentais: o isolamento dos segmentos que desfrutam de privilégios econômicos e sociais em condomínios e pequenas ilhas de segurança e prosperidade.
Mas eis que surge um vírus que pode nos ajudar a compreender a vida em sociedade de uma forma mais aproximadamente humana. O poeta britânico John Donne escreveu, há cerca de cinco séculos, que “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída (...); a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” Esse poema foi lembrado por Hemingway em seu livro Por quem os sinos tocam?, sobre a Guerra Civil Espanhola, e merece ser lembrado agora também para enfatizarmos que não apenas o mundo hoje está profundamente interligado, mas também os habitantes humanos. É uma perigosa ilusão achar que uma sociedade com desigualdades tão intensas como a nossa é capaz de garantir uma sobrevivência asséptica a qualquer de seus segmentos. Desta vez, foi preciso um pequeno e desprezível vírus para dar esse sacode em nossa sociedade injusta e preconceituosa. A Europa e os Estados Unidos estão mostrando que o bem-estar seletivo não é suficiente para proteger os mais ricos e poderosos.
Hoje, no Brasil, nos EUA e mesmo na Itália vemos o preço que pagamos pelo descrédito pregado contra a ciência e o desmonte de suas estruturas sanitárias. De certo que os Estados Unidos nunca tiveram um sistema de saúde público de assistência, uma vez que o chamado “obamacare” foi desmontado sem ter tido tempo de ser implementado, mas o desmonte veio na forma de redução de recursos para o que havia no setor de saúde pública, como o CDC. O preço que pagam por esse desinvestimento é semelhante ao que estamos pagando aqui. Não devemos nos comparar aos Estados Unidos para nos consolarmos de que estamos em uma situação tão ruim como eles, mas é preciso ter consciência que ambos os países foram pegos desprevenidos pela pandemia. E esse despreparo não foi por acaso, mas uma consequência previsível do desinvestimento imposto ao setor público. E é pior: hoje, assistimos autoridades econômicas de nosso país tentando se aproveitar da catástrofe que vai se desenhando para tentar implementar suas propostas de reformas, como se elas fossem algum tipo de resposta possível para a crise sanitária. Não é. O abandono e a minimização das políticas de amparo social apenas agravam a situação.
Bioeticistas chineses (Ruipeng Lei and Renzong Qiu) escreveram para o Hasting Center um artigo em que, apropriadamente, citam uma frase atribuída a Hegel: “We learn from history that we do not learn from history” - em livre tradução: "Nós aprendemos com a história que não aprendemos com a história” -, mas isso não pode ser um destino. Precisamos apostar em um novo mundo, no renascimento da solidariedade acima da ânsia pelo acúmulo dos bens materiais. O povo brasileiro é solidário e está demonstrando, com inúmeros exemplos, ser capaz de ser solidário no momento de crise também.
Ainda não há uma disseminação uniforme do sentimento de que sem solidariedade a travessia da crise é muito mais penosa. A sociedade começa a se organizar com esse propósito, como o fez a Central Única das Favelas (Cufa), que publicou importante contribuição sobre como pode ser a resposta dos governos para os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. Mas já passou da hora de os chamados investidores do mercado financeiro, que lucram com a especulação e não produzem nenhuma gota de álcool gel, compreenderem que precisam desempenhar um papel importante no apoio financeiro ao combate da pandemia. Devem ser “solidários” espontânea ou compulsoriamente.
Referências:
CUFA. Propostas de medidas para reduzir os impactos da pandemia de covid19 nos territórios das favelas brasileiras. Disponível aqui.
Lei R & Qiu R. Report from China: Ethical Questions on the Response to the Coronavirus. Published on: January 31, 2020. Disponível aqui.
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Algumas lições que já devemos tentar aprender com a pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU